Não é que a pausa tenha acabado, esta é só uma pausa dentro da pausa. E é mórbido mas só volto aqui agora porque ontem aconteceu isto e isto. E porque ontem perdi tanto tempo a pensar nisso, dei tantas voltas na cama, procurei por detalhes, pelas histórias que provavelmente ficarão para sempre por contar, tentei saber quem eram os mortos. Quase todos os que morreram no acidente do autocarro eram do meu bairro - de acordo com as notícias de ontem, dez em onze. E se isto não nos atinge mais do que o normal, então não sei.
Mas a verdade é que todas estas coisas, todas estas tragédias inexplicáveis têm o condão de me confrontar com a minha própria mortalidade. E com a aleatoriedade dos acontecimentos. Quantas viagens de expresso, quantos mil quilómetros entre Lisboa e Portalegre, quantas viagens de carro Portugal fora, quantos descuidos e quanta sorte tive eu na minha vida? Ontem apetecia-me não mais sair, só ficar em casa enrolada sobre mim e agarrando o meu filho, que é também ele um milagre, protegendo-nos desta lotaria tão injusta. É que isto de ser mãe deu cabo das minhas emoções, descontrolou-me as hormonas (e não foi só durante a gravidez e o pós-parto, que eu agora choro por dá cá aquela palha com qualquer reportagem na televisão) e tornou esta ideia de que há tanto que não podemos controlar numa coisa muito mais assustadora.
E depois foi ver aqueles corpos todos estendidos no chão, sem sinal de violência visível, como que dormindo tranquilamente. E sofrer quando caio em mim e me lembro de que eles não vão acordar. E imaginar tudo o que ficou por fazer, as famílias apanhadas de surpresa sem nada que o pudesse fazer prever, inconscientemente a pôr-me naquele lugar. Continuo a achar que não devíamos morrer e aos trinta e três anos ainda não aceito a ideia da nossa mortalidade.Que eu tenha, como esta gente corajosa, força para a encarar de cada vez que se cruze no meu caminho. E que continue a acreditar que um dia mais tarde, num sítio qualquer, nos vamos voltar a encontrar e a recuperar o tempo perdido. Preciso aprender a aceitar que, sempre me disse a minha avó, a morte é o que de mais certo temos.