junho 26, 2014

Dias de Sol



Eu gostava que todos os dias fossem assim. Que fossem fáceis e cheios de Sol e eu me enchesse sempre de vontade de levar o miúdo ao parque porque afinal não está a chover e é quase um crime ficar em casa. Gostava de não ter de pensar no almoço e de seguida no jantar e na roupa que ficou por tratar, bem como o chão a precisar de uma aspiradela. Dias em que me posso sentar num banco à sombra e ter a sorte de ler um ou dois capítulos de um livro sem que ele se aborreça de estar a brincar ou em que falamos do medo que ele ganhou a moscas e de como gosta de correr atrás de borboletas. Mesmo que ele me faça levantar mil vezes do banco para empurrá-lo no baloiço porque insiste que não quer aprender a dar balanço, ainda que às vezes já o faça inconscientemente.

Nestes dias, consigo fazê-lo esquecer as birras e que seja razoável. Talvez porque esteja Sol e a temperatura amena e isso também o amoleça como a mim. Ajuda-me nas compras e a única exigência que faz é segurar os seus iogurtes até chegarmos à caixa. Vamos no carro e quer ensinar-me a conduzir, não é assim mãe, tira daí a mão, faz pisca! Eu rio-me e ele pensa que já sabe muito sobre condução. Com tempo para explicar-lhe a sequência do que vamos fazer, consigo que aceite sair do parque sem birra e almoce sem as suas esquisitices, ele que na escola come tudo e duas vezes e em casa não pode ver uma graínha do tomate no prato que é logo razão para começar a bufar. Já não dorme a sesta, é verdade, e que jeito me daria ainda deitá-lo umas boas duas horas só para ficar no sofá a sentir o silêncio! Mas em compensação vai brincando nos bocadinhos em que se esquece de mim: caso contrário, cola-se a mim como se não me visse há meses. Eu sou o parque infantil preferido dele, mesmo que muitas vezes chegue ao final do dia completamente derreada pelas voltas que ele me dá.

Nem todos os dias podem ser assim porque a vida real leva muitas vezes a melhor e há pouco tempo a dividir entre as tarefas caseiras mínimas, a alimentação que não pode faltar, o banho que ele agora detesta mas que é absolutamente necessário depois de um dia de piratices na escola, os momentos de relaxamento pós-jantar. Às vezes gostava de não me sentir tão cansada para as coisas mais simples mas as coisas são como são e vamos vivendo um dia de cada vez, que é a única maneira de seguir em frente sem perder o juízo.

junho 17, 2014

Memórias (para quem tem pouco jeito para o DIY)


É mesmo assim: quem não tem cão, caça com gato. Eu, já o disse algumas vezes, não tenho jeito para os trabalhos manuais. Não coso, não pinto, não construo, só me sobrou um gostinho pela cozinha. Também não tenho boa voz para cantar e para tocar alguma coisa ainda me falta o tempo e a paciência para treinar muito. Só que às vezes tenho ideias e desenrasco-me a concretizá-las, mesmo que à minha maneira.

Desta vez nasceu um livro com uma história em imagens daquilo que o Vicente tem feito, países que tem visitado, disparates e momentos doces que eu e o pai vamos coleccionando digitalmente. Eu adorava fazer muito mais: gostava de ter filmes, de lhe gravar as conversas que começam a ser longas e cheias de argumentação que só faz sentido naquela cabecinha. Gostava de lhe desenhar livros e talvez ainda possa pensar em escrever-lhe uma história mas agora interessa-me mesmo que ele possa ter objectos que lhe contem a história que é a dele e, em última análise, também a nossa. Todos nós conhecemos aquele amigo que não tem nenhum álbum ou os outros que têm tudo e mais alguma coisa mas todas as maneiras são boas e válidas para guardar recordações. Agora já abrandámos muito as fotografias porque nos primeiros tempos era literalmente demais: estávamos mesmo sempre prontos e de máquina em punho.

As ideias vão surgindo naturalmente. O primeiro livro privilegiou as palavras, este segundo fica-se pelas imagens, que também dizem muitíssimo sobre o que têm sido estes anos com ele. Reparei que não tem quase nenhuma fotografia de birras ou de momentos menos bons mas não é de maneira nenhuma intencional: acho que nunca me ocorreu pegar na máquina quando ele está a berrar desalmadamente ou quando bate os pés se não acedemos a algum pedido! E de repente já estou a pensar no que posso fazer a seguir!

junho 16, 2014

Luxembourg, mon amour


Eu, quando não estou a morrer de saudades do Sol de Lisboa e das suas calçadas, becos, fachadas, avenidas, rio, restaurantes, subúrbios e colinas, estou ocupada a gostar do país onde me vi exilada desde o primeiro dia de Primavera do anos de 2012. E, por muito que me custe a distância (sim, é já sabido, custa-me), sinto que é o meu dever exaltar a beleza, o silêncio e a tranquilidade deste pequeno grão ducado, entalado entre a Bélgica, a França e a Alemanha.

O Luxemburgo pode não ter mar nem um rio que se veja (este das imagens não conta); pode não ter as altitudes suficientes para ter um miradouro digno desse nome (bem, alguns castelos podem desempenhar esse papel); pode não ter uma capital com mais de cem mil habitantes. Mas tem coisas em abundância: os campos cultivados e verdes todo o ano (excepção feita à época da neve); riachos que correm livres e a que o comum mortal tem acesso sem precisar de uma licença ou bilhete especial; aldeias em que quase podemos tocar a paz que se faz sentir; boas estradas, que vão ficando cada vez mais vazias quanto mais avançamos para Norte. E também guardou nesta zona do país um número bastante razoável de memórias da Segunda Guerra Mundial, que ajudam a não apagar da História o que a Europa viveu nesse período.

Há uns anos atrás, eu achava que não conseguiria sobreviver no campo mas neste momento não há nada que eu deseje mais do que o som do ventos nas espigas, o horizonte salpicado por eólitos, as Ardenas mesmo aqui ao lado, o tempo que parece não existir nestas aldeias isoladas. Eu ficava bem contente se pudesse ter acesso aos bens de primeira necessidade e à educação do miúdo e estar longe do resto. Salvaguarda-se, claro, que também tivessemos acesso aos nossos meios de subsistência, que eu cá não acredito (totalmente) na história do amor e uma cabana. Se eu não sentisse tanta falta de Lisboa, daquela maneira que quase dói fisicamente, era aqui que eu não me importava de estar, quem sabe se finalmente conseguindo manter uma horta por mais de duas semanas, com direito a animais de estimação e um grelhador para os dois ou três dias de Verão que passam por aqui. Por isso, nos nossos passeios não me limito a ver ou admirar: acho que sonhar é a palavra que descreve melhor o estado em que fico nestas viagens por aí.

junho 12, 2014

Pequenas coisas *

Eu tenho um certo problema com a escrita: parece-me que apenas sou capaz de escrever sobre aquilo que vivi ou aquilo que sei, é como se de repente a minha imaginação tivesse desaparecido para parte incerta e eu não conseguisse mais fantasiar sobre nada. Por isso é-me mais fácil escrever estas pequenas crónicas sobre o quotidiano, sobre os sítios longínquos que visitei, os sítios familiares onde me movo, as pessoas que me vão transformando, os desafios e desgostos profissionais, o país com que sonho e o país que me abraçou. É claro que esta espécie de deficiência ou de falha não é impeditiva, posso escrever mesmo assim mas não posso criar tão livremente como eu sonhava. Mesmo assim, não penso que seja uma condição definitiva: é mais o resultado de falta de treino e de disciplina do que apenas inaptidão minha. Pelo menos, é no que quero acreditar.

De qualquer maneira, de vez em quando aparecem pessoas que, escrevendo sobre a sua vida, descrevendo apenas episódios aparentemente banais e desprovidos de qualquer sentido revelador, me conquistam e eu, limitada pela minha aparente falta de imaginação, passo a acreditar que o que é realmente importante é a maneira como se contam, como se escrevem, como se olham as coisas. Não importa fantasiar se o resultado se traduz desastrosamente num par de linhas sem sentido, se o leitor não sente a urgência de continuar a ler. Já li um pouco de tudo, mais ficção do que não ficção, é claro, e sei que o que interessa é a maneira como as palavras nos transportam para um sítio fora de nós, real ou imaginado. Mas as histórias banais, os relatos de vidas de gente como nós, mesmo que necessariamente misturadas com o reino da fantasia (porque já não contamos as coisas como realmente se passaram mas como achamos que se passaram, com tudo o que de adulteração isso traz à escrita) têm a vantagem, chamemos-lhe assim, de funcionarem como uma espécie de espelho, eis-me reflectida na miséria do outro, eis que a minha história não é tão especial, eis que alguém parece saber exactamente do que falo. E eu sinto-me perto destas pessoas, das que sentem coisas que podem ser mal interpretadas, que reconhecem a distância a que estão da perfeição, que falham mas que voltam a tentar, que não se incluem exactamente nos cânones do comportamento exemplar, que são ainda necessariamente um pouco ficcionadas mas dolorosamente reais.

Eu nunca fiz parte realmente de um grupo ou um tipo de pessoas, pelo menos é assim que me vejo. Eu sou, nos meus padrões, uma pessoa aborrecidamente normal mas até a gente como eu acontecem coisas na vida, há acontecimentos que nos marcam para todo o sempre, há sonhos em que gritamos mas queríamos esquecer, há tristeza e melancolia em doses industriais, assim como brilhos nos olhos com as coisas mais pequenas, há maneiras peculiares de sentir e gostar e aprender, há desgostos, incertezas e conquistas que nos trouxeram até aqui, até ao tempo presente. Se calhar é isto que explica a empatia que sinto pelas pessoas normais, com vidas normais, com lutas normais e que sinto um inexplicável abismo entre mim e as pessoas com vidas perfeitas, idealizadas até à náusea, a quem tudo sorri mesmo naqueles dias em que apenas nos apetece mandar o mundo à merda, perdoem-me a expressão. E hoje em dia há cada vez mais gente assim e eu sinto-me cada vez mais longe dessa pantomina. Eu sou chata e real mas isso não significa que a minha vida seja desprovida de emoções, episódios, charadas. E por isso fico presa nessas pequenas coisas, naqueles momentos que nos tornam mais reais, um pouco mais humanos, cheios de dúvidas e a precisar de confiar na nossa intuição.

* porque comecei a ler este livro e de repente sinto-me ligeiramente assombrada pela simplicidade e riqueza de uma vida normal.

junho 10, 2014

Luxemburgo, trinta graus


Não podem ser sempre os mesmos a rejubilar com o tempo quente e seco e por isso este fim de semana fomos nós. Já sei que o tempo em Portugal tem andado um bocado instável mas paciência, isso é basicamente o resumo de todo o nosso ano aqui!

Parece-me óbvio que qualquer lugar fica mais bonito com Sol e com um calorzinho que permita disfrutar das condições naturais que o(s) nosso(s) país(es) nos oferecem e sim, eu sou vítima desse cliché que diz que só damos valor a uma coisa quando a deixamos de ter. Sempre fui mais uma pessoa do Verão, do calor do que outra coisa qualquer, ou não fosse eu uma alentejana orgulhosa do quarenta graus à sombra na cidade que me viu nascer. É que em Portugal o Sol aparece muitas vezes e, melhor ainda, muitos dias seguidos. Tantos que uma pessoa tem tendência a achar que é essa a regra. Até pode ser mas isso não é bem assim quando se escolhe o Luxemburgo para viver.

Este fim de semana pudemos sentir na pele a excepção à regra e tivemos calor mas daquele do bom e em quantidades irrespiráveis. Pudemos sair um pouco e confirmar como as árvores estão frondosas e verdes, derramando o fresco da sua sombra pelas estradas; como os campos ficam ainda mais verdes e bonitos quando, em contraste, o céu deixa de estar cinzento; como correm os riachos bem frescos fora dos percursos habituais. Aqui faz-se muito campismo e os parques já vão estando cheios nesta época. Além disso, parece-me que as pessoas precisam de condições menos favoráveis para estar no campo, estão mais habituadas aos caprichos do tempo luxemburguês.

Confesso que acho estranho ver tantos pequenos cursos de água sem que as pessoas estejam verdadeiramente a desfrutar deles e da natureza envolvente. Esperava ver mais gente, margens fora, com o farnel espalhado pelo chão, em aglomerações mais ou menos espontâneas mas vejo que isso deve estar reservado para países onde a espontaneidade também se vê no resto. E agora, depois de ver as previsões para os dias que aí vêm, já me passou a alegria: não há calor que sempre dure nem frio que nunca acabe. Se bem que aqui...

junho 03, 2014

Hoje...

... gostava de escrever um post extremamente positivo e inspirado mas não vou ser capaz. Porque passei o dia inteiro em frente a um ficheiro Excel, calculando e recalculando, apontado para o lucro, revendo números todo o santo dia, a minha falta de rapidez a ser sinónimo da minha falta de aptidão, que eu sou uma mulher de letras, não de números, não não não. Faziam falta mais provas de que eu sou a pessoa errada no lugar errado? Não faziam, que isso está já bem claro na minha cabeça mas hoje foi um dia especialmente pródigo em provas desse género. E colegas de trabalho, podes contar com eles, perguntam vocês? Só se for para atrapalhar e tornar as minhas conquistas aparentemente simples em labirintos insoluveis, onde há uma palavra que é estrictamente (o acordo ortográfico não vencerá) proibida e que é: responsabilidade.

Portanto, eu saio no final do dia, deixando para trás as chatices que eu não criei, não posso resolver mas das quais vou ser culpada na mesma, e dirijo-me ao meu filho que basicamente me salva o dia, quando a sua educadora me entrega o presente do dia da Mãe (sim, em maiúsculas, porque já não se sabe se ser mãe nos dias que correm é um dever ou um prazer e eu esforço-me muito para que seja as duas coisas ao mesmo tempo) porque aqui o dia da Mãe é só no Domingo. Por isso, enquanto todas as mães que conheço se estavam a babar com as devidas homenagens no primeiro fim de semana de Maio, eu estava de mãos a abanar e é apenas justo que, dada a distância a que fica este pedaço do Mundo, eu possa agora festejar sozinha enquanto as mães que eu conheço já tiveram a sua quota parte de festa.

Mas esqueci-me que ainda havia o jantar, que não se faz a si mesmo, embora hoje em dia já existam alternativas catitas, e que não posso dobrar as pernas porque ontem exagerei na primeira sessão de ginástica em casa e que eu juro vai ser o golpe final na banha que acumulei indevidamente até agora e não posso andar os 30m que estavam no plano de hoje. E então fico a sentir-me um pouco mais miserável e, não contente, dá-me para ver fotos de miúdas sãs e com juízo e acontece que já não sei como regressar a esse ponto. É como se jogasse Sonic e me tivesse esquecido de gravar o jogo - perdi todo o meu progresso e tenho que, dolorosamente voltar ao início. Com a desvantagem que toda a gente sabe que não há nenhum glamour em gente que se exercita em casa, que estende a roupa na cave e ainda sonha em ter tempo para as coisas de que gosta.

E depois o miúdo até se deita pacificamente, exige beijinho e abraço para se poder entregar ao sono, não sem antes querer abrir garrafas de vinho, tirar lasanhas do forno ou colar mais quinhentos cromos na caderneta do pai. E chorar para a maioria destas coisas. E eu volta e meia a pensar neste debate que por aí vai, disciplina ou deixa andar, muita teoria e pouca prática, muita vontade de fazer bem desajustada da realidade. Eu deixei de acreditar nos conselhos quando os livros me diziam que aos quatro meses o bebé havia de dormir bem, que a mãe havia de poder descansar se fizesse isto e aquilo, tudo técnicas que devem ter resultado em todos os bebés do Mundo menos no meu. Isso é grave? Claro que não, só valeu para eu aprender a escutar mais a minha intuição e menos os especialistas. Porque o meu bebé, como eu, não é os outros.

E no final do dia, neste exacto momento em que vos escrevo, em que finalmente dormimos apenas com o colchão novo (e dispensamos os outros que nos destruíam as costas), em que o silêncio é maciço e se pode quase sentir, em que o Sol decide que talvez agora seja a hora de descansar, em que a solidão se espalha pelas ruas onde se ouve apenas o automóvel ocasional de quem certamente não vive aqui, eu respiro fundo no escuro do nosso quarto, tratando de me convencer que amanhã vai ser um dia melhor. Honestamente, sei que isso é provavelmente mentira, admito. Mas estes breves instantes de engano são o suficiente para eu largar as reservas, fechar os olhos e me entregar à imensidão desta pausa. A vida só recomeça daqui a umas horas.