outubro 10, 2018

Twickenham, TW1 3QS

Um esquilo entre árvores e os miúdos de uniforme a correrem no intervalo. O esquilo a passar sem que ninguém o ouvisse e os miúdos a distribuírem pontapés nos outros e no ar. Quando é que aprendemos a ser tão violentos, é a pergunta que se repete na minha cabeça enquanto os sigo do alto dum oitavo andar em Twickenham.

Gosto de apanhar o autocarro para o aeroporto de manhã. O som da mala a arrastar-se pelo passeio ecoa pelas ruas vazias do bairro. Espreito os quintais bem arranjados enquanto não chego à paragem do autocarro, com aquela inveja inofensiva de quem não tem tempo (nem jeito) para ter um quintal assim. Se o dia estiver bom, ouço o pequenino a brincar no jardim da creche, digo-lhe adeus baixinho como se ele me pudesse ouvir. De há uns anos para cá, custam-me sempre a despedidas. Não passa um dia sem ouvirmos histórias de quem saiu e nunca mais regressou. Nestes dias, penso sempre que posso ser a próxima.

Meia hora de autocarro, atravessando a cidade. O entra e sai de gente normal: os senhores de gravata que saem nas instituições europeias, as senhoras da limpeza que já vão no segundo ou terceiro cliente do dia, os fumadores inveterados que apagam o cigarro quase já dentro do autocarro, os outros viajantes que tentam enfiar as malas onde incomodem o menor número de pessoas, mães que eu imagino em licença de maternidade tentando regressar à vida normal com o bebé pendurado no marsúpio.

No aeroporto, chego a tempo de entregar a mala, comprar uma revista e passar tranquilamente pelo controlo de segurança. É o aeroporto mais pequeno de onde já viajei e é fácil calcular chegar perto da hora de partida. Como uma sandes de queijo com tomate que fiz à pressa em casa. É a minha nova cena, sandes de queijo com tomate. Faltava a alface mas em casa ninguém quer comer alface. Sento-me e momentos depois sou rodeada por um grupos de pessoas que parece ir em turismo para Londres. Aparentemente são franceses e falam muito alto. Estão excitados com a viagem, dá para sentir.

Escolhi a fila número quatro, um lugar à janela. Sou uma pessoa ansiosa e quero sair depressa do avião. Um lugar vago entre mim e o outro passageiro, um daqueles golpes de sorte.Ele não tenta meter conversa (felizmente, é que sou péssima a fazer conversa de circunstância e às tantas fico demasiado auto-consciente e sem saber o que dizer). Uma hora e poucos minutos de voo e aterramos em Heathrow. Pego nas minhas coisas e saio em direcção à recolha de bagagens. Preciso levantar dinheiro e páro num multibanco antes de chegar à passadeira onde as malas do voo do Luxemburgo ainda não começaram a desfilar. Espero uns dez minutos e dirijo-me à saída, onde alguém me espera com um cartaz com o meu nome. É a segunda vez que me acontece e não posso evitar sentir-me uma pessoa importante, mesmo sabendo que não é o caso e que o motorista não tem outra maneira de saber quem eu sou.

Todos os motoristas que me conduziram em Londres nestes últimos tempos eram indianos ou, pelo menos, originários das ex-colónias do Reino Unido. Dois não me dirigiram palavra (além de confirmarem a morada de destino), um mal sabia falar Inglês mas ainda ensaiou umas perguntas sobre o Luxemburgo, a única mulher falou o caminho todo entre o escritório e o aeroporto. TODO o caminho. Contou-me sobre a escola dos filhos, sobre como é ser mãe solteira, como está cansada mas precisa de trabalhar para ir ver a mãe à India. Parece que vai adormecer a qualquer momento e está claramente deprimida. Penso como deve ser difícil viver aqui, correr para todo o lado, as filas de trânsito que nunca mais acabam e parecem avançar a conta gotas, contas para pagar, um mercado imobiliário à espera de colapsar.

Nos tempos livres do trabalho (hora de almoço e depois das seis) passeio por Twickenham. Descubro o rio ali mesmo ao lado, barcos cheios de alunos em escolas de remos, uma turista iraniana que me toma por espanhola assim do nada, céus azuis e temperaturas que habitualmente não associamos com o Reino Unido. Um hamburger num pub conhecido pelos adeptos do rugby, um jantar num italiano, sozinha à luz de uma pequenina vela, um almoço no Nandos a matar saudades do frango assado, uma bento box num japonês discreto, o meu fascínio parolo pelos supermercados dos outros países.

Gosto do silêncio das viagens de trabalho. Gosto de observar as pessoas no seu ritmo diário, correndo da estação de comboio para o trabalho, fazendo Facetime pela rua fora, de chinelos e gabardine, de todos os cantos do mundo. Gosto do silêncio do quarto do hotel, mesmo que ligue a televisão por uns minutos até sentir os olhos pesados e vá mudando de canal até me cansar. Adoro as pestes lá de casa mas é relaxante poder sentar-me para jantar sem dois deles berrarem como loucos e o terceiro continuar a provocá-los com parvoíces. Sinto saudades mas não há nada como aquele duche cedinho mas poder aproveitar o pequeno-almoço de hotel tranquilamente. Parece que trabalho mais quando mudo de escritório porque não há rotinas a cumprir depois ou antes do trabalho. Na próxima, se calhar apanho um comboio para o centro de Londres para matar saudades. E depois volto para Twickenham, onde apesar de ter anotecido, a vida parece nunca abrandar.

setembro 29, 2018

Ao Vicente, que fez de mim mãe há oito anos atrás

Há oito anos atrás, neste dia, nascia o bebé Vicente. Eu tinha feito uma carrada de testes de gravidez para ter a certeza de que vinha mesmo aí um bebé, estava a rebentar de felicidade e de pânico simultaneamente. Tantas fantasias e expectativas, tanto tempo para fotografar a barriga que crescia e pensar em nomes e adivinhar-lhe as feições. Era meio dia e quatro do dia vinte e nove de Setembro de dois mil e dez e numa sala de partos no hospital CUF Descobertas chegava ao mundo Vicente Mauricio Tavares, puxado por um par de ventosas e já a dar provas das sua teimosia.

O Vicente foi filho único durante quase cinco anos. Nesse período, vivemos os dois (pai e mãe) centrados nesta pessoa pequenina que não gostava de dormir, que fazia as maiores birras (mal sabíamos o que o futuro nos reservava...) mas que era doce e mimoso, que brincava tão bem sozinho, enfileirando os carrinhos casa fora, que coloria com entusiasmo e fora das linhas, que gritava quando via tractores e moto-quatros, que já gostava de livros e detestava trovoadas. Durante cinco anos, todo o nosso afecto era dele, a nossa atenção não era dividida, estávamos ali ininterruptamente mas apoiar nas noites em que não dormia, quando estava doente, quando mudou de escola. Por ele chorei quando me soube à espera do segundo bebé: então e se não fosse capaz de sentir o mesmo amor? E como se sentiria o meu menino, a dividir o seu espaço com um outro bebé, sem que a nossa atenção fosse toda dele?

Fast forward para os dias de hoje: Vicente tem uma irmã e um irmão que olham para ele com muito amor e admiração. É teimoso como a mãe e só descansa quando consegue o que quer (ou quase, que nem sempre se pode ceder às vontades deles). Chora quando lhe passa pela cabeça que vamos morrer (já disse que não queria morrer porque deixaria de jogar futebol, deixaria de poder comer gelados ou deixaria de poder fazer cocó...) e acha que nunca vai querer sair da casa dos pais (Mãe, quero viver com vocês para sempre!, diz ele, ainda desconhecendo as mudanças que chegarão com quinze, dezasseis, dezoito anos...). Está indeciso entre ser futebolista e piloto (de qualquer coisa, o veículo ainda não está definido mas talvez seja um avião, para que possamos viajar com ele e onde nos vai preparar refeições especiais, segundo ele). Quer começar a falar Alemão comigo em casa, fala Luxemburguês perfeitamente, vai retomar agora o Francês e percebe a maior parte do Inglês que ouve por aí. Tem uma grande necessidade de aceitação e, por isso, nunca quer ter caracóis porque esse não é o cabelo fixe. Quer pertencer a alguma coisa e por isso diz Bom dia! a viva voz a todas as crianças que encontra no caminho da escola. Sabe o nome de todas, mesmo que elas nem desviem o olhar do caminho. O que mais o aborrece são as coisas previsíveis e que deve fazer todos os dias: lavar os dentes, tomar banho, arrumar a mochila. Quer participar nas tarefas da casa: quer lavar a louça, faz birra para cozinhar, gosta de arrancar ervas daninhas ou tratar da relva, limpa a mesa depois do jantar.

Às vezes dá-me vontade de gritar, como quando exclui um dos irmãos das brincadeiras ou quando deixa o saco do futebol cheio de roupa suja no meio do corredor. Às vezes dá-me vontade de chorar de tristeza, como quando nos contou que muitos meninos lhe bateram ao mesmo tempo ou como não compreende só ser violento não é compatível com ser amigo. Mas na maior parte das vezes só me enche o peito de Amor, como quando me olha nos olhos e eu me lembro que ele foi o meu primeiro bebé, quando repete que me adora, quando quis casar comigo, quando o vejo a aprender tanto e a ter ainda mais vontade de aprender. O meu menino faz oito anos e daqui a bocadinho tem barba e bigode mas há-de ser sempre a minha primeira pulguinha.



(porra, como é que já tenho um filho de oito anos?! Aaaahhhhh...)

julho 20, 2018

O ano escolar está quase morto. Viva o ano escolar!

Não vou esconder o alívio quando, no próximo dia 10 de Agosto, terminar oficialmente o ano escolar lá em casa. O mais velho já terminou as aulas na semana passada mas os outros dois continuam, como de costume, na creche e só darei as hostilidades terminadas quando forem cinco da tarde do dia 10 e entrarmos finalmente em férias.

Vamos então por partes e comecemos pelo mais novo elemento da família. O Augusto começou na mesma creche da irmã em Setembro do ano passado. Naturalmente, e como é o terceiro filho, foi talvez a separação que menos me custou, embora tenha sido difícil na mesma. Afinal, ele é o nosso último bebé e deixá-lo numa creche foi reconhecer oficialmente que os primeiros meses estavam decididamente para trás. Como estava com a irmã, a adaptação foi menos penosa - para mim, claro, porque acho que ele não reparou em nada. Desde essa altura, acho que os dedos de uma mão chegam para contar as vezes que chorou quando lá o deixei. Normalmente corre para o colo de alguém, empina-se em cadeiras ou bancos ou sai disparado para explorar a casa de banho. É verdade que começa agora a demonstrar um pequeno mau feitio em potência mas foi sempre um bebé tranquilo e muito mimado pelas educadoras. Zero problemas durante o ano escolar.

Saltemos para o irmão mais velho. Terminou há uma semana a sua primeira classe. As notas aqui vão do A+ ao D e o menino Vicente terminou o ano na sua onda positiva, com um A como a nota mais baixa! Foi muito interessado,  aborreceu-se umas vezes um bocadinho porque sentia que podia aprender mais coisas e que a escola não ia à velocidade dele. Como diria a professora, academicamente falando um ás, o pior é o comportamento. Provocou muitas vezes os colegas, talvez porque ter demasiado tempo nas mãos. Chorou umas vezes desconsoladamente e deixou a professora sem saber como o fazer regressar à realidade. Trouxe alguns recados para casa ("O Vicente não obedece e não ouve a professora", "O Vicente baixou as calças ao Leo", "O Vicente não queria trabalhar"). Levou raspanetes mas e eu o pai rimo-nos das coisas que escreviam porque também não esperamos que ele seja uma criança sem sentido de humor ou sem vontade própria. Preocupámo-nos com a possibilidade de estar a sofrer bullying, explicámos-lhe que os meninos que lhe batem dificilmente podem ser chamados de amigos, pedimos que também ele não se comportasse assim. Acabou o ano a saber ler e escrever em Alemão, a ler apenas em Português e algum Inglês, a saber contar o dinheiro e a ver as horas. Às vezes pergunta-me se eu acredito em Deus e como é que Deus conseguiu criar isto tudo e eu não sei muito bem como lhe acabar com essa inocência e como lhe dizer que não, não acredito. O meu primeiro bebé faz perguntas e pensa sobre o Mundo, não há muito mais que queira para ele.

E terminamos com a pequena mademoiselle, com o terror e a doçura lá de casa. Prepara-se para entrar em Setembro para a escola, para o que aqui chamam Prècoce (ou pré-pré-primária) com o seu feitio e atitudes peculiares. Fez-me sofrer grande parte do ano: todos os dias, quando os ia buscar, as educadoras desfiavam o rol de maldades que tinha feito às crianças da sala (e até mesmo ao irmão), como tinha deitado a comida para o chão, entornado a água sobre a sua cabeça, passado mais tempo na cadeira do castigo do que a brincar. OK, talvez não tenha sido assim todos os dias, mas certamente a maior parte deles. E nessa maior parte deles estava eu, cansada do trabalho, das noites sem dormir decentemente, com um bebé ainda a precisar tanto de mim, a tentar perceber o que raio estávamos nós a fazer mal e a pensar que ela tinha realmente um problema. Depois, como se tudo isto não chegasse, soubemos pelas educadoras que alguns pais, preocupados com os seus filhos, pensavam mudá-los de creche para estarem longe da Amália. Creio que não consigo descrever realmente como isso me fez sentir: posso, ainda assim, dizer que me senti uma nulidade como mãe. Que, mesmo amando profundamente a nossa filha, não conseguia encontrar desculpas ou motivos para o comportamento dela. Que fiz todos os esforços para compreendê-la melhor e amá-la ainda mais, porque era isso de que ela precisava. Que baixei a cabeça de cada vez que me cruzei com outros pais porque não sabia se eram eles os queixosos. Que os compreendo também e não posso ignorar como se deviam sentir magoados pelos seus filhos. No fim, foi o pai da Amália a deitar água na fervura como sempre faz e a fazer-me relativizar (sem nunca esquecer ou menosprezar a situação) toda esta angústia.

O ano escolar está quase a chegar ao fim e eu estou quase a respirar de profundo alívio. O mais velho avança, destemido, para a segunda classe. O mais pequeno liberta-se da sombra (mas também de uma certa protecção da irmã) e avança na creche. Ela começa a escola a sério, a escola em que os educadores não simpatizam muito com crianças muito activas, quanto mais com crianças teimosas, provocadoras e irascíveis. A educadora dela será a mesma que recebeu o irmão, há cinco anos atrás e que me disse algumas vezes que era muito duro lidar com ele. Agora, só tenho de me rir interiormente: ela não sabe o que a espera!

julho 04, 2018

Cucu!

Ainda aqui estou. Parece mentira, passaram três meses desde a minha última publicação e pensei neste blog muitas vezes. Nunca estive tanto tempo sem escrever mas também nunca consegui decidir-me a acabar com este espaço que existe já há 14 (!!!) anos.

São três as razões que me afastaram do blogue. A primeira, e a mais óbvia também, são os meus filhos. Nós bem tentamos acreditar nessa de que quem trata de dois, também trata de três mas a verdade é que cada vez que adicionamos mais um filho à conta adicionamos também o tempo que passamos a tratar dele. São três banhos e três jantares, são horas de deitar diferentes entre eles, são uns menos birrentos e outros mais birrentos que não querem dormir/lavar os dentes/jantar no geral/vestir o pijama/mudar a fralda. Depois de deitados, ainda há os que cantam para acordar os que já dormem, os que batem com os pés na cama dos outros também para os acordar, o que não encontram posição, os que ainda querem mais um copo de água, os que dormem às mijinhas. Praticamente todo o tempo que tenho desde que chego a casa até que me posso sentar no sofá é dedicado a eles. E por isso muitas vezes nem vou ao sofá, passo directamente à cama...

A segunda razão para o meu afastamento chama-se trabalho. Veio disfarçado de promoção no mês de Março e deixou-me muito feliz porque foi o reconhecimento de algum esforço sem que eu precisasse de ter pedido alguma coisa. Não posso dizer que tenha exactamente sido surpresa, talvez apenas a posição em si ou uma ou outra condição mas senti que era o culminar de muito trabalho. Às vezes penso naquelas pessoas que trabalham mais de dez, quinze, vinte anos numa empresa e pergunto-me se alguma vez eu ia aguentar tal coisa. E de repente lembro-me que já trabalho aqui há seis anos, tantos quanto tenho de Luxemburgo também e que não penso mudar. Sinto que finalmente estou no meio de uma família, uma empresa que tem crescido a um ritmo alucinante mas em que as pessoas ainda se conhecem e sinto-me agradecida por todas as oportunidades que já me foram dadas aqui. Então, esta promoção trouxe esse reconhecimento mas também trouxe muito, muito trabalho. Sozinha durante quatro meses e agora finalmente acompanhada pela colega que voltou de licença de maternidade, vi-me a braços com todas as tarefas e todos os novos pedidos e a responsabilidade de montar um departamento do zero. Aqueles bocadinhos que tinha livres durante o dia e em que podia escrever aqui meia dúzia de palavras desapareceram: passei a ter apenas olhos para os meus ficheiros de Excel, a sentar-me nesta e naquela reunião, a pensar e repensar coisas novas.

Finalmente, os outros hobbies. Depois de passar todo o dia no computador, não tenho vontade de fazer o mesmo nos meus tempos livres e normalmente acabo o dia tão cansada que ligar o computador é coisa que nem me passa pela cabeça. Com a consciência de que não consigo chegar a tudo, comecei a preferir ler umas páginas antes de dormir. Ou fazer umas malhas em silêncio na sala. Ou ver algum episódio das séries que seguimos religiosamente. Ou a ouvir um dos podcasts que tanto me têm trazido. O ideal seria poder ditar o post e ele materializar-se aqui nem necessidade de escrever nem editar e por isso não se prevêem muitos posts para os próximos tempos.

E há ainda outra razão, que já confessei aqui noutras ocasiões: sinto que a minha opinião sobre coisas não interessa a ninguém. Não quero julgar decisões de outros pais, não quero falar de publicidade, muitas vezes esforço-me por me afastar da realidade feia e dolorosa lá fora e concentro-me no nosso pequeno e barulhento núcleo familiar. É tão fácil, hoje em dia toda a gente tem uma opinião sobre tudo, há especialistas em baixo de cada pedra, há quem tenha todas as soluções, há quem descreva com detalhe toda a sua vida. Eu aceito e até celebro a liberdade de expressão mas não quero fazer parte. E, como acho que a nossa vida não tem particularmente interesse, remeto-me muitas vezes ao silêncio. Partilho apenas fotos (onde entram os miúdos também, claro) com alguma frequência porque quero cristalizar esses momentos mas sem grandes histórias por trás ou sem extensas explicações. 

Continuo a ler o que escrevem os outros, continuo a seguir famílias que conheço apenas virtualmente quando sinto que são partilhas genuínas, não encenadas. E tenho muitas, muitas saudades de escrever mas de certa maneira não sei sobre o que hei-de escrever. Não quero ser mais uma, não quero pertencer a nenhuma corrente, não quero criar uma realidade alternativa - apenas quero viver confortável na nossa realidade, ouvindo/lendo/vendo sobre outras famílias/pessoas que tentam fazer o mesmo, lendo livros em papel e em digital, procurando ouvir música nova aqui e ali, fazendo o jantar todos os dias ao som da Radar, não me deixando assustar pela quantidade de séries que há para ver, tentando ser positiva e não acreditando em tudo o que vejo/leio/ouço. E, talvez com um bocadinho de sorte, recuperando a musa e a vontade de escrever - noutro registo, quem sabe mas não perdendo a coisa que mais gosto de fazer na vida.

abril 09, 2018

FEM (Fiz Eu Mesma)


Não fiz nenhuma resolução de Ano Novo mas se tivesse feito seria simplesmente esta: aprender a fazer alguma coisa com as minhas próprias mãos. E, mesmo não tendo pensado nisso enquanto começava mais um ano, isso acabou por acontecer e eu comecei a aprender a tricotar.

Já tinha tido muita vontade no ano passado e até mesmo antes do Augusto nascer. Tinha comprado um kit (lãs, agulhas, instruções) para lhe tricotar um pequeno cobertor. Ia ser O cobertor do novo bebé, amarelo porque não sabíamos ainda o sexo e ele havia de se apegar ao dito cobertor e não poderia dormir sem ele. Mas entretanto aconteceu a vida e, mais do que isso, aconteceu que ele quis nascer um mês antes do tempo e eu não tive tempo de pegar nas agulhas. No Verão, ainda comprei mais material e esperava poder aprender com a minha avó mas não houve tempo para nos sentarmos com calma e para que ela me passasse esse conhecimento milenar. Voltei ao Luxemburgo desiludida comigo por não conseguir aprender sozinha e por deixar que o tempo leve sempre a melhor sobre todas as coisas que quero fazer. 

Mas no princípio deste ano descobri esta associação (de que já falei aqui) e deu-se finalmente o click. Encontrei-me com a Miriam, uma americana que tem pouco de avozinha mas que tricota muito e bem, no café da Ouni (a primeira mercearia orgânica e sem embalagens do Luxemburgo). Começámos a sessão em Francês mas depressa mudámos para o Inglês em que ambas estávamos mais confortáveis. Partilhámos um pouco das nossas vidas (eu, três filhos e o caos que se conhecer; ela, sem filhos para poder viajar e fazer todas as asneiras do mundo) enquanto ela me ensinava o ponto mais simples do tricot (o point mousse ou garter stitch, em português não sei como se chama). Explicou-me o básico com muita calma, mesmo quando eu insistia em repetir o mesmo erro uma e outra vez, mostrou-me outros pontos, garantiu-me que mais mês menos mês estaria eu a tricotar sem ver, assegurou-me que o que era preciso era calma. 

E foi mesmo assim. Fiz muitas provas, fui tricotando amostras depois de jantar, quando o cansaço não era tanto. Depois aventurei-me na primeira peça a sério: um cachecol para o Vicente. Saiu horrivelmente mal (comecei com quinze malhas, acabou com vinte e três!) mas a minha primeira peça completa existia e o meu filho podia sair à rua com ela! Depois vieram os cachecóis para a Amália, Augusto, Mário e esta semana acabei o meu, o último da saga dos cachecóis. Pude treinar o mesmo ponto, aprender com alguns erros. Percebi que ainda preciso de olhar muito para as mãos enquanto estou a tricotar para não me esquecer de malhas ou fazer malhas a mais mas de cada vez que acabei uma peça enchi-me também de orgulho. 

Nos entretantos, fui aprendendo coisas sobre a lã (a espessura, os banhos, o peso, a matéria prima), sobre as agulhas (circulares, direitas, gigantes para as camisolas, minúsculas para as meias), sobre os erros mais comuns,  sobre os diferentes usos para os diferentes pontos. Depois de compreender alguns conceitos base, abriu-se-me o mundo do tricot sem que esperasse. É que há muitos termos que não se usam em mais lado nenhum e isso fazia com que eu sentisse que nunca iria perceber nada daquilo. Não percebo tudo, não percebo muito mas já percebo qualquer coisa!

Por enquanto não sou perfeitinha e todas as peças que fiz denunciam ter saído das mãos de uma principiante. Mas o entusiasmo cresceu e muito. Eu finalmente percebi que não se pode tricotar bem à primeira, só com um par de meses de experiência. As pessoas que vejo tricotar bem fazem-no há anos e provavelmente com mais tempo para se dedicar a isso. Eu só tenho podido tricotar ao serão, quando as três pessoas pequeninas cá de casa já se deitaram ou às vezes ao fim de semana à tarde, quando estamos todos juntos a ver um filme. Conto expandir esta actividade para outros momentos do dia (sempre que esperar num consultório ou outro serviço, em viagens mais longas em que não tenha de conduzir, durante as férias) e aprender muito devagarinho antes de cruzar os braços e achar que não tenho jeito nenhum. Nas minhas buscas por tutoriais e ajuda, encontrei muita gente nova que tricota maravilhosamente, contrariando aquela ideia de que tricotar é coisa de velhas! Há tantos, tantos bons recursos online, há projectos colaborativos em que todos tricotam a mesma peça ao mesmo tempo, há bons livros também de gente que começou na internet, há sítios onde as pessoas se encontram para comer e tricotar ou simplesmente para conversar e tricotar! É mesmo incrível!

Tricotar veio ainda lembrar-me que muitas vezes não é possível aprender coisas de uma hora para a outra e que também existem actividades em que, mais do que o talento, o que conta é o empenho e, acima de tudo, a persistência. Oxalá consiga também lembrar-me que o mesmo também se aplica na vida...

março 21, 2018

Seis anos de Luxemburgo!


(esta ilustração é da Julia Bres, que tem este Instragam divertidíssimo sobre viver no Luxemburgo)

Há seis anos atrás saí de um avião e fazia muito frio. Tinha acabado de aterrar com um bebé de um ano e meio naquele que iria tornar-se o nosso país de estimação. Há seis anos atrás começou a nossa vida no Luxemburgo, este bebé tem quase oito anos e um irmão e uma irmã a fazerem-lhe companhia.

Quantos anos pensava ficar, quando aterrei? Não faço ideia mas acho que secretamente tinha a esperança de que fossem menos de cinco, talvez só um enquanto as coisas não se ajeitassem. Eis que passaram seis anos e não estou a ver o fim desta vida luxemburguesa, embora pense sempre muito no que seria voltar a ter a nossa vida portuguesa. Se tivesse de escolher uma razão para que esta nova vida valesse a pena, seria apenas uma - os nossos filhos. Se não tivessemos emigrado, provavelmente teríamos só um Vicente para contar a história, que a vida lá não dava para mais. E depois nunca ia conhecer a rainha das birras e das doçuras, nem o príncipe da tranquilidade que estava cheio de pressa em chegar.

Estes seis anos foram, obviamente, os mais intensos da minha vida: muito chorei, muitas saudades me apertaram a garganta mas, principalmente, muito aprendi e isso não tem mesmo preço. Voltei a falar Francês e a dar uns toques no Alemão; descobri uma empresa em que sempre me senti em casa, mesmo quando as coisas não davam para isso; fiz coisas para as quais nunca estudei e outras a que já estava habituada; conheci gente de todo o mundo, confirmei e desfiz estereótipos, desiludi-me e surpreendi-me muitas vezes; não fiz muitos amigos, é verdade, mas sinto que a minha integração ainda está a acontecer e esforço-me por fazer parte desta sociedade.

O dia da nossa chegada aqui desfez-se um pouco na minha memória. Lembro-me da viagem com os meus pais para o aeroporto e do tristes que estávamos todos, com dificuldades em falar. Lembro-me de tentar suster o Vicente sossegado e adormecê-lo no avião enquanto ele se debatia como um louco. Lembro-me de sair do aeroporto e o dia estar cinzento e de soltar umas lágrimas no caminho para casa. Depois disso tanto, tanto aconteceu! Mudei de emprego, mudámos de casa, pari dois filhos em hospitais diferentes e sempre sozinha, fui muito feliz, chorei muito com a vontade de regressar a Portugal, fizemos muitos planos que concretizámos e ainda mais que continuamos a adiar. Ninguém me vai devolver estes anos que passo fora do meu país, longe da minha família e dos nossos amigos. Ninguém me ajuda a recuperar os nascimentos que perdi, as festas a que não pude ir, as mortes que não pude chorar. Mas é assim mesmo a vida e eu estou grata por termos tido esta oportunidade, mesmo que nos custe pensar no que deixámos para trás.

Nem de propósito, a minha chegada ao Luxemburgo coincidiu com a chegada da Primavera, com tudo de bonito que essa analogia pode trazer. E hoje está mesmo um dia de Primavera à Luxemburgo: gelado mas com um sol radiante, para me lembrar que não, não podemos ter tudo ao mesmo tempo. Resta agasalharmo-nos bem e fazer o melhor deste dia tão luminoso. É como na vida, também.

março 15, 2018

É uma casa cheia!


Talvez a coisa que mais ouvi desde que temos três filhos seja a frase "É mesmo uma casa cheia!". Parece que a opinião geral de ter uma casa cheia é sempre muito positiva mas eu acho que é porque estas pessoas não têm que intervir a cada cinco segundos, ou para evitar que uma irmã estrafegue o mais pequeno, ou para evitar que o mais velho roube as coisas à irmã do meio, ou para evitar que a irmã do meio dê conta dos outros dois. É divertido, é, mas é extenuante na mesma medida e há uns cinco anos que a única coisa que me apetece fazer depois de jantar e metê-los na cama é - justamente - enfiar-me na cama também.

Cada família é diferente, eu sei, mas eu tendo sempre a comparar-nos com as famílias com crianças sossegadinhas, que não armam birras por absolutamente TUDO, que respondem com calma e atenção às nossas tentativas de argumentar e chamá-los à razão. É mais forte do que eu, mesmo que eu o combata todos os dias. É inevitável pensar muitas vezes "Mas o que é que eu estou a fazer mal?". Penso-o várias vezes ao dia, quando estou com os miúdos e não consigo dois minutos de sossego. Mas na verdade eu sei qual é a maior causa dos nossos problemas: com o Vicente, ele era só um. Tinha-nos aos dois concentrados nele a cem por cento, havia tempo para actividades e trabalhos manuais e mesmo assim ele fazia aquela birra ocasional. Fast forward para os dias de hoje: os filhos ultrapassam-nos numericamente, não há atenção que chegue para pessoas de sete, três e um ano, há uma rapariga que tem o feitio mais exasperante que já vi na minha vida, há um bebé que está literalmente a aprender a fazer tudo, há um irmão mais velho que, de vez em quando, se ressente e quase pede para voltar a ser bebé. Colo há sempre para os três, cabeça para parentalidade positiva é que está mais escassa.

Com três filhos, há que repensar o espaço que necessitamos para eles. Não só para dormir ou brincar mas também para guardar todos os desenhos, cartões, colagens, recortes, fotografias e demais trabalhos manuais que vão fazendo ao longo dos anos. Com um filho, ainda se arranjava um espacinho para expor as suas obras de arte. Com dois, a coisa ficou realmente mais difícil. Quando o terceiro começar a artes manuais, o melhor mesmo é mudarmos de casa para alguma que dê para manter um pequeno museu!

Mas há mesmo coisas muito boas quando se tem três filhos. Quando eles se controlam e chegam mesmo a brincar os três - o que aconteceu para aí uma vez, para ser honesta - é delicioso de se ver. Quando encontram uma brincadeira divertida e se riem a bandeiras despregadas, é maravilhoso de se ouvir. Quando se preocupam uns com os outros, quando parece que não sabem viver sem os irmãos, o coração acelera. Quando tomam banho juntos (e não estão ocupados a esvaziar a banheira), é incrível ver o nosso ADN a chapinhar todo junto num sítio tão apertadinho. Quando estão todos a dormir (podia brincar e dizer que é a melhor parte do dia...) e eu ouço as suas respirações tranquilas, sinto-me com toda a sorte do mundo. De vez em quando, no meio das queixinhas, dos gritos, das rasteiras e empurrões, das birras inexplicáveis, dos sonos a que às vezes todos parecem querer resistir, sinto que estamos a fazer um bom trabalho. Vejo-os a rir, saudáveis, a formar a sua personalidade, a progredir na sua educação, a desenvolver a empatia e a sua relação com os outros e, durante alguns minutos, tudo parece estar no seu lugar. Até que um grito noutra divisão me desperta do sonho e vou a correr separar mais uma disputa pela coisa mais banal e desinteressante que temos em casa. Casa cheia sim, monotonia é que nunca mais!

março 01, 2018

Três anos do doce furacão Amália

Amália celebrou o seu terceiro aniversário na Segunda que passou. Como seria de esperar, houve muito choro e muita birra mas também aquela doçura de menina e aquela insistência chata de querer tudo em cor de rosa.

Às vezes penso (mesmo a sério) que ela veio ao mundo com o objectivo de me educar a mim e, em última instância, de me atazanar tanto o juízo que começo a ver tudo vermelho. Passámos estes últimos dias com os meus pais que, mais uma vez, puderam comprovar que ela chora por tudo e por nada: não quer acordar, não quer ficar na cama, não quer um vestido, não quer calças, não quer leite, não quer sopa, não quer ver bonecos, não quer ver estes bonecos, não quer lavar os dentes e, mesmo para acabar o dia, não quer dormir.

É a filha do meio e é mulher, ainda por cima, dizem-me por aí. Eu compreendo esta coisa do filho do meio ser meio esquecido: o mais velho já se desenrasca sozinho; o mais novo ainda precisa de nós para tudo. O filho do meio precisa e não precisa, tudo ao mesmo tempo. Mas a necessidade de atenção desta pequena Amália é tal que uma pessoa fica fora de si. Várias vezes por dia. Ora passa o dia a cuspir, ora bate em todos os colegas da creche, ora aperta o pescoço do bebé com os seus abraços descuidados, ora arranca das mãos do irmão mais velho tudo o que ele consegue apanhar. Foge quando queremos mudar-lhe a fralda, exige cuecas para fazer chichi nas mesmas segundos a seguir, salta na cama quando os dois irmãos já adormeceram.

Talvez a minha luta seja porque ela é mulher e eu lido mal com os constantes desafios. Respiro fundo muitas vezes e tento dar aos seus comportamentos a importância que realmente merecem mas depois de minutos a fio de choro descontrolado, de gritos e inflexibilidade, a coisa dá-se. Como outros miúdos, de manhã não quer ficar na creche e à tarde não quer ir para casa. Às vezes não quero acordar nem regressar a casa para não me deixar abater por aquilo que muitos chamam personalidade forte e eu chamo apenas teimosia pura.

Mas Amália é uma doçura também, com aquela ingenuidade de uma menina de três anos que me pergunta se o passador serve para caçar borboletas. Não pode ver-me a chorar que chora ela também por solidariedade. Não pode passar sem o seu 'Centinho (quer saber onde está, quando regressa da escola, se também vai dormir) para o bem e para o mal. Ri-se de tudo o que ele se ri, imita-o em tudo e segue-o pela casa fora. No outro dia, fez o seu primeiro puzzle pela primeira vez e ficou super orgulhosa. Desenha muito melhor do que o irmão com a mesma idade e faz tudo com muito mais cuidado do que o irmão: com três anos, quase pode tomar duche sozinha.

Não herdou a feminilidade da sua mãe, infelizmente. Mas chega a casa e só quer vestidos de princesa, tudo deve ser cor de rosa, quer o laço e os sapatos da Minnie. Gosta de fios e pulseiras, quer cremes como gente grande e anda a chatear-me para furar as orelhas. É um balanço muito curioso entre todas as coisas de meninas e dois irmãos que não estão obviamente para aí virados. Amália tanto joga à bola como está pela casa varrendo o chão, divide a atenção pela Princesa Sofia e pela Patrulha Pata - no fim, guarda o melhor de dois mundos.

Eu sei que me queixo muito dela. Eu examino as minhas reacções e reconheço que talvez dê demasiada importância às coisas más em detrimento de todas as coisas boas que a nossa filha faz, traz e é. Muitas vezes o cansaço não ajuda nada. Muitas vezes há um irmão que precisa de ajuda nos trabalhos de casa e outro que precisa de colo para acalmar os dentes que aí estão. E ela está no meio, a precisar do mesmo colo, a precisar que cantemos com ela ou que nos sentemos a ver um livro com calma. E eu sei que os outros também precisam de mim mas o meu compromisso é também com ela, para que ela nunca se sinta posta de parte e perca, finalmente, este síndrome de filho do meio.

fevereiro 19, 2018

(ainda há aqui gente)






Ainda aqui estou. Muitas vezes sem vontade de escrever/dizer nada porque sinto que não tenho nada de interessante para dizer/mostrar. Muitas vezes sem qualquer tempo para rabiscar meia dúzia de palavras, dividida entre o trabalho cada vez mais exigente e os filhos a precisarem um olho a toda a hora. Tem feito muito frio por aqui, mais do que no ano passado (se a minha memória não me falha).

Já nevou bastantes vezes mas nunca assistimos assim a um daqueles nevões de parar tudo. Neva, a neve transforma-se em gelo pouco tempo depois e o Sol depois encarrega-se do resto. Acordamos, levantamos as persianas e está tudo branco, sempre sem aviso e sem se fazer avisar. Quando está a nevar, parece que o silêncio se torna ainda mais dominador. Os miúdos têm brincado na neve nas respectivas escolas e nós saímos só um dia para ver a paisagem fora da cidade e levá-los a enfiar os pés em alguns centímetros de neve. Sair de casa nestes dias é um exercício contra a minha natureza, condicionada por anos a viver nos Invernos frios e molhados de casa e por aquele reflexo imediato: está mau tempo, o melhor é nem sair. E como eu sei que estar ao livre ia ajudar a passar o tempo (estas três pequenas feras precisam de muita actividade para não se concentrarem a implicar uns com os outros constantemente). 

Foi Carnaval e este ano os mais pequenos tiveram direito a dois disfarces diferentes, um novo e um herdado do mais velho. Além dos disfarces, o pequeno Augusto começou agora a vestir a roupa que era do Vicente e isso ajuda muito. A Amália teve direito a muita roupa nova (quase toda, diria) por ser menina. Espero que as coisas não tenham passado muito de moda depois de sete anos mas a verdade é um irmão mais velho ajuda muito. E então sapatos!, nem vos conto quantos têm herdado os miúdos da altura do Vicente. Ter apenas um filho resultava naquele luxo de nos podermos concentrar apenas nele, comprarmos tudo apenas a pensar nele. Agora chegou a altura desse luxo compensar! 

No trabalho, as coisas continuam a mudar e neste momento não me sobra nenhum momento para nada que não sejam os projectos que tenho em mão. Antes, encontrava momentos de acalmia de vez em quando, podia respirar fundo antes de me atirar ao próximo cliente. Agora não dá: há imensos relatórios para entregar, ha outras responsabilidades totalmente novas para mim, há um poder de decisão que ainda não tinha experimentado. E aconteceu-me a melhor coisa possível: deixei de trabalhar em equipa porque a minha equipa sou eu! Sim, eu sei que nas entrevistas de trabalho toda a gente diz que adora trabalhar em equipa mas será isso mesmo verdade? Eu cá sei é que é muito mais excitante depender apenas de mim para alcançar os objectivos, não ter que fazer esforços suplementares para compensar o resto. E atenção que eu adorava a minha equipa anterior, mesmo. Mas esta posição fora de uma equipa trouxe-me mais entusiasmo e mais realização. Se calhar descobri uma das minhas vocações: organizar a informação que temos à disposição. À semelhança do que sinto em casa, também agora sinto um prazer em organizar e preparar a informação de forma a ajudar a empresa a entender como correm as coisas nos diferentes mercados. Gráficos e tabelas tem sido comigo e acabo sempre ogulhosa dos relatórios que construo. É parvo, eu sei, mas faz com que acordar de manhã seja menos um sacrifício e mais um novo prazer. 

Entretanto, no pouco tempo livre que me sobra, comecei a tricotar. Primeiro, tive um aula com alguém já experiente (este projecto Mamie et Moi é espectacular e recomedável para quem, como eu vive no Luxemburgo e quer aprender a tricotar) e depois comecei a praticar depois do jantar, quando os miúdos já estão deitados. Ainda estou muito no início da coisa mas já tenho planos para fazer três cachecóis para os miúdos com o ponto mais fácil. Depois, a ideia é voltar a ter uma aula, aprender mais pontos até conseguir aventurar-me em verdadeiras peças de roupa. Sonho com o dia em que consigo fazer roupa para os miúdos, não precisam ser muitas peças, até pode ser só uma peça daquelas essenciais para cada estação mas feitas por mim. Tricotar sabe-me bem porque é uma actividade tão repetitiva que me acalma, ao mesmo tempo que me entusiasmo a ver as peças a crescerem. Portanto, os meus bocadinhos livres são divididos entre o tricot e a leitura, mas a verdade é que estou muito atrasada para atingir o meu objectivo de leitura deste ano (24 livros.. ufff.. estou bem longe). 

E agora resta-me esperar que esta semana passe depressa: os meus pais chegam Sábado para passar uns dias connosco e matar saudades dos miúdos. Nós, por sua vez, vamos poder respirar um pouco, quem sabe mesmo jantar fora a dois, aliviados com um pouco de ajuda. Isso e os planos para as férias deste ano têm ajudado a manter a cabeça à tona deste Inverno que tem sido escuro, cinzento e muito frio. Daqui já me vejo deitada ao Sol...

janeiro 19, 2018

Augusto, um ano (cheio) de vida

Há um ano atrás, perto da uma e tal da manhã, senti qualquer coisa que não devia estar a acontecer mas estava: as águas tinham rebentado. Ainda faltavam cinco semanas para a data prevista para o nascimento daquele bebé, não era possível que ele estivesse a querer ver o Mundo já. Num pânico controlado, liguei para a unidade de ginecologia e perguntei o que devia fazer naquele caso. Venha com calma para o hospital, disseram-me do outro lado da linha, mas venha. A mala ainda estava meio por fazer, enfiei meia dúzia de coisas de que precisava lá dentro. Acordámos os miúdos, que dormiam tranquilamente, enfiámos-lhes os casacos e gorros e botas e lá fomos os quatro para o hospital.

Fazia muito frio, nessa noite, como aliás nos dias que se seguiram. O M. ligou, sem querer, as luzes de nevoeiro porque não estávamos com o nosso carro, tínhamos um emprestado da oficina. Quando estamos mesmo a entrar na auto-estrada, um carro da polícia a fazer-nos sinais e eu já a pensar naquelas situações nos filmes em que a senhora grávida já vai aos gritos dentro do carro. Eu não gritava e eles queriam apenas alertar para o facto de não haver nevoeiro... Luzes apagadas, voámos até ao hospital.

Fui vista pela parteira de serviço, que ligou à minha médica para a avisar. Segundo ela, podiam passar semanas antes do trabalho de parto começar, por isso era melhor que eu me dispusesse a aguardar calmamente... mas no hospital. Levaram-me para um quarto às escuras, onde já dormia uma grávida de risco, tentando evitar o seu parto há já algumas semanas. Fazia muito frio porque estava uma janela aberta. Eu estava doente, devia ter uma laringite ou qualquer coisa do género e tremia debaixo dos lençóis. As contracções tinham começado e eu, moderna que sou, descarreguei à pressa uma aplicação para perceber a sua frequência e intensidade. Pelas minhas contas, o parto não devia estar longe. Pelas contas da enfermeira da manhã, não havia sinais de trabalho de parto no monitor fetal. Mas ela via como me contorcia com dor e, para não arriscar um nascimento ali no quarto, mandou-me para o bloco de partos. Passaram duas horas, um animal dum anestesista e muitas palavras de encorajamento de parteiras e médica - eu tinha mais um bebé, sozinha, sem o abraço do pai. Eu gritava O que é, o que é? e só depois de alguns segundos me disseram que era um rapaz e eu soube que tinha nascido o Augusto.

O resto já se sabe. Nascido com 35 semanas e 3 dias, o Augusto precisou de ir para a Neonatologia, embora tudo indicasse que era saudável. Passaram-nos brevemente pelos meus braços para que o beijasse antes de entrar na incubadora e eu senti-me mais sozinha que nunca. Parir um bebé e depois não ter bebé nenhum ao meu lado abriu um fosso no meu peito que só foi alargando com todas as horas que passei sem o ver no primeiro dia. Acho que o curei quando pude passar duas horas inteiras pele com pele, no escuro da Neonatologia. Deitados os dois, só a estarmos, a aprendermos a ser mãe e filho, o meu instinto de protecção a gritar milhões.

Fast forward para hoje. O Augusto comemora o seu primeiro ano, que, como sempre, passou incrivelmente depressa! Dos nossos três filhos, é talvez o mais bem disposto e bonacheirão. Como os outros, precisa de muito colo, muitos beijinhos, muitos abraços. Dá-se bem com toda a gente menos com o seu pediatra, apesar da sua gentileza e empatia. Como os irmãos, faz um ano e só dormiu duas vezes a noite toda. Se não pararem de lhe dar de comer, ele não pára de comer. Mexe em tudo o que está ao alcance dele (só na semanas passada conseguiu partir duas garrafas de vinho, mea culpa...), sabe o que é dançar, bater palmas e dizer xau. É o nosso último bebé e por isso custa mais sentir que o tempo avança sem piedade. Vou aproveitar muito que ainda o posso esborrachar com beijos!

janeiro 03, 2018

Olha, já estamos em 2018!

Quase um mês. Quase um mês sem ter tempo ou (muitas vezes) paciência para escrever uma linha que fosse. Quase trinta dias a ter rascunhos de posts na cabeça, a imaginar inícios e títulos, a pensar se fazia sentido escrever sobre isto ou aquilo e depois nunca me sentar para o fazer. É duro ser mãe de três, é verdade, mas o que é verdadeiramente duro é dormir (muito mal). Com a rotina (banhos, pijama, jantar, acordar, roupa, escola/creche) dou-me eu bem. O que não suporto é a falta de sono. E eis que, quase chegados ao primeiro ano completo do senhor Augusto, ainda não se dorme a noite toda nesta casa. Não vou descrever outra vez o suplício, embora agora sinta que a exaustão aumentou mesmo exponencialmente.

O mês de Dezembro não vai deixar saudades. Primeiro foram os rapazes com gastroenterite, coisa leve mas ainda assim de estar vigilante. Depois foi a pequena que com tanta, tanta tosse acabou por ficar internada na clínica pediátrica durante quatro dias para poder receber o oxigénio que tanto lhe faltava. Depois fui eu a cair com a gastro, enquanto tomava conta dela no hospital. Ela teve finalmente alta, eu melhorei e eis que as -ites voltam a atacar: eu com um ataque monstruoso de sinusite, ela com duas otites mesmo acabada de sair do hospital. Frequentei mais as urgências da clínica pediátrica e alguns médicos do que alguma vez imaginei possível. Não foi nada de grave, é claro, mas a sucessão de doenças e o facto de eu ter adoecido ao mesmo tempo que eles acabou com as minhas forças. Cheguei mesmo a chorar de desespero quando os deixei na creche um dia por alguns minutos: ela cheia de dor de ouvidos, o pequeno com alguma tosse mas eu a precisar que um médico me visse e me medicasse. Quando pensarem que a vida de emigrante é muito linda, pensem também como seria se não tivessem ninguém para vos ajudar - nenhuma família, poucos amigos, ninguém para ficar com os miúdos enquanto vocês mesmo tratam da vossa saúde. Foi a pior semana dos últimos tempos e rezo para que esta combinação de doenças nunca mais volte a acontecer.

Ainda conseguimos ir a Portugal. Foi a primeira vez que fomos de carro nesta altura do ano e, meteorologicamente falando, não foi horrível. Para lá, o primeiro dia (atravessar França de uma ponta à outra) é extremamente difícil para mim mas mais leves para os miúdos; o segundo dia passa num instante para mim e numa eternidade para eles, que estão realmente fartos de estarem presos no carro. No regresso, atravessamos Espanha sem grandes queixas e chegamos a Bordéus com alguma tranquilidade; o segundo dia é o pior, pela extensão do caminho e o humor dos três pestinhas. Nada que não se faça e felizmente as más memórias apagam-se depressa, é engraçada esta nossa capacidade. Um pouco com a memória do parto: agora estás a maldizer a hora em que resolveste engravidar, nos minutos a seguir só já pensas naquele pequenino ser que ajudaste a vir ao mundo e nada mais importa. Chegados lá, a melhor prenda que Natal que pudemos ter foi tempo para respirar, oferta da nossa família, claro. Ao ficarem com os miúdos sempre que possível, ajudaram-nos a esquecer a semana interminável que tínhamos acabado de passar (esta não foi tão rápida de esquecer, infelizmente). Viemos carregados de presentes para os miúdos, de Sol e temperaturas invernais agradáveis, a respirar melhor mas também com aquele bichinho de poder voltar à nossa casa. A um quilómetro da fronteira com o Luxemburgo, um nevão a parar o trânsito porque estas pessoas nunca conduziram na neve e não sabem como se comportar...

E finalmente terminou 2017. Eu cá não dei por nada porque, costume desde que a Amália nasceu, estava a dormir. Quer dizer, acabei por saber quando tinha chegado a meia-noite graças aos inúmeros foguetes e outros espectáculos pirotécnicos que se faziam ouvir um pouco por todo o lado. Mas o sono era tanto que não fiz questão de estar acordada e, já que não tínhamos planos com mais ninguém, jantámos todos juntos (depois de um dia dos demónios fechados em casa), eu e o marido bebemos uma garrafinha de Esporão e depois acabou 2017 para mim. Já perdi a fé nas resoluções de Ano Novo mas há uma coisa que gostava mesmo que mudasse neste novo ano: gostava de ter mais paciência para os miúdos. Gostava de os entender melhor e, sobretudo, de vê-los como as outras pessoas os vêem: curiosos, livres, divertidos, inteligentes. Passam-se noites em que penso no que é que estou a fazer mal e sei reconhecer que muitas vezes estamos demasiado cansados para prestar toda a atenção necessária a cada um deles. Eu sinto que estamos a tentar fazer o melhor mas também que a coisa estoura muitas vezes por dá cá aquela palha. Tenho esperança de poder dormir mais este ano e, descansando um pouco mais, espero poder não me irritar por tudo e por nada. Não prometo mas gostava de chegar aqui no final do ano e riscar o meu únido desejo para este ano. Acrescento apenas mais um, de que me lembrei agora mesmo: gostava de aprender a tricotar mas as minhas tentativas até agora dizem-me que talvez tenha que ficar para uma próxima encarnação!

De resto, desejo a todos que ainda lêem este (muitas vezes moribundo) blog um Feliz Ano Novo! Espero que vos traga aprendizagem, tempo, paz de espírito e muito amor. E, já agora, algum dinheiro, que uma viagem ou dois ou três livros não se compram sozinhos!