Imaginem o cenário: um chalet de escuteiros, em pleno bosque. Uma casinha de madeira preparada para a festa de fim de época do clube de futebol dos miúdos. Carnes na grelha, vinho, cerveja e champanhe para quem prefere bebidas mais leves. Saladas frias, tartes e bolos. Tudo organizado pelo treinador dos miúdos, incansável.
Imaginem os protagonistas: os Bambinis da época 2016/2017, sempre à procura de uma bola de futebol para improvisar um jogo qualquer. Os pais, os irmãos dos miúdos à volta das mesas, conversando em três línguas diferentes, partilhando as traquinices dos miúdos. Bebés e miúdos crescidos a correr pelo bosque, à procura de um tesouro que o treinador escondeu algures.
Estava tudo bem. Tínhamos comido e bebido, o Vicente tinha jogado muito à bola, a Amália tinha fugido vezes sem conta e arranjado mais umas quantas cicatrizes nas pernas e outras tantas marcas de urtigas. Alguns pais já tinham ido embora, nós decidimos que era a nossa vez. Despedidas feitas, recolhemos os miúdos e vemos um dos pais a passar a correr, sangrando de um dedo. Normal, pensei eu, talvez se tivesse cortado numa garrafa. Mas quando realmente saímos do chalet, percebemos que algo de grave tinha acontecido. Outros pais pediram aos miúdos para brincarem no bosque, nós ficámos frente à entrada porque estávamos de saída. O Mário foi perguntar o que se passava e como podia ajudar, está-lhe no sangue, é muito mais forte do que ele. E foi quando voltou, com outro pai e algum gelo, que se deu o primeiro choque: o outro pai não se tinha apenas cortado - metade do seu dedo tinha ficado nas grades do campo de futebol.
Tentando acompanhar o pai, que ia salvar o que podia do dedo para que se pudesse coser depois, o Vicente percebe o que se passa e vê, ao mesmo tempo do que eu, o resto do dedo nas grades. Foi o terror e faltaram-me os braços para agarrar os meus três filhos e garantir que estava tudo bem. Já tinham chamado a ambulância e tentavam manter a calma lá dentro quando outro pai vem a sair e, subitamente, cai redondo no chão. O Vicente começou a chorar ainda mais e eu já não sabia o que havia de pensar: naqueles segundos iniciais, não era claro se o senhor tinha apenas desmaiado. Aparentemente, foi a reacção àquela visão que o fez perder os sentidos.. Eu continuei abraçada aos dois (Vicente aterrorizado, Amália choramingando por solidariedade com o irmão) e com uma mão no carrinho do bebé.
Depois de nos assegurarmos que havia gente suficiente para tomar conta dos dois acidentes, fomos embora. No carro, explicámos que é necessário falar sobre estas coisas e não guardar nenhum medo cá dentro, que o pai do menino seria tratado no hospital e que voltaria ao "normal". A noite prometia ser agitada mas teve apenas um breve ataque de sonambulismo sem consequências de maior.
Talvez o maior terror e desconforto tenha sido o meu. Não consigo tirar da cabeça a imagem do dedo sobre as grades e a expressão do Vicente quando percebeu o que se passara. Não consigo ainda entender como é que um dia tão tranquilo e inofensivo pode acabar numa sucessão de gritos e algum terror. As imagens repentem-se sem fim na minha cabeça. E sei que há-de passar mas agora é só no que penso. Nisso e nos dois pais acidentados e em como é que posso proteger os nossos filhos da violência e da dor.