outubro 21, 2014

Londres

Desta vez, vim de lá convencida que nunca poderia viver lá: é uma cidade gigante (especialmente se comparada com a área do Luxemburgo-país), com demasiadas pessoas em todo o lado e com hora de ponta nos transportes que é... basicamente a toda a hora. Aqui, desterrada neste fim de mundo, aprendi a dar valor às viagens de dez, quinze minutos para as coisas mais essenciais, sem ser apertada e empurrada em espaços demasiado quentes e claustrofóbicos, sem grandes massas de turistas a bloquear o acesso a tudo.

Mas é claro que Londres é mais do que isso. São os mercados de rua cheios de gente de todos os continentes, são as pessoas a fazerem fila para tirar uma fotografia com o Big Ben como pano de fundo, são os cafés todos diferentes, cuidadosamente pensados e cheios de gente dentro e à porta num Sábado à noite, são as pessoas cheias de sacos de compras em frente ao Harrods, são os museus à borla, é o número interminável de actividades entre as quais escolher, é a comida de todo o mundo, o Tamisa debaixo daquele cinzento-Londres e as torres de vidro onde se fazem os grandes negócios, é a cidade a estender-se até se perder de vista, são os grafitis e as ruas transformadas num museu ao ar livre, são as fachadas dos apartamentos para onde nos queremos mudar já, são os jardins cheios de Outono e os cemitérios pouco mórbidos, são as excursões intermináveis de miúdos e graúdos, é a meteorologia melhor do que no Luxemburgo mas sempre pior que Lisboa, são as lojas abertas ao Domingo e até durante vinte e quatro horas, é o design a espreitar por todos os lados, são os comboios a horas e os autocarros de dois andares tão populares entre os menores de cinco anos, é escolher entre hamburguer e lagosta e nunca ter provado o fish'n'chips, são as cervejas que parecem chichi, é o lixo por todo o lado e nunca totalmente apanhado, são as linhas de metro acima e debaixo de terra. É uma cidade maravilhosa para passar umas temporadas, especialmente se se tem tempo e (bastante) dinheiro, há gente e actividades para todos os gostos e bem, uma parte do meu coração vive lá há uns tempos, agora em Earls Court. Se precisasse de razões para voltar, ela bastaria, com a sua casa de bonecas e as suas ideias para nos levar a sítios novos. E é por isso Londres que te quero tão bem - porque fazes o mesmo por ela.

outubro 15, 2014

À segunda

À minha frente, duas colegas de trabalho (uma delas com o pequeno bebé de seis meses ao colo) falam sobre as maravilhas da maternidade, tendo ambas sido mães há pouco tempo atrás. Estão a comentar como tem sido, se eles dão muito trabalho, se comem e dormem bem, se têm muito cabelo. Eu, no silêncio que envolve o resto do escritório, sorrio candidamente, com aquela sensação estúpida de que tenho todas as respostas às dúvidas delas. É claro que não tenho, lembro-me enquanto as continuo a ouvir, como não as tinham antes as pessoas que me queriam bem e que gostavam de me aconselhar. É verdade que sinto que tenho uma ligeira vantagem sobre elas, na medida em que já passei por tudo uma primeira vez e que sei que não há fórmula mágica que nos valha, só muita preserverança, muitas tentativas-erros, muitas noites sem dormir e muitas tardes a desejar poder fechar os olhos.

Pensando nisto, gostava de ainda ter a mesma ingenuidade que elas parecem ter. Com um segundo filho, vem aquela sensação de familiaridade, de tranquilidade relativa de quem passou por um tornado de emoções e fraldas mal postas, de leite materno e leite em pó, de dentes que teimavam em não romper mas também das primeiras papas e sopas com e sem carne, dos primeiros passos meio a medo, do vocabulário que parece nunca mais terminar. Um pouco da magia já se foi, mas é claro que ainda pensamos no que aí vem, numa pessoa totalmente diferente, com a sua própria personalidade. Certo é que é muito fácil identificar aqueles desconfortos associados à gravidez, especialmente agora que começam muito mais cedo do que na primeira rodada.

E já agora, fica a novidade, para quem não o soube ainda: vem aí uma menina! Eu espero, sinceramente, que a minha médica não tenha nenhum problema de visão ou que o equipamento das ecografias esteja a funcionar com total nitidez. Não sei porquê mas sentia-me uma "fábrica de fazer rapazes", era mesmo uma coisa que me parecia real. No meu íntimo, gostava de estar errada e que agora pudesse experimentar a sensação de ser mãe de uma rapariga. A natureza fez-me a vontade e nesta imensa lotaria genética calhou-me exactamente aquilo por que todos esperávamos. Que continue assim, é o que desejo, e que venha com toda a saúde do mundo. Não posso é evitar sonhar com laços na cabeça, padrões floridos e todos os acessórios brilhantes!

outubro 08, 2014

Lisboa (para todo o sempre)


Escolho ouvir Orelha Negra e as memórias soltam-se, desordenadas. Estava provavelmente a sobrevoar o Norte de Espanha mas há mil quilómetros que a minha cabeça está em Lisboa. Sinto sempre aquele frémito quando se aproxima a hora de voltar, sempre. Sempre. De repente, desço a rua do Alecrim num final de tarde. A seguir, vejo o dia em que bebemos café em Belém e depois entrámos no Museu da Electricidade. Subo para o Jardim de São Pedro de Alcântara e sento-me com vista para o castelo. É a minha cidade, podemos escolher a nossa cidade ou ela simplesmente se impõe? Sentada no miradouro de Santa Luzia a ver os barcos a passar em câmara lenta, a inventar romances de faca e alguidar sobre os telhados de Alfama. O dia em que me enfiei numa velha mercearia porque andava um cavalo à solta na Morais Soares. A cidade que ambos tanto desejámos, como se tudo fosse possível apenas ali. Debaixo das copas que ladeiam a Ferreira Borges, a sensação que conseguimos. (Mas conseguimos exactamente o quê?) A rua do Poço dos Negros a um Sábado à noite, os enchidos a decorarem uma montra, os eléctricos que ainda não passavam. A mesma Lisboa onde tanto chorei, os quartos de onde insistia em não sair, das coisas impensadas e dos arrependimentos. A mesma capital antiga, ora demasiado snob, ora a cheirar a sardinhas e cerveja morta. As colinas onde morei, as casas que aluguei e que acabaram donas de mim. Os amigos que vieram e os que se foram, os nossos vizinhos como se já tivessemos sessenta anos. A casa que quase comprei, que às vezes ainda me assalta a memória em vagas de uma nitidez tremenda. Tudo o que me falta fazer na minha Lisboa, todos os despertares e anoiteceres em que falta a verdadeira luz das estrelas, os becos por onde ainda nunca passei. A turista que agora sou, absorvendo simultaneamente uma cidade estranha e a cidade que é minha. A minha Lisboa que há-de ser sempre cantada em Português, um cafezinho, um pastelinho de nata e a continha. Quantas linhas poderei eu escrever mais sobre ela? Quantas mais vezes sentirei o aperto de quem regressa aos braços de um grande amor? Quantos mais anos de saudade poderei suportar?

outubro 06, 2014

Pequenas vitórias

Quando imaginei como seria o primeiro filho, era uma criança muito delicada, meiga e acedia prontamente a qualquer pedido que lhe fizessem. Adorava a família e amigos e demonstrava esse afecto de maneira inequívoca e exuberante. Gostava de ter tudo arrumado, de brincar em silêncio quando a ocasião assim o exigia e sabia partilhar o que tinha desde tenra idade. Teria, na minha ingénua cabeça, o filho perfeito.

Hoje, mais de quatro anos passados, sei apreciar as pequenas vitórias e também a estratégia que usámos para consegui-las. Uns dias corre tudo muito mal, noutros as coisas parecem estranhamente certas, demasiado perfeitas para serem verdadeiras. Como esta manhã, em que contei zero birras, em que consegui que se levantasse sem nenhuma reclamação, em que ele soube à primeira o que queria comer e deixou sem reservas que o vestisse, em que lavámos os dentes juntos e em que o deixei na sala de aula sem um grito, uma lágrima, um esgar de teimosia. Apenas um até logo, um abraço e cinco ou seis beijos que nunca sei conter. Saí da escola com a maravilhosa sensação do dever cumprido sem perder mais uns meses de vida com as chatices das manhãs, feliz ao passar pelos pais que certamente sofrem do mesmo todos os dias, capaz de enfrentar o dia de trabalho sem já algum amargo de boca.

Ainda não domino totalmente alguns momentos do dia ou alguns acontecimentos específicos, como o banho, por exemplo. Ainda não percebi que espírito toma aquele corpinho de quatro amorosos anos e o transforma quase num miúdo a precisar de exorcismo. E também ainda me falta descobrir como conseguir que não chore sempre que o vou buscar a casa da senhora que toma conta dele quando sai da escola. De resto, ajuda muito falar sobre as coisas e, infelizmente para nós, repeti-las vezes sem conta. Andamos agora a lutar com trauma de dormir sozinho quando está a chover e vou conseguindo sucessos pequeninos: primeiro, dormia na nossa cama; depois, arranjei um amiguinho com música que o ajuda a voltar a dormir se a chuva se tornar muito forte; finalmente, elogio-o muito quando volta a adormecer e passa a noite inteira na sua cama. Fica orgulhoso por ser tão valente e eu espero que isso lhe fique na memória. Depois há sempre a questão de escolher as batalhas: não me chateio muito com os brinquedos que quer levar para a banheira, não insisto nas refeições (mas deixo claro que não há direito a fruta se nem se tocou no prato principal), deixo-o vestir a camisola da selecção até não poder mais.

Às vezes é duro: se não sou fã dos castigos corporais, também não me agrada a constante negociação para as coisas mais simples. Só que não me posso esquecer: é inútil tentar que ele seja razoável e racional nas birras que faz. O mundo é dele, roda em torno dele, serve para o satisfazer. O nosso trabalho é mostrar-lhe, lenta e construtivamente, que não é bem assim. E a seguir o que há a fazer é comemorar com ele as pequenas vitórias, os pequenos passos que dá em direcção a uma vida sem birras, inspirarmo-nos nestes pequenos sucessos para tentar inventar a receita dos próximos e saludarmos a boa e saudável dose de frustração que vem destes pequenos nadas.