Hoje é feriado e isso não ajuda: a cidade está quase deserta. À parte dos polícias que trocam de turno e um ou outro carro que desce a rua da Torre do Pessegueiro, não encontro ninguém. Nenhuma manifestação espontânea com cravos, ninguém a celebrar a liberdade, nenhuma palavra de ordem ecoa pelas ruas desertas contra as paredes descascadas.
Os dias passam por mim sem que eu saiba a quantas ando, a licença de maternidade é um fim de semana permanente na minha cabeça. Pego na mochila e faço-me ao caminho pelas ruas que sempre conheci. Mesmo assim, constato que não conhecia muitos nomes das ruas por onde passo: as minhas coordenadas sempre foram mais emocionais do que geográficas. Por entre portas e janelas, as cortinas balançam com a aragem quente deste dia que acordou em nevoeiro cerrado. Às vezes escuto uma televisão no programa da tarde, uma voz que pergunta se a carne está temperada, o som de pratos a serem lavados num lava-louças de mármore. Lembro-me nesta minha expedição que há ruas em que os carros não cabem e vejo que há muitas casas fechadas por onde passo.
A medo, espreito um jardim que sempre tive curiosidade de conhecer. É frondoso, misterioso mas parece abandonado. Como abandonadas estão tantas casas, montras antes cheias de vida, prédios inteiros que só se aguentam de pé sabe-se lá como. É um caminho feito de memórias de infância guardadas num espaço a que não acedo com frequência, percursos gastos e outros tantos que nunca fiz vezes suficientes. Já no final, terras a perder de vista, como se o mar estivesse lá bem ao fundo. Limoeiros tão carregados de frutos que a imagem de uma tarde se materializa imediatamente na minha cabeça. O silêncio do feriado e os bancos vazios de senhoras a cochichar. Tudo debaixo de azul, tudo entre a luz e a sombra, o calor precoce de Abril. E eu, como uma estranha, pelas ruas que antes não via mas conhecia tão bem.