agosto 31, 2009

Delicious hospital food *

Os corredores denunciam a remodelação mas não o esmero da limpeza. Desceram o tecto poucos centímetros acima da nossa cabeça, o que contribui para aumentar a sensação de claustrofobia, apenas aliviada pela cor pastel das paredes. Quase todas as persianas estão descidas, o que, juntamente como os novos aparelhos de ar condicionado, ajudam a que se consiga respirar mesmo quando estão quarenta graus lá fora. Os elevadores ainda não foram alvo da tal remodelação e tanto cheiram a mofo e a naftalina, como à sopa que sofre da falta do sal.

O que me tem incomodado nestes últimos dias de hospital não é tanto o facto de ele estar encurralado no seu próprio corpo, sem ser capaz de se exprimir, o facto de perder constantemente a noção do sítio onde está ou de quem o visita ou a sensação de que já não nos conhece. Também não são as mãos atadas à cama ou o estado (nervosamente) estacionário que tem prolongado a sua estadia por mais tempo do que pensaríamos inicialmente. O que me tem perturbado são as outras misérias que, abandonadas no meio da renovação, esquecidas pela família ou pela previdência, respiram a custo, tentando inutilmente sobreviver. Ele esqueceu já todas as palavras mas nós estaremos sempre à cabeceira e aos pés da cama. Mesmo que à distância, ele nunca estará sozinho.

* o verso dos Eels, a lembrar-me desejo ardentemente que este 2009 acabe porque ninguém me preparou para a quantidade de quartos de hospital que já visitei até agora.

agosto 27, 2009

Não matem o mensageiro mas.

O meu posto de trabalho vai ser extinto. Quer dizer, o meu e o do resto das pessoas que trabalham comigo. Acho que agora, depois de me ver a contas com a negação e a raiva, depois de chegar ao ponto em que me consigo rir disto e de saber a data exacta do fim, posso dizer isto em voz alta. Não tem nada a ver com a crise que atravessamos há quase um ano - o modelo de negócio tornou-se simplesmente obsoleto e pouco rentável e os senhores que fazem milhões à pala disto resolveram mudar. E eu nem consigo estar triste com isto. Na verdade, acho que estou secretamente feliz por ver o final há muito anunciado deste caos da gestão e por deixar de trabalhar com algumas pessoas. Mas não consigo evitar sentir uma réstia de ingratidão para todos nós.

E hoje, um pouco como coroação deste anunciado gran finale, fui tratada (quem sabe ainda não pela última vez) como uma máquina apenas de gerar lucro, como alguém que deve dispor das vidas dos outros para o bel-prazer da empresa, enquanto tenta motivar essas mesmas pessoas. E eu, que nem preciso que me animem porque sei procurar muita da minha motivação dentro de mim, nunca recebi ou sequer poderei aspirar a receber uma palavra de motivação deste supra-sumo da economia, uma palavra apenas de apreço por aguentar inteira uma equipa depois de anunciado o seu fim. Não há tempo para insignificâncias destas nem haverá tempo para gastar um mísero Obrigada comigo.

E agora, feliz por escapar finalmente ao jugo dos números, reencontro-me com a angústia de alguém que não sabe o que o futuro lhe reserva, que se vê a braços com processos de recrutamentos e escrutínio de anúncios de emprego sem fim, mesmo não sabendo o que quer da vida. E, se por um lado o sentimento de liberdade é um alívio para mim, por outro estou aterrada com esta hipótese de não-futuro, das sucessivas rejeições, do sentimento de inutilidade. Livre mas desconfortável, portanto.

E agora estou a rever o American Splendor (o único filme que vi sozinha numa sala de cinema) e estou a ficar deprimida. Realmente deprimida, especialmente depois do Harvey se olhar ao espelho e dizer Well, there's a reliable disappointment. Pareço eu em algumas manhãs.

agosto 24, 2009

Aquele querido mês de Agosto (em diferido do interior)*

Todos sabemos que, chegado o oitavo mês do ano, regressa misteriosamente e um pouco por todo o lado um outro país. É um país invadido pelas matrículas francesas e luxemburguesas, pessoas com saudades da sua aldeia natal, anúncios de festejos pregados por essas árvores fora. Este outro país não estende as suas fronteiras além do centro do país real, em que as estradas não estão congestionadas por quem chega de longe e em que o verde foi, desde há muito, trocado pelo amarelo das searas.

Tentando escapar à onda de saudosismo desses Mercedes tão bem estimados e à vontade de carregar com o andor na procissão e à profusão de penteados muito devedores da estética dos anos oitenta, deixei-me ficar pela beira da piscina, lendo todos os suplementos que tinha em atraso mas não ainda capaz de despachar o livro de uma vez por todas. Subimos ao Caramulinho e estavam certamente entre trinta e quarenta graus centígrados e nós suávamos enquanto dizíamos que caminhadas daquelas devem ser guardadas para outras estações. Ainda não foi desta que consegui acabar com a fobia dos eólitos. À hora do jantar, conseguimos desencantar os sítios mais encantadores para se comer boa alheira e para se beber Cabriz. O tempo, sabemos todos também, não chega para tudo mas chegou para dar um pulo a Viseu e a Aveiro, a tempo de chegar a Lisboa para descansar... do fim de semana.

*com outros postais ilustrados aqui.

agosto 19, 2009

Agosto na Lapa*, 35 ℃


Eu, admiradora incondicional do Verão, me confesso: tenho tido muitos sentimentos contraditórios acerca desta estação, especialmente na zona onde moro. É muito bom, este silêncio que sempre se ouve pela manhã, os pássaros que cantam nas árvores que separam o condomínio dos quintais ranhoso deste lado da rua, os autocarros a passar (aparentemente) com menos frequência. Os cafés a caminho de casa estão quase todos fechados, com letreiros de férias em todas as montras, uns desenhados com palmeiras e malta deitada na praia, outros mais secos e improvisados.

À porta do liceu, não há sinal das meninas que vestem roupa de Verão todo o ano, encostadas à parede, fumando languidamente ou provocando os miúdos que afastam, a custo, o cabelo dos olhos. Não há algazarra junto da escola e as folhas dos plátanos que acompanham as suas grades formam já um tímido tapete, secas pelas temperaturas finalmente altas, revoltas pelos chinelos que caminham em direcção à Estrela. O jardim é agora trilhado por casais gays e heterosexuais, turistas espanhóis muito bem compostos, grupos de rapazes de rastas que depois se deitam pela relva, senhoras bem casadas à espera do segundo filho, os mesmo três senhores de sempre correndo juntos, o mesmo rapaz com cabelos de Cristo sentado em pose depressiva, bebés de colo por todo o lado.

A atmosfera abafada chegou à Estrela e, sendo Agosto, o trânsito nas artérias que circundam o jardim abrandou também, como se agora os automobilistas estivessem demasiado ocupados a escolher o próximo destino de férias. Quase estaciono longe da porta simplesmente porque nestes dias há tantos lugares livres que me posso dar ao luxo de escolher. Ainda não moram estudantes das janelas da frente, nem as alunas da escola gritam à hora de saída.

Sinto a falta destas palpitações. Sinto falta da movida e das buzinas no cruzamento, mesmo que seja muito bom passear por uma Lisboa vazia. Sinto falta duma cidade em marcha mas Setembro já está quase aí.

* com uma fotografia daqui.

agosto 16, 2009

Gustavo, o peixe

Eu não sou propriamente aquilo a que se pode chamar uma animal person. Gosto dos bichos, sim senhor, mas, por alguma razão que o meu inconsciente esconde, não sou de fazer festinhas nem de rebolar com eles e dar beijinhos e essas coisas. Tenho, aliás, um pavor irracional de ser mordida por qualquer animal, especialmente nos casos em que se junta um grande número de exemplares caninos.

Por estas razões, o Gustavo é o animal ideal para mim. Está sossegado no seu aquário, não tem uma dentadura que me possa assustar, não pode esboçar um plano com outras criaturas para me atacar, não ladra nem faz qualquer outro tipo de som, não reclama atenção nem exige muitos cuidados especiais. Não posso evitar conversar com ele, nem ficar vidrada nos seus movimentos fugidios e nervosos, nem rir-me quando ele faz aquela boquinha de peixe enquanto olha para mim atrás do vidro. Nem sequer preciso de falar sobre o significado que ele tem para mim. É o Gustavinho e eu penso se ele estará bem quando estou longe dele.

agosto 14, 2009

Chick flicks *

(Eu até posso armar-me em forte e posso fingir que não sou nada dada a romantismos. Posso ter medo das certezas, mesmo que as sinta profundamente. Posso fingir que as cenas melosas não me dizem nada e o que quero ver são coisas bonitas, que me façam pensar. Eu posso tentar evitar mas não consigo não me imaginar na pele da rapariga rejeitada, da rapariga mais sortuda do Mundo, da insatisfeita e da céptica. Eu posso tentar resistir e ver o filme em metades desiguais, completamente bêbada de sono, agarrada às duas almofadas que me fazem companhia diariamente. Mas disto é que eu gosto. Daquele nó na garganta quando o filme está prestes a chegar ao fim, das lágrimas que me caem por imaginar que aquela podia ser eu, da emoção de imaginar que um dia aquilo também me há-de acontecer. Com direito a música melosa e tudo. Porque não existe nada que me importe mais do que ter um coração que palpite e faça palpitar.)

* o desta semana.

agosto 11, 2009

Um pouco de Primavera *

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Ter a certeza é assim daquelas coisas lixadas. Porque (normalmente) vem alguém no final que nos acaba com tudo, que nos desfere o golpe de misericórdia, ao qual pensávamos ter escapado logo no início. Ter certezas depois de muitos destes golpes já não é lixado, é apenas uma imensa prova de fé, deixa de ser uma escolha para passar a ser uma obrigação. Ter a certeza alivia-nos do absurdo que é acordar todos os dias sem saber como tomar decisões, alimenta-nos todos instantes em que nos permitimos distrair, povoa-nos as fantasias de uma vida mais livre noutro sítio qualquer. Ter a certeza demora. Saber que sim senhor, é isto mesmo, não é coisa para acontecer em meia dúzia de dias mas, com sorte, pode acontecer num só beijo. Quando se tem a certeza, tudo o resto passa a ser secundário. Deixa de interessar se há correio ou não, se a máquina do café funciona, se a ventoinha está em falta.

A noite está incrivelmente quente e, se eu me encostar às grades secas da varanda, consigo sentir uma brisa tímida a tentar desalinhar o que resta de um rabo de cavalo mal conseguido. O som da porta do carro a bater é, ao mesmo tempo, uma incómoda despedida e uma promessa de regresso. E ter a certeza é começar a contar os minutos que faltam.

*pela mão dos Noah and the Whale, agora que chegou o Verão.

agosto 09, 2009

Blank *



Este é seguramente um dos períodos descendentes da minha vida. Acho que, depois disto, fica provado para mim que o que temos hoje pode perfeitamente voar amanhã. Descobri há pouco tempo que não tenho andando a cultivar as relações familiares como devia e, em vez de tentar remendar isso da melhor maneira, levantei uma sombra que se instalou quase definitivamente.

Depois, a saúde de outro dos homens da minha vida anda a ameaçar degradar-se definitivamente e a certeza de que as mulheres são mais resistentes cresce em mim. São as mulheres que engolem as lágrimas porque sabem que a vida tem que continuar, são elas que ficam com as decisões e que nunca deixam de dar tudo o que têm, são elas que (apesar de serem chamadas de sexo fraco) nunca se deixam consumir pelo desgosto. A minha família é assumidamente matriarcal, com mulheres que nunca param, nunca deixam de sair, de coser mesmo quando a dor quer falar mais alto. E os homens, gastos pelo trabalho e debilitados pela velhice, começam a despedir-se cedo, deixam os corpos para trás e fogem pelos olhos vítreos, esquecem-se lentamente de quem estão a deixar em terra. Não tem sido fácil assistir a estes pequenos declínios, que levam com eles as pessoas que me ensinaram a crescer.

E finalmente, essa coisa a que convencionaram chamar emprego... Estou aprisionada por uma posição que me é cada vez mais estranha e por um mercado estrangulador para quem não quer viver dos números. A natureza do negócio mudou e tudo caminha claramente para um fim, um fim que eu já adivinhava há algum tempo mas tinha sempre recusado a aceitar. E, se parte de mim exulta com a possibilidade de voltar a ser livre, a minha metade racional lembra-me que, querendo construir uma coisa parecida com uma vida, há uma atitude mais séria que devo tomar. Já tinha dado cambalhotas antes, daquelas que não se sabe muito bem de onde se parte mas nada como aquela que - parece-me - aí vem. Não tenho medo por mim. Nem tenho pena de mim. Mas gostava que, com apenas uma decisão minha, pudesse resolver a vida e pudesse devolver a paz de espírito aos que se preocupam com ela.

* uma música velha dos Failure, que ilustra muito bem o estado em que às vezes me obrigava a estar durante a semana que passou: em branco, vazia de memórias, imune a certos estímulos exteriores. Para ouvi-la em repeat, com a certeza de que a convulsão maior passou e eu, ainda não renovada, estou de volta.

agosto 06, 2009

Esta é a (belíssima) capa da Pormenores deste mês onde, para além do relato ingénuo sobre algumas das memórias de infância desta que vos escreve, podem ainda ler sobre um sítio paradisíaco para passarem férias, sobre mais uma receita com história ou simplesmente maravilharem-se com outras fotografias sobre o Alentejo. Não sei o que estão a fazer aí parados em vez de correrem para as bancas e fazerem com isto esgote num instante...

(um momento de publicidade para fugir ao descarrilar das coisas, à passagem abrupta dum estado de graça para um estado de desgraça, apenas salva - uma e outra vez - pela linha do amor. Sou um desastre com as palavras faladas, sou um desastre a explicar-me, sou uma catástrofe em potência sempre que me puxam pela língua. Preciso urgentemente de me calar.)

agosto 04, 2009

2009 (so far) *


Para verem como às vezes sou uma pessoa bastante desocupada e como a profissão que nunca escolhi já fez das suas no meu cérebro, criei um gráfico com as coisas que me têm acontecido até agora. Como é meu apanágio, isto não tem qualquer valor científico, é apenas uma fantasia absurda mas acho que ilustra bem os tropeções que tenho dado desde o início do ano. Na minha cabeça, já há muito que se formou a teoria da impossibilidade: as linhas todas não podem estar acima da normalidade simultaneamente. Isto é empírico, largamente comprovado pela minha experiência. E eu preciso mesmo de me rir disto, caso contrário nunca mais ponho o pezinho fora de casa com o tamanho das minhas tristezas.


* porque as desgraças estão muito longe de virem sós.

agosto 02, 2009

Fim de tarde na Quinta Formosa

Uma das coisas que mais me agrada em vir a casa é a simplicidade com que se fazem as coisas. Deixamos de exigir, de nos preocuparmos com coisas supérfluas e passamos a concentrar-nos na essência das actividades, da comida, da conversa. Uns bancos de plástico podem parecer sofás (mesmo que sejam pouco resistentes), uma velha secretária faz as vezes da mesa no quintal, os garfos são a dividir por todos. Faltava muita gente, é um facto, mas continua a ser bom conversar na rua, casaco vestido que isto já não parecem noites de Agosto, entre dois copos de cerveja e um molho de convites de casamento.

Em casa, deixamos de ser preguiçoso e ajudamos a fazer caipirinhas numa cozinha emprestada, o gelo a ser esmagado por um tacho em cima do balcão. E em casa podemos, interiormente, parar o tempo e lembrar-nos de tudo o que aconteceu naquelas velhas garagens, das pequenas mas profundas cicatrizes que nos fizeram empinar para, do alto dos nossos bicos dos pés, podermos dizer que conseguimos sobreviver. Em casa, somos os futuros daqueles adolescentes que jogavam às tardes durante um fim de semana inteiro, inconscientes daquilo a que o Mundo os iria sujeitar e somos o passado desta gente quase nos trinta que, mesmo assim, ainda ousa sonhar.

agosto 01, 2009

As minhas noites são mais belas que os meus dias vi

Não foi a despedida por que esperávamos mas era o último dia e todos queriam estar presentes. Houve tempo para frango assado e batatas fritas no canto do balcão durante parte da noite. Eu e esta menina fomos as responsáveis atrás dos pratos (vivam os leitores de mp3!) mas não existia gente suficiente para animar. A noite acabou com apenas três horas de sono e as saudades antecipadas a apertarem o peito. O Verão continua hoje, num quintal perto de mim.

* outros disparos, como sempre, aqui.