dezembro 19, 2015

Podemos dormir e acordar já em 2016?

Este é o mais difícil mês de Dezembro de que me lembro. Não, quem estou eu a enganar? Este foi o mês mais difícil de que me lembro, ponto. E foi também o ano mais duro que acabamos agora de atravessar. Eu mal sobrevivi, eles não deram por nada.

Foi um ano tão difícil quanto feliz. O início do ano foi brutal em termos de mudanças: comprámos a casa a treze de Janeiro, mudámos no primeiro de Fevereiro, a Amália nasceu a vinte e seis. Fiz as mudanças grávida de oito meses, mais a arrastar-me do que outra coisa, nada planeado, as nossas coisas enfiadas à toa nos abençoados sacos do Ikea, nenhuma ordem definida. Nevava, as minhas botas estavam empapadas naquela neve já castanha, multiplicavam-se as viagens entre a casa velha e a casa nova. Eu subia a custo o escadote para limpar os armários, tinha medo de cair e adiantar demasiado o nascimento da gaiata mas precisava de deixar tudo pronto para podermos começar de novo.O Mário pintou toda a casa velha em apenas um dia, dormiu entre baldes de tinta e trinchas, fez o que pôde e no fim o senhorio achou pouco. Que se lixasse, nós só queríamos sair dali.

Depois foram vinte e poucos dias sozinha em casa. Todos os dias com coisas para fazer, livros e brinquedos para arrumar, móveis ainda por montar, decisões sobre arrumações e ia arranjando uns momentos de sofá. Tomava o pequeno-almoço em silêncio enquanto estudava o pequeno jardim e a neve que ia caindo e cobrindo as árvores cujo nome ainda desconhecíamos. Havia tanto silêncio e a casa ainda não cheirava a nós mas começava lentamente a aquecer. Aos vinte e seis dias do mês de Fevereiro, passei a noite acordada. Primeiro com o miúdo, que parecia ter uma gastroenterite. Quando ele finalmente acalmou, eu finalmente percebi o que estava a acontecer comigo: estava em trabalho de parto. Não tive dúvidas e, apesar de não entender de onde me vinha este instinto, eu sabia que tinha que esperar e que estava tudo bem. Até não estar, até me rebentarem as águas e fazer a viagem até à maternidade no silêncio fundo de quem sabe que a vida estás prestes a mudar. Outra vez e desta vez sozinha numa sala de parto a meia luz, uma escuridão onde não ouvia outras mães, a ter que suplicar pela anestesia no melhor Francês que conseguia arranhar e a ter a minha filha nos braços em menos de quarenta minutos de gritos animalescos.

A minha filha definiu-me o resto do ano. As estações sucederam-se e ela foi a medida de todas as coisas. Ela ocupou-me todo o espaço livre, ela trouxe-me a alegria pura de ter um bebé perfeito e a exaustão profunda de quem não consegue dormir. Em casa durante quase um ano, eu passo-o em revista e tudo é ela: quando só dormia na nossa cama, tão pequenina; quando olhava tão calada para os nossos olhos e pensávamos que era mansinha; quando bebia o leite tão depressa quanto conseguia; quando a carregava para ir estender a roupa; quando as noites significavam acordar de hora em hora; quando admitia em voz alta que ela, como o irmão, não sabia dormir; quando ela começou a reclamar com tudo e a gritar com toda a força que tem; quando ela se ri, já com dois dentes e a sua alegria começa naqueles grandes olhos castanhos; quando ela gatinha e tenta roubar tudo o que o irmão tem nas mãos. Ela esgotou-me e fez-me duvidar sobre as minhas qualidades de mãe. Ela trouxe-me mais perguntas do que respostas e eu demorei quase um ano inteiro a saber lidar com isso. Entretanto, o irmão cresceu, tornou-se meigo em casa e arisco na escola, as birras abrandaram (mas não desapareceram), começou a medir o seu amor por toda a gente ("Mãe, gosto de ti dois zero zero três zero zero! É muito?"). E agora já quase brincam juntos e ela delira quando o vê e ele quer sempre enchê-la de beijos e são mesmo irmãos.

Este ano quase me derrubou. Se consegui escapar (mais ou menos) incólume, tudo devo à minha família. A um marido que aguentou as pontas e me amou sempre com o seu pragmatismo e força de vontade, ao meu filho que não gosta de me ver chorar, à minha filha que foi crescendo saudável e boneca, aos meus pais e avó que não descansaram enquanto eu não descansei, à minha irmã que tanto amou os seus sobrinhos. Tenho vergonha de admitir mas este ano foi mais forte do que eu. Não consigo escapar ao sentimento de que sou um falhanço mas tenho lutado muito para conseguir ver além isso. Sei que preciso de voltar ao mundo, de voltar à vida real e que só isso me vai conseguir trazer de volta. Este ano, mais do que nunca, estou grata pela família que tenho e que nunca desistiu de mim, apesar de toda a frustração. Quero muito que este ano acabe, muito mesmo, na certeza de que, depois destes 365 dias de dificuldades, só podem vir coisas boas. Só mesmo. Talvez eu possa voltar a sentir-me inteira, capaz, tranquila. Até lá, deixo os meus votos de Boas Festas e que os vossos balanços possam ser menos negros, mais positivos que o meu. Para o ano que vai começar, desejo a todos força, optimismo e muito, muito amor. Como o que desejo para mim.

dezembro 02, 2015

Dois dias (parte IV) *

Os dois dias foram-se à vida. Eu calei-me muito durante este tempo, caminhei, estiquei as pernas e o juízo e ganhei um pouco do fôlego de que precisava para voltar. Se estes dois dias foram suficientes? Se calhar não, mas por agora vão ter de servir.

Táxi até ao terminal dois, prioridade nas filas, a miúda inquieta no avião e vejo-me de repente no frio do mercado de Natal. Não estava vestida para o ocasião e por isso, enquanto comemos à pressa e bebemos o vinho quente, tremo um pouco de frio. A roda gigante está mesmo ali ao lado e ninguém parece incomodado pelas temperaturas baixas. Os miúdos estão quentes e isso reconforta-me.

Chegamos a casa e é noite cerrada. Há no ar aquele silêncio que só se pode encontrar aqui e os vizinhos parecem não estar em casa. Desfaço um pouco da mala mas depressa me canso: quero vestir o pijama e dormir. Adormeço a desejar que as baterias que recarreguei nestas duas semanas me cheguem pelo menos até ao final do ano. Aí, a história vai ser outra.

(* uma série de posts em diferido, para não atrapalhar o curso da história)

dezembro 01, 2015

Dois dias (parte III) *

Sou teimosa e resolvo apanhar outra vez o eléctrico. Foi a custo porque não me apetecia sair do sofá e a ideia destes dias era exactamente fazer o que me apetecesse. Mas como é que se pode ir à janela, olhar para este céu azul e ficar em casa? Pois, não se pode. Desta vez, o eléctrico não demorou tanto e vinha menos cheio. Consegui um lugar e fui tranquilamente a olhar pela janela até à Graça.

Não sei quantas vezes subi até à Senhora do Monte mas tenho a certeza de que subirei muitas mais. Corre um vento frio, aperto o casaco o mais que posso e sento-me num dos bancos livres. Miúdas a beberem cerveja ao Sol, turistas franceses e irlandeses, guias que debitam guiões sobre o rio e o convento do Carmo sem paixão nem entusiasmo, cadeados do amor nas grades, as cores incríveis do casario de Lisboa. É Outono mas podia certamente ser um dia de Primavera.

Começo a descer pela Graça, onde páro mais uns minutos. Ao meu lado, um casal americano com dois filhos pequenos a discutir no tom mais diplomata possível sobre o que fazer a seguir. Como eu, descem em direcção ao miradouro de Santa Luzia mas separamo-nos antes da subida para o castelo. Deste lado, o Tejo imenso e a aparente acalmia da margem de lá. Vendedores ambulantes por todo o lado, pintores de aguarelas, azulejos e roupa estendida ao Sol. Quando ouço o ronco do eléctrico nos carris, corro para o outro lado da rua e consigo um lugar com a janela aberta. Entro em pânico quando penso que perdi o telefone na paragem: reviro a mochila e os bolsos do casaco e preparo-me para sair na próxima paragem e voltar para trás quando, plim!, o encontro numa bolsa escondida. Alívio alívio alívio!

Vou directa à Estrela, onde me sento com os restos do jantar de ontem. Ali ao lado, em pleno jardim, a creche onde o Vicente ainda andou deixa-me de lagriminha ao canto do olho. Os bancos dividem-se entre os reformados que passam o tempo, turistas que recuperam o fôlego, miúdos das escolas em redor. Leio durante uns quarenta minutos antes de me pôr a caminho: casa não é casa sem um café na Tentadora!

(* uma série de posts em diferido, para não atrapalhar o curso da história)

novembro 30, 2015

Dois dias (parte II) *

IUma linha de metro e um autocarro depois e estou em casa a tempo de beijar a minha irmã antes dela sair para trabalhar. Estava à minha espera e tinha-me feito a cama de lavado. Agradeci, ela sabe que não era preciso mas fê-lo por gosto e eu sorri.

Almoço na tasca dos três irmãos aqui na esquina. São os vizinhos, são os amigos e perguntam-me pelo marido e pelos meninos. Escolho a alheira porque é esta a comida de tasca e nem cinco minutos depois já a tenho à minha frente. Aqui não há tempo a perder, nem há mãos a medir. Entram os mecânicos, entram os doutores, entram a senhoras que vivem sozinhas e é travessas de cabidela e perca grelhada sempre a saírem. Resisto ao pudim de ovos e ao arroz doce, peço só um café e saio.

Espero meia hora pelo eléctrico. Dizia que passava de oito em oito minutos mas eu já me tinha esquecido que os minutos-Carris não equivalem a minutos humanos e encolho os ombros mentalmente. No eléctrico, há quem bufe com a falta de espaço. Eu não bufo, não cedo à frustração porque tenho tempo. Saio no Calhariz e dou um salto ao antigo Adamastor. A vida lisboeta é tão boa para os turistas: esplanadas brindadas pelo Sol, jarros de vinho fresco, um mundo de pratos regionais a descobrir. Tempo para se absorver as ruas sujas mas belas, as montras das pastelarias cheias de línguas de sogra, natas e bolos-rei, tantas horas de Sol. Para viver Lisboa como a sonho teria que ser turista e isso será sempre impossível, pelo menos permanentemente.

Chego ao cinema Ideal em cima da hora e compro um bilhete para o Montanha, do João Salaviza. Somos cinco na sala, todas mulheres. Tirando eu, todas com mais de cinquenta anos. O filme é um pouco amargo mas belo, a solidão e o desnorte algures nos Olivais, um crescimento à força embebido no suor e no calor, musicado pelos sons da cidade. E quando termina e eu quero levantar-me, um tal cansaço abate-se sobre mim, como se estivesse há dias à espera de se manifestar. 

Espero o eléctrico que não vem, espero o 758 que não vem e decidi procurar o 709. Desço até ao Rossio para descobrir que já não passa ali. Desespero porque parece que vou adormecer a qualquer momento. De caminho, vejo muita miséria pelas ruas, muita roupa coçada, gente sem pernas, três ou quatro cegos. Enfio-me no metro e, três linhas e um autocarro depois, consigo arrastar-me até casa. Deixo as luzes apagadas e preparo-me parq dormir um pouco. Aterro na cama e zás!, uma espertina de todo o tamanho.

(* uma série de posts em diferido, para não atrapalhar o curso da história)

novembro 29, 2015

Dois dias (parte I) *

São oito da manhã e estou sentada num autocarro com destino a Lisboa. Quase a partir, a manhã está fria mas há Sol e o céu está azul, o que parece explicar uma certa ponta de optimismo.

O autocarro avança e eu tenho Portalegre à minha esquerda e o Sol que nasce atrás das torres da Sé. Quero absorver o perfil da cidade uma última vezes, como em todas as vezes, mas só consigo fixar o olhar a espaços. Não consigo evitar chorar, não posso. Nunca quis aqui ficar mas penso em tudo o que já foi e tenho saudades. Estes dias foram tudo, foram catárticos, foram duros mas necessários. Fui sentindo ao longo da vida mas agora, aos trinta e seis anos, vejo claramente o amor incondicional que os meus pais sentem por mim e aspiro apenas a poder oferecer o mesmo aos meus filhos.

Perdi-me algures no caminho e tem sido difícil reencontrar-me. O autocarro avança e eu abandono-me à paisagem, às azinheiras ou sobreiros que nunca soube distinguir, à geada que cobre os campos verdes com o seu manto macio, às vacas que pastam alheias ao que se passa à sua volta e imagino este silêncio lá fora.

É possível que muita gente não entenda por que raio estou eu sentada sozinha a caminho de Lisboa e isso, apesar de não ter importância, incomoda-me um pouco. Já não me lembrava como era fazer uma viagem tão lentamente, sem a necessidade de estar perto do volante. Já não me recordava do que era ter tempo para pensar, do que era mergulhar neste estupor, de ver alternar terras lavradas com parcelas por lavrar, de adivinhar ribeiras e riachos, de cobiçar casas abandonadas e em ruínas. A paisagem lá fora é um filme mudo e os meus problemas são ridículos, envergonha-me chamá-los problemas. Como se estivesse sempre ao meu alcance controlá-los.

Talvez há mais de dez, doze anos não faça uma viagem assim. Na única paragem do caminho, o ridículo dos amores que se escrevem nas portas das casas de banho, na esperança... Na esperança de quê? Respiro fundo, muitas vezes. A minha missão é apenas apanhar ar. Não quero (não posso) falar, não quero partilhar, simplesmente preciso de espaço. Daquele mesmo que tinha em demasia quando eu era só uma e tinha apenas a responsabilidade (facílima, vejo hoje) de tratar de mim. A vida enfiou-me numa espiral perigosíssima e eu estou agora à tona, combatendo a profundidade com as minhas parcas forças. Por isso, olho pela janela. Às bermas constantemente cheias de lixo, junta-se a barragem tão em baixo, o desleixo das casas à beira da estrada, o piso bom e o piso por renovar, o Sol esconde-se atrás de nuvens, ainda há ribeiras a correr e os ciganos ainda se sentam na rua em acampamentos improvisados. Toda a vida continua, não há tempo para olhar para trás. Porque haveria eu de parar?

(* uma série de posts em diferido, para não atrapalhar o curso da história)

novembro 25, 2015

(uma sombra apenas)

Às vezes acontece-me isto. Acordo um dia e não sou mais do que uma sombra. 

Aconteceu-me há umas semanas e eu demorei a perceber. Depois tudo se conjugou numa imensa cabala contra a recuperação: a exaustão chegou para ficar e depois Paris foi atacada, Bamako foi atacada e Bruxelas ficou em estado de sítio. Durante as últimas duas semanas consomi mais televisão do que gostaria de admitir. Foram horas de directos, as polícias a intervir, os especialistas e os generalistas a comentar, muito mais especulação do que alguém consegue digerir mas eu não consegui sair da frente da televisão.

Estou-me nas tintas para quem acha que é hipocrisia sentir tanto os ataques em Paris. Agora estou em Portugal e talvez não me possa sentir segura em mais nenhum lado mas no Sábado levanto voo com uma bebé de nove meses e volto quase para o centro da acção. Tudo o que eu não quero é passar a andar a olhar sobre o ombro, à procura da ameaça a todo o instante. Tudo o que eu desejo é que os meus filhos, como os filhos de tanta gente da paz, possam viver, crescer, ir aos mercados de Natal, correr nos parques sem que eu tenha de lhes explicar que a ameaça é real.

Como não sei parar, li todos os artigos a que consegui deitar a mão, na ânsia de encontrar respostas. Na ânsia de entender porque é que tanta gente inocente, tanta gente pacífica tem de morrer às mãos de selvagens que invocam a religião a cada ataque. Não consegui entender, obviamente. Nunca vou entender fanatismos, sejam eles religiosos, partidários ou clubísticos. Nunca vou entender pessoas que preferem morrer e levar consigo o maior número de inocentes possível em vez de aproveitarem o que a vida tem de bom.

Continuo com medo mas com menos ansiedade. Tento mentalizar-me que não há nada que possamos fazer, não está ao nosso alcance evitar e a única coisa a fazer é viver. Beijar os miúdos sempre que possa, ouvir quem nos quer bem, escolher o Bem todos os dias. A ideia do que está para vir é horrorosa mas, se eu não escolher este caminho, não vou suportar essa escuridão.

As palavras têm-me faltado mais do que nunca. Os pensamentos correm à velocidade da luz, especialmente antes de adormecer. O esforço para esvaziar a cabeça é redobrado, se quero descansar. Nunca pensei viver para ver algo assim e imagino que ninguém, ou pouca gente, esteja preparado. Que estejamos cá todos daqui a uns valentes anos, para contar a História como ela deve ser lembrada.

novembro 06, 2015

36 ou a salganhada de sentir tudo ao mesmo tempo

(nota prévia: este não é um post luminoso sobre aniversários.)

Cheguei aos trinta e seis. Dobrei, portanto, aquele marco invisível da meia idade para viver a segunda metade da minha vida e possivelmente nunca me senti tão confusa, um pouco perdida.

Não se deixem enganar: eu gosto de fazer anos. Mas apenas porque é um dia que me faz sentir especial, não porque goste de sentir os anos a passar. E o pior é que nem estou a envelhecer bem: é o baby weight que teima em ficar, é o cabelo quase todo branco a emoldurar a minha cara, a fragilidade das minhas mãos. Ultimamente, em todas as vezes que me apanho em frente ao espelho ouço a mesma pergunta: mas quem raios és tu? Não era suposto que a resposta fosse fácil, trinta e seis anos depois de chegar ao mundo? Não era tão mais simples não fazer perguntas e, cúmulo da serenidade, não pensar sequer?

Cheguei aos trinta e seis com dois filhos e num estado de exaustão que me preocupa. Cheguei aqui e há dias em que eles são aquilo que me define: se os amei tudo o que pude, se lhes dei banho a correr, se consegui não gritar. Cheguei aqui e às vezes parece que eles são tudo o que interessa, mesmo quando me lembro que eu sou a minha própria pessoa, com desejos, falhas, neuras e vontades. Talvez por estar em casa há tantos meses mas eles ocupam-me tanto espaço no pensamento que só acordo do torpor às vezes, um número minúsculo de momentos em que resolvo ser só eu.

Trinta e seis anos, porra. Imagino como se sentirão os meus pais a olhar para mim e ainda a conseguir ver o bebé que fui, imagino olhar para os meus filhos com trinta e seis anos. Como é que se pode aceitar a crueldade do tempo com um sorriso nos lábios? Se calhar com trinta e seis anos percebi que não estou aqui para sempre, vou abrandar e ficar velha, se calhar definhar enquanto os meus filhos se tornam pessoas. Se crescer é ficar mais sábio, mais complacente, porque é que pensar na finitude custa tanto?

Tenho hoje trinta e seis anos e começo a sentir-me excluída da novidade, do entusiasmo dos mais novos. Vejo aquela malta a entrar para a faculdade e penso Mas espera lá, ainda há pouco eu estive ali. Só que não, entrei há quase vinte anos para a faculdade, dito assim parece ridículo e irreal mas é dolorosamente verdade. Vinte anos em que vivi tanto e que hoje me parece tão pouco. Algum dia vai chegar?

Hoje comemoro os trinta e seis anos. Se estou mais sábia, não tenho notado. Estou talvez mais paciente, mais apaziguadora. Esqueço-me dos grandes gestos para me concentrar nas micro vitórias que uma vida longe do meu país e da minha gente me dá. Estou um pouco desiludida com o que consegui até aqui e com o que me custa tantas vezes dar a volta por cima. Pergunto-me mais coisas do que aquelas que gostaria: é isto, ser feliz? Posso eu algum dia sentir que me cumpri? Só sei dizer não sei, repeti-lo até à exaustão. Que aos trinta e sete tenha já encontrado altumas respostas mas por agora preciso de me habituar a dizer trinta e seis.

outubro 21, 2015

Outono, dentro e fora


Há muito silêncio por aqui. Quer dizer, não é silêncio completo ou profundo mas o suficiente para me ouvir a respirar. Corrijo: não é silêncio, é apenas a ausência de azáfama e correria doutras cidades, doutros países. Aqui eu consigo viver devagar. Aqui as ruas estão misteriosamente vazias e as janelas desocupadas. Ouve-se o ruído interminável da auto-estrada ao longe, bem abaixo do bosque cerrado e frondoso onde também se esconde o cemitério. Ouvem-se as empresas de jardinagem que se multiplicam nas manhãs por todos os quintais e jardins das casas donde saem pessoas de meia idade em Porsches. Ouvem-se os corvos pousados ora nos jardins, ora nos telhados que esperam os primeiros flocos de neve com alguma antecipação.

Não sei se faço parte. Quando saio com a miúda, alterno entre a minha música ou os meus podcasts e o ruído da vizinhança. Os parques estão vazios e estranhamente silenciosos. Ao fundo, a igreja marca a passagem to tempo a cada quinze minutos. Parece que tenho sempre que morar perto duma igreja (ao lado da igreja na Taborstr. em Berlim, quase ao lado da Basílica da Estrela em Lisboa, a metros desta igreja em Howald - é este um sinal?). Cruzo-me com poucas pessoas nos nossos passeios de higiene mental: outro carrinho de bebé, a senhora que veio apanhar o correio, os senhores das obras sempre a esquecerem-se que o mais certo é que quem passa fala Português. O Outono chegou e bem até aqui, mesmo nas zonas com menos árvores. Está frio e às vezes Sol mas esta ausência de vida é transversal a todas as estações.

Numa janela vislumbro um piano. Nunca vivi perto de pessoas que podem e têm um piano em casa. Os jardins das traseiras alternam entre a simplicidade e os intricados trabalhos de arquitectura paisagística. Começo a ter vergonha do nosso jardim, coberto pelas folhas débeis da cerejeira que perdeu há muito o fulgor do Verão. É como se a relva, mal aparada mas verde, se estivesse a preparar para o manto de neve que ainda há-de chegar. Às vezes cai uma chuva muito miudinha, é de noite quando levo o miúdo à escola mas agradeço a escola ser no fundo da rua para nos poupar a percursos de carro. A carteira passa sempre à mesma hora e eu ouço o bater da nossa caixa do correio. Os homens do lixo passam sempre à mesma hora e eu ouço o caixote a voltar ao passeio, já vazio. Os nossos vizinhos já não trabalham e eu vejo-o da janela da cozinha, enquanto recolhe as folhas que se acumulam no seu lado da cerca. Aqui dentro, o calor da nossa casa. Aqui dentro, eu perco toda a vontade que alguma vez tive de sair. Não preciso, sou só eu e ela e podemos passar o dia em pijama. Aqui dentro, conto os dias para este silêncio acabar e, com alguma ansiedade num estado inicial, peço para o tempo demorar muito mais a passar.

outubro 19, 2015

A mama acabou! Viva a mama!

Por estes dias demos como terminado o período de amamentação da mais pequena.Como em tantas coisas, os sentimentos foram contraditórios: por um lado um imenso alívio; por outro, aquela sensação de que estou a perder uma coisa muito especial.

Apesar de ser da escola pró-amamentação, nunca fui uma fundamentalista da mama. Antes do Vicente, li tudo o que podia sobre o assunto e esse foi também um dos temas importante no curso pré-parto. Começar a amamentá-lo não foi, infelizmente, tão natural como muitas vezes se apregoa por aí. Tivemos muitos percalços, muitas dores e nervos, muitos palpites a favor e contra a continuação da amamentação mas no final lá conseguimos e ao terceiro ou quarto mês a coisa já era natural. Com ela foi naturalmente diferente: eu já sabia das dificuldades e das alegrias da amamentação e sabia uma coisa importantíssima: o stress é o maior inimigo do leite! Se há ensinamento que eu tirei disto e que poderia dar a alguém é este. Quanto mais nervosa estava, mais me custava a amamentar e por isso nada como relativizar e deixar o corpo seguir o seu rumo.

Os meus dois filhos mamaram mais ou menos o mesmo tempo (7-8 meses). Não considero que seja a o período perfeito mas foi com certeza o período que nos serviu a todos. Ter conseguido mantê-los vivos e a crescer apenas com o meu leite é, a seguir ao parto natural sem anestesia, a minha maior conquista. O orgulho que senti durante este período é incrível e deve estar muito próximo daquilo a que se costuma chamar de empowerment. Olhando para trás, uma pessoa parece ser capaz de tudo porque já fez a coisa mais incrível de sempre: trouxe pequenas pessoas ao mundo e manteve-as saudáveis apenas com o poder mágico da natureza.

Nesta segunda vez estava mais tranquila. Sabia que se alguma coisa falhasse não hesitaria em procurar e pôr em prática as alternativas. Essa ideia custou-me muito mais na primeira vez: eu achava que o mal estava comigo e que as alternativas seriam uma espécia de traição ao meu filho. A minha mãe lembrava-me que nós tínhamos crescido com farinha torrada no forno e que não tinha sido isso a impedir o nosso crescimento. E é mesmo, mesmo isso: mais do que todo o leite natural ou em pó do mundo, o que faz crescer os bebés é o amor e o cuidado extremo que os pais põem nesta relação. Tudo o resto é conversa, como aliás tantas coisas à volta da gravidez e da parentalidade.

Confesso que me fazem alguma confusão as mulheres que decidem não amamentar sem sequer experimentarem. Imagino que muitas mudariam de ideias se lhe dessem pelo menos uma oportunidade. Mas, ao mesmo tempo, sinto-me um pouco solidária: amamentar, especialmente nas primeiras semanas, é um bocadinho como se fosse uma prisão, pelo menos para mim foi. É difícil fazer coisas tão simples como sair apenas por umas horas para espairecer e esquecer as noites mal dormidas. Mas ao mesmo tempo, a mama é tão conveniente e quase sempre resolve! Seja como for, a mama chegou naturalmente ao fim, sem ajudas nem medicamentos, sem dramas e apenas com a medida certa de saudades. A miúda não se queixa e nós brindámos com um copinho de Monte Velho! À mama!

outubro 12, 2015

A place to call our own


Finalmente acabámos de arrumar e decorar a nossa casa. Oito meses depois de nos termos mudado, oito meses depois de ter feito mudanças grávida de quase nove meses, oito meses depois de arrastar sacos e caixotes pela neve mas chegámos aqui.

Nem a propósito, vi hoje um episódio desta série e uma das personagens dizia qualquer coisa como A house is like a marriage, you have to be in it for the long run. E é mesmo isso, é mesmo assim que me sinto quando olho para a maneira como a nossa casa tem progredido. É duro, é um processo lento, requere muito tempo e ainda mais vontade mas em troca dá-nos a melhor das sensações: a ideia de pertencer a um sítio. Primeiro foram algumas coisas que trouxemos da casa antiga que ficaram por fazer; depois foram coisas novas que idealizámos juntos que foram ficando por montar; e ainda foram as coisas que ainda tínhamos guardadas em Portalegre e que este Verão fizeram  finalmente a viagem até aqui. Foram precisos alguns pregos e parafusos, discutir as ideias que ambos tínhamos para os mesmos sítios, a paciência inesgotável dele para montar móveis! Este fim de semana demos os trabalhos por concluídos (os interiores, que para o ano quero tratar de aproveitar melhor o pequeno - mas jeitoso - jardim que nos calhou em sorte). E eu respirei de alívio porque só estou bem quando a lista de coisas a fazer (milagrosamente) desaparece.

No dia em que visitámos esta casa pela primeira vez (faz este mês um ano, é incrível a velocidade do tempo!) eu senti-me estranhamente em casa. Era um dia cinzento, a luz já começava a escassear, a casa estava vazia e húmida. Eu disse durante a visita que me imaginava a viver ali e no final disse ao rapaz da imobiliária que queria mesmo ficar com a casa. Não visitámos mais nenhuma: esta casa tinha o tamanho e disposição ideiais, já para não falar da localização perfeita. Seria impossível encontrar outra casa com a mesma relação tamanho-preço-localização. Eu tinha pressa e nunca me arrependi, pelo contrário. Assinámos a promessa de compra no dia em que fiz os trinta e cinco anos e aposto que se podia ver bem a felicidade que sentia!

A nossa casa faz-me não ter vontade de sair. A nossa casa tranquiliza-me e fez-me perceber a dimensão das memórias que já vamos recolhendo como uma família. A nossa casa ainda é nova para nós mas faz parte da nossa história. É um bocadinho de sorte mas também (todos os dias) uma imensa parte de nós.

setembro 29, 2015

Vicente, cinco anos


Há cinco anos atrás, a esta hora exacta, estava a tomar um banho depois de ter passado a noite em claro. Estava cheia de contracções desde as sete da tarde e passei a noite a comer pêssegos em calda e a ver episódios do Family Guy. Sabia lá eu que já estava em trabalho de parto!

O meu Vicente faz hoje cinco anos. O meu bebé gordinho, com aquele sorriso gigante que lhe nascia nos olhos (e ainda nasce!); o meu bebé que tão mal dormia até ao dia, já no Luxemburgo, em que pediu para ir para a cama; o meu bebé quase sem cabelo que cresceu para se tornar o miúdo dos caracóis - cinco anos, caraças!

Andava a fazer a contagem decrescente já há muitos dias. Já tem aquela ânsia de ser mais velho, de crescer. E eu, mesmo sem a certeza de que me compreende, peço-lhe para não ter pressa, para deixar o tempo correr devagar. Também anda sempre à procura de impressionar os mais velhos, de fazer parte. Custa-me vê-lo a esforçar-se tanto, tão pequenino mas deixo-o seguir. É muito, muito afectuoso: vai a gritar pela rua fora quando o levo à escola sempre que vê os colegas, quer abraçá-los a todos, mesmo à força!

Gosta de brincar, de andar de skate, bicicleta e trotinete, de me ajudar na cozinha mas do que ele gosta mesmo é do universo Star Wars. Quando começa a cantar o genérico com o pai, quando os dois passam Sábados inteiros a ver os filmes da saga, quando vê as referências aos filmes em todo o lado. Antes comia muito bem, agora afasta tudo o que não seja carne, massa ou arroz! Adora nadar, correr e delira mesmo com a competição! Para ele tudo é uma corrida, mesmo quando vamos os dois só lavar os dentes e por isso não sabe perder: é o pior perdedor que já conheci!

O meu bebé já não é um bebé - é um menino que anda na pré-escola, que quer escolher o seu penteado e a roupa todas as manhãs, que iria para a escola sozinha se nós o deixássemos! É um menino que já pensa na morte, que sonha com meteoritos e que quer experimentar todas as actividades radicais quando crescer. Incluindo beber café... E, mesmo com as birras que parecem numa mais acabar, esta é a melhor idade dele. É tão bom poder conversar, argumentar, vê-lo pensar e desenvolver o raciocínio, fazer piadas! Preferia que o tempo passasse com metade da velocidade mas já se sabe como é: hoje eles têm cinco anos, amanhã já foram para a universidade!

setembro 27, 2015

Mágico, mil vezes mágico!


De lágrimas nos olhos, ele disse qualquer coisa como "É tão importante esta quietude, este silêncio para celebrarmos a música. Obrigado por estarmos juntos neste momento de introspecção." E eu continuei de lágrimas nos olhos, como desde a primeira canção. 

Muitas vezes precisamos de ser salvos de nós mesmos. Muitas vezes precisamos de ser ensinados a sublimar as nossas pequenas tragédias pessoais, de encontrar beleza mesmo nos momentos mais dolorosos. E esta beleza torna-se quase insuportável se o fizermos em comunhão, um bando de almas reunidos em torno de um ser místico, irreal mesmo que à nossa frente. Pedaços de passado a marchar, saudades do tempo em que tudo era fácil e novo e especial, a dor de se perder alguém. E ele sentado ao piano, ele de guitarra na mão e aquela voz a encher toda a sala. Os ecos da melancolia, do passar lento dos dias, as cabeças que de repente se voltam para trás. Tudo foi doçura e aceitação, tudo fez crescer o nó na garganta e era como se eu tivesse atravessado montanhas para estar finalmente ali. Sentada, sozinha, um desastre em potência que nunca se cumpriu. As lágrimas contidas, a pele de galinha aos primeiros acordes de cada canção, entregue ao fascínio sem sequer resistir.

Ele disse que a música expressa o que não conseguimos apenas a falar. Não há pressa nem mundo, são só as crianças a correr lá atrás ou o movimento constante das ondas, o desfiladeiro donde se escapa o calor. Há o silêncio dele entre canções, os olhos fechados a sentir tudo uma e outra vez, a plateia suspensa da última nota do piano para rebentar em aplausos. Eu estive lá e parecia que podia tocar-lhe, a essa imagem que vive escondida em memórias, à voz que nos abraça e diz que, afinal, está tudo bem. Está mesmo tudo bem, vai estar tudo bem - penso, enquanto ainda me sinto a flutuar entre sonho e emoção.


setembro 24, 2015

Próxima estação: Esperança


Aqui chegou mais do que pontualmente.Ainda não tínhamos passado do vinte e um para o vinte e dois de Setembro e o Outono já cá estava.

É sempre difícil dizer-lhe adeus, sempre. Por mim era Verão o ano inteiro, se possível fosse. E este Verão foi especial, foram quase dois meses em Portugal, sempre de chinelo no pé, o céu sempre azul Alentejo, o calor. Posso não ter ido a nenhum sítio espectacular nem feito nada fora do comum mas este Verão foi muito importante para mim. Melhor do que toda a novidade, foi poder simplesmente estar num lugar seguro e protegido e poder estender essa sensação aos miúdos. Nem todos os dias foram fáceis e em alguns desanimei um pouco mas precisava mesmo desse tempo longe daqui.

Este ano tivemos Verão no Luxemburgo. Lembro-me que enchemos a pequena piscina dele ainda em Maio e fomos tendo dias bem quentes até irmos de férias. Comprámos uma ventoinha antes delas terem esgotado um pouco por todo o lado. Fomos ao lago de Madine para o miúdo nadar um bocado. Passeei muitas vezes com a pequena, o tempo convidava a sair. Ao contrário de outros anos, foi um Verão simpático mesmo aqui. Sem o calor luxuriante do meu Alentejo, sem dias de Sol a fio mas o melhor que podia ter sido.

Passam quase duas semanas que voltámos e só hoje consegui sair com ela para andar um bocado. Parece parvo mas acho que uma pessoa precisa de muito tempo para reorganizar a casa, as roupas, a bagagem que trouxemos e para se reorganizar também. Beber um café em silêncio em frente à janela da cozinha e aceitar que o cinzento vai ser o padrão dos dias. Levantar as persianas de manhã e desanimar um bocadinho quando se vê nevoeiro até ao chão ou a chuva que cai a potes. Ou então dormir de persianas levantadas porque afinal o Sol só nasce por volta das sete e meia. Aceitar que os dias ficam mais pequenos desde Junho e preparar o coração para o escuro e a neve. Abraçar a ideia de voltar ao trabalho no início do ano que já se avista lá ao fundo, deixando a vida de mãe a tempo inteiro para trás.

Eu gosto do Verão mas depois lembro-me de todas a abóboras, dos marmelos e romãs, das broas de milho da minha mãe, das florestas luxemburguesas a mudarem de cor, da chuva que me faz apreciar mil vezes mais a nossa sala (que já adoro!), das séries que regressam em catadupa, de pausarmos os passeios com um chocolate quente e bem, custa menos deixá-lo para trás. Até que chegue a neve está tudo (muito) bem.

setembro 14, 2015

Um adeus tardio



Foram quase dois meses de Sol e céu daquele azul único. Quase dois meses que acabaram na passada Sexta e que vão deixar imensas saudades.

Eu ia com o intuito de descansar muito. Tinha-o prometido a mim mesma, devia-o a mim e aos miúdos mas eles precisaram de mim mais do que esperava e há coisas que só uma mãe pode resolver. Eu ia a pensar que ia ter tempo, que ia ter silêncio mas foram poucas as vezes que consegui um pouco dessas coisas, verdadeiros luxos quando se é mãe de dois.

Visitas fiz muito poucas. Como o verdadeiro bicho do mato que sou, a ideia não era ser social: era respirar um pouco, era poder ter tempo para não ser mãe enquanto espreitava os miúdos mesmo ao lado. Mas até as poucas visitas e os encontros mais curtos me fizeram bem e me distraíram, que era tudo o que podia pedir.

Os meus pais foram tudo. Perdoaram as impertinências do mais velho e ampararam-lhe as birras; brincaram, jogaram dominó e Uno com ele, compraram-lhe gelatina e levaram-no ao parque inúmeras vezes; deitaram-no e tentaram não ceder aos seus caprichos. Encheram-me a pequena também de amor: acalmaram os seus sonos difíceis, roubaram-lhe sorrisos todas as manhãs, deliciaram-se com os banhos dela. Deram aos nossos filhos todo o mimo permitido aos avós mas elevado ao quadrado para compensar a distância. Fizeram de tudo para que eu descansasse, desligasse um pouco e só não tiveram mais sucesso porque a biologia é mais forte e eu não consigo desligar dos meus filhos.

Fiz os passeios que o meu coração pedia quase sempre em silêncio. Revolvi memórias e dores de crescimento, constatei mais uma vez como seria doloroso e, ao mesmo tempo, gratificante viver na cidade que me viu nascer. Só que eu, é sabido, nunca poderia ficar. É e foi sempre mais forte do que eu. No final, tinha saudades da minha casa, de estar noutro lugar, de ser apenas mais uma estranha.

Doeu regressar, depois de ser tão agraciada com o amor incondicional da minha família, também estendido aos meus filhos. Custou ver o mais velho a chorar porque não queria sair dali nunca. Custou deixar para trás o Sol e o azul para fazer o caminho de regresso à chuva e ao frio. Mas era uma viagem necessária, como era necessário que os meus filhos estivessem novamente com o pai.

Acabaram as férias e voltámos ao silêncio, à ordem, à disciplina e às nossas coisas. É o mal de não pertencermos verdadeiramente a nenhum sítio: queremos simultaneamente ficar e voltar. Sempre até à próxima vez.

setembro 07, 2015

Ver além do espelho *



Nota prévia: eu SEI que sou muito mais do que apenas o meu corpo.

Num destes dias, enquanto mostrava fotografias minhas antigas ao Vicente, encontrei algumas de 1994. Eu era assim em 94: tinha pouco peito mas uma barriga incrível e umas pernas tonificadas, coisas pelas quais estava disposta a pagar nos dias que correm.

Quando olhei para esta fotografia fiquei espantada: então mas um dia eu fui assim? Em 1994 tudo o que eu era parecia-me muito pouco, parecia-me insuficiente para os padrões exigentíssimos dos rapazes que eu conhecia e que, infelizmente para mim, definiam eles também o meu conceito de beleza. Em 1994 eu tinha um corpo impecável mas sentia-me deslocada, inadaptada, até rejeitada porque parecia que não tinha aquilo que era preciso (hoje penso nisso e não faço ideia do que era...). No entanto, eu tinha aquele encanto da juventude, a forma e a firmeza despreocupadas de quem não faz ideia do que trará a vida e alguns filhos depois. Eu era assim e fiquei com pena de mim com 13, 14, 15 anos porque nunca soube ver-me como realmente era.

Hoje já não dependo dessas ideias pré-feitas sobre como devem ser as mulheres: reconheço que continuam a existir ideais e padrões de beleza, compreendo que o meu corpo se afastou dos ideais mais generalizados do corpo feminino mas aceito, com algumas reticências, as mudanças do meu corpo. A tantos anos de distância (20 anos, caramba!) apetecia-me gritar ao meu eu com 14 anos: TU ÉS BONITA, SAUDÁVEL E SUFICIENTE! Mas como não o posso fazer, sinto que não vivi aqueles anos na plenitude de quem se olha com a dose certa de realidade e aceitação.

Hoje olho o meu corpo e vejo os sinais evidentes da idade de de duas gravidezes. Reconheço a necessidade de comer melhor e mexer-me mais. Relembro as minhas dores de crescimento, literais e metafóricas porque sei que essa história está escrita nas curvas a mais. E apesar de querer melhorar, apesar de querer aproximar-me do potencial que encerro em mim, sinto-me mais em paz e aceito com mais serenidade a passagem do tempo. Que bom teria sido perceber a mulher que era naquele tempo! Espero que daqui a uns anos possa olhar para trás, para os dias de hoje e objectivamente saber que era tudo o que poderia ser ou, pelo menos, saber que estava a caminho de me cumprir.

* um post com dedicatória à Ana, que olhou para a sua fotografia de há uns anos atrás e sentiu o mesmo que eu. Felizmente somos mais do que apenas isto :)

agosto 29, 2015

(pausa para respirar)

Estou aqui mas é como se não estivesse. Estou de férias e devia querer sair e fazer coisas mas a única coisa que quero é ficar em casa, recolher-me o máximo possível e não falar com ninguém.

Ter um bebé já com seis meses que não dorme é debilitante. Ter um bebé que não dorme de dia e também não dorme à noite é um pesadelo tornado realidade. Sinto uma espécie de terror assim que se nota que ela precisa de dormir porque sei que não vai conseguir. E se ela não consegue, eu não consigo. Os meus pais bem têm ficado com ela para me aliviar mas é difícil: há outro filho para entreter durante o dia e as noites continuam a ser apenas minhas. Ler sobre o assunto (obrigada Madalena!) não tem ajudado: faz-me sentir bem por saber que há quem passe pelo mesmo mas ainda não consegui melhorar nada. É duro, dia após dia, ver chegar as noites e saber que não vou dormir ou vou acordar de hora a hora e saber que durante o dia a situação também não vai melhorar. "Durma quando o seu bebé dormir", dizem os especialistas. E quando o bebé não dorme, fazemos o quê? Agora tenho ajuda mas daqui a duas semanas, como é suposto sobreviver sem dormir? E se, em vez de melhorar, toda a situação piorar com o passar dos meses?

Não tenho vontade de fazer nada. Forço-me a sair pelo mais velho e pouco mais. Não tenho nenhuma capacidade de concentração, não tenho paciência, não tenho assunto, nem sequer vontade de conversar. Gostava muito de dormir mas, acima de tudo, que ela encontrasse o seu descanso e um padrão de sono que não a deixe agitada. Que durma mais de uma hora de cada vez. Que todos aqui em casa possam também descansar. É evidente que não foram estas as férias com que sonhei. Começa também a tornar-se óbvio que quando regressar não vou mais descansada do que quando cheguei. Não tenho respostas às minhas perguntas, nenhumas.

Por enquanto quero apenas todo o silêncio que conseguir. E que finalmente possamos dormir.

agosto 23, 2015

Bem-te-quero, mal-te-quero


Não sei exactamente quando me chegou a vontade pela primeira vez. Não sei se houve sequer alguma razão para ela aparecer mas sei que na altura não a saberia vocalizar. Eu tinha que sair de Portalegre.

Apercebi-me esta semana, enquanto parava no miradouro por breves instantes, que tenho uma relação de amor ódio com a minha cidade. Eu tinha dezassete anos e podia ter escolhido ficar mas nunca quis - precisava ir embora. Felizmente, os meus pais (à custa sei lá de que sacrifícios) deram-me a possibilidade de escolha, que muita gente não tem. Quis ir para Coimbra durante algum tempo mas, talvez assustada com toda a (para mim exagerada) tradição académica, acabei em Lisboa com apenas dezassete anos. Lá vivi quase tantos anos como em Portalegre e, apesar de não ter lá nascido, é sempre lá que sonho voltar. A Portalegre quero apenas regressar pela família que deixámos para trás.

Também percebi que me defino mais como alentejana do que como portalegrense e de maneira nenhuma me vejo como alfacinha, embora sonhe com Lisboa todos os dias. Admiro muito as pessoas que escolheram ficar aqui e outras que, não sendo portalegrenses ou sequer alentejanas, assentaram aqui arraiais. Algumas fazem pela cidade muito mais do que eu alguma vez fiz mas  a vontade de sair, de me perder fora daqui falou sempre mais alto. Mesmo assim, continuo a achar que para vencer nesta cidade são precisos demasiados empurrões e conhecer as pessoas certas é absolutamente essencial. Acontece que nunca nos movemos nesses círculos. Não tenho pena, talvez apenas alguma mágoa por ver como toda a vida as coisas funcionaram aqui.

Hoje olho para a minha cidade, vejo as mudanças radicais desde que daqui saí, perco-me em memórias daquilo que um dia aqui vivi, penso na tranquilidade que seria ver os nossos filhos crescer aqui mas sei que nunca poderia ficar. Sentir-me-ia asfixiada, sem possibilidade de ver mais mundo com os meus olhos e de o dar também a ver aos miúdos. Este ano concretizei o sonho de pisar outro continente e sei que só o pude fazer porque um dia saí.

Espero que a minha cidade me perdoe. Voltarei enquanto os nossos estiverem vivos e, num mundo ideal, escolheria ficar aqui descansada. Mas o mundo é grande demais para este meu coração e preciso de sentir que posso ir sempre mais longe. Com ela no coração, sempre.

agosto 11, 2015

(Ainda aqui estou...)

Inaugurei ontem a terceira semana em Portugal e a primeira de malas desfeitas em Portalegre. Restam-me ainda trinta dias por aqui que vou aproveitando como os miúdos vão deixando.

A viagem de carro foi bastante dura e longa. As auto-estradas francesas fazem-se pagar bem mas não nos livramos de alguns (muitos) quilómetros de filas, especialmente a seguir a Bordéus e especialmente a meio de um enorme fogo florestal já mais perto da costa que mobilizava meios aéreos e terrestres.

A viagem também é uma interessante experiência sociológica: cruzámo-nos com gente de muitos países com comportamentos a dar razão a alguns estereótipos. Os jovens muçulmanos parados nas áreas de serviço, de tapete na mão, a prepararem a oração da tarde enquanto a sua jovem mulher esperava em silêncio no carro; os holandeses, todos altos, todos louros e todos com mais de três filhos; os magrebinos em carros com matrícula belga ou holandesa, carregados sabe-se lá do quê nas lonas mal esticadas em cima do carro e (quase todos) com uma bicicleta de criança em cima; os belgas a conduzirem invariavelmente na faixa do meio, a atrasarem a vida aos outros condutores; os franceses com as bicicletas sempre atrás, como se as férias só fizessem sentido sobre duas rodas; os portugueses, a colarem símbolos da pátria onde podem para que toda a gente saiba de onde eles vêm; os carros de matrícula luxemburguesa que eu ia festejando - num país tão pequeno, a possibilidade de conhecer as pessoas é enorme!

Depois foi Lisboa e a nossa casa em Lisboa, já muito apertadinha para os quatro. Comporta, Guincho, praia das Maçãs, Fonte da Telha; Chiado, Martim Moniz, Estrela e Campo de Ourique; peixe grelhado, frango assado e alguns caracóis; amigos, irmãos e vizinhos - mesmo sem planos, acho que conseguimos atenuar algumas saudades.

E agora Portalegre, Portalegre e Portalegre. Os miúdos a serem mimados pelos avós, a mãe a descansar sempre que pode. Os três com saudades do pai que já regressou ao trabalho mas os quatro a juntar forças para o ano que começa em Setembro.

julho 20, 2015

Nos entretantos

Já comecei a escrever dezenas de posts na minha cabeça, durante a noite, enquanto trato da miúda e tento não fechar os olhos. A existir uma entidade divina, não me abençoou com a dádiva dos bebés que dormem muito e bem e por isso, quase à beira dos cinco meses, a menina Amália continua a acordar durante a noite e, se bem que não chora, requere alguma manutenção. O meu sono está esfrangalhado como de costume e, embora já soubesse como era antes dela nascer, não me está a custar menos por isso. É por isto que começo os posts no escuro, às três, quatro ou cinco da manhã: não tenho normalmente forças (nem tempo suficiente) para me sentar ao computador e escrever um post a sério.

Em jeito de resumo, as coisas que me têm ocupado a mente nos últimos tempos:

  • a Grécia e a política europeia no geral. Eu sempre disse que não percebo nada de política e, quanto mais tempo passa, mais sinto que isto é verdade. Mas, depois do que li e vi entre o referendo grego e a humilhação a que a Europa sujeitou a Grécia, percebo porque não quero entender a política: é um meio demasiado sujo e desumano. Não quero acreditar nas teorias da conspiração que muitos sugerem porque isso seria o equivalente a enloquecer de vez mas como é que se podem ignorar essas coisas?
  • estou um bocado cansada das pessoas que se indignam por tudo e por nada e das outras, que acham que ninguém  tem o direito a indignar-se assim. Desde quando é que só existem os dois extremos radicais? Já ninguém tem direito a indignar-se só assim-assim? Também me inquieta o ódio, a mesquinhez e a maldade que tomam conta das caixas de comentários à menor oportunidade e normalmente sem qualquer justificação. Como é que estas pessoas conseguem viver na vida real com tanto fel dentro de si?
  • o miúdo vai mudar de escola e ela precisa de uma creche. A parte da escola é pacífica, é mesmo ao pé de casa e automaticamente assignada pela comuna, é a creche que me deixa a cabeça em água. Volto ao trabalho em Janeiro e por isso ainda não estou em pânico mas confesso que, aos poucos, aquele sentimento de que terei de abandoná-la nas mãos de alguém que não conheço e não a conhece toma conta de mim. Ele entrou para a creche aos cinco meses e sobreviveu, ela entrará aos dez meses e também há-de sobreviver. O coração de mãe é que leva umas chapadas nos entretantos.
  • no outro dia saímos e eu levei uns boiões para a miúda comer. Escolhi-os com base na indicação da idade (eram indicados a partir dos quatro meses) e não li convenientemente os ingredientes. Acontece que os dois continham leite de vaca e ontem as reacções não se fizeram esperar: alguma dor de barriga, muitos gases e muita impaciência. Como se uma pessoa não tivesse já razões de sobra para se sentir culpada, ainda fui arranjar mais uma e injustificável, ainda por cima. Serviu de lição, enfim...
  • Daqui a cinco dias partimos para Portugal. Já tenho algumas coisas apontadas para não me esquecer mas desta vez vamos ficar tanto tempo que o mais natural é esquecer-me de alguma coisa. Marquei o hotel para meio do caminho há umas semanas para me certificar que não temos que andar às voltas à última da hora. Como me dizia um amigo há uns tempos, a viagem pode ser muito boa ou muito má, já que depende de uma criança de cinco meses. Eu estou a descair para o lado optimista mas a rezar para que seja mesmo assim...
Não acredito em soluções milagrosas mas adorava encontrar uma que me deixasse dormir um bocadinho mais e não me fizesse arrastar-me muitas vezes casa fora. Assim sendo, eu vou tentando tudo o que me lembro e pode ser que entretanto reganhe forças para ir escrevendo todos os posts que comecei às escuras e não pude acabar.

julho 03, 2015

Às vezes, esta é uma casa de loucos

Há uns dias atrás, estávamos os quatro na cozinha a jantar (nós os três à mesa, a cachopa no seu ovo). Tínhamos ligado a rádio como costumamos fazer e eis que começa a tocar esta canção:


A miúda começa a chorar de repente, no momento exacto em que se fazem soar os primeiros acordes da canção. A seguir, e numa espécie de solidariedade, o mais velho desata também num pranto, alegando que a música lhe metia medo. O barulho dos dois era tal que quem ouvisse de fora havia de julgar que se tinha passado alguma desgraça! Depois, cada um de nós consolou um deles e nós, os adultos, trocámos umas gargalhadas silenciosas enquanto abraçávamos os pequenos.

Como neste dia, alguns dias são uma confusão pegada. Às vezes gritamos mais do que queremos e do que é preciso mas estarmos aqui sozinhos, sermos esta fabulosa ilha de quatro, tem destas coisas e a paciência esgota-se mais rápido. Às vezes à noite ela chora porque lhe custa a adormecer e ele aproveita a deixa para chamar um pouco a atenção. Noutras vezes, ele começa a rir-se para ela e ela ensaia as primeiras gargalhadas ao ver as palhaçadas do irmão. Quando conseguimos que os dois se deitem, é um silêncio esquisito e que nos faz sentir como se alguma coisa não estivesse bem.

Mais do que um filho é duro, é trabalho mas é mesmo casa cheia! Ainda não dominamos totalmente a divisão das tarefas mas pelo menos é claro que cada um de nós tem que se ocupar com um deles, não há muito que enganar. Esta é talvez uma das razões pelas quais é não considero o terceiro filho: é que depois sobra sempre um e quem é que o vai agarrar quando ele desatar a correr para a estrada? De qualquer maneira, é espectacular ter estes dois macaquinhos sempre perto de nós. Mesmo que às vezes isto pareça um manicómio!


julho 02, 2015

Questões existenciais

Foi ontem depois do jantar. Eu tinha ido deitar a miúda no nosso quarto e ainda havia muita luz. Ele veio a correr e deitou-se na nossa cama, ao meu lado.

Começou uma série de perguntas sobre o crescimento dos avós, até que chegámo ao ponto em que notou que lhe falta conhecer uma avó, que infelizmente partiu mais cedo. O diálogo que se seguiu foi mais ou menos assim:

Ele: Então e onde está a mãe do pai?
Eu: A mãe do pai morreu, querido.
Ele: (ficou pensativo durante uns instantes) Então mas as pessoas morrem?
Eu: (da maneira mais calma e ponderada que pude) Sim, todas as pessoas morrem. Normalmente ficam velhinhas e é aí que acontece.
Ele: Então mas e tu estás a morrer?!
Eu: Não, querido, ainda não! Ainda falta muito para isso.
Ele: Mas mãe, eu não quero ficar velhinho e morrer!
Eu: É o curso normal das coisas, querido. Mas não te preocupes nem penses nisso agora, és muito pequenino.

Provavelmente não é assim que a pedagogia diz que se deve abordar o tema mas foi a melhor maneira que arranjei para falar sobre isto, especialmente porque fui apanhada de surpresa. Não queria falar-lhe da ideia de Céu: apesar de achar a ideia de ter alguém lá em cima muito reconfortante, não queria entrar na perspectiva religiosa da coisa.

Suponho que a partir de agora estas questões vão suceder-se de mesma maneira imprevisível e inocente. É tão difícil explicar-lhe alguns conceitos mas para mim só faz sentido aproximar-me o mais possível da realidade, mesmo que isso possa significar uma história menos cor de rosa. Não quero que ele viva numa redoma mas também não faço tenções de lhe mostrar já como pode ser cruel o mundo. Para isso, ele ainda tem muito tempo. Ainda eu me queixava dos tempos de bebé - os verdadeiros desafios começam agora.

junho 25, 2015

Singularidades de uma mãe de dois

Dormir nunca mais é a mesma coisa. Nunca, nunca mais. Já tínhamos um miúdo de quatro anos a dormir relativamente bem, apenas com alguns episódios de terrores noturnos ou simples pesadelos. Conseguimos que não bebesse leite a meio da noite a muito custo mas já não temos tido muita sorte com as horas a que acorda ao fim de semana. De repente, juntámos-lhe uma miúda de quatro meses que, apesar de não dormir a noite toda, não chora (só mesmo em desespero) e que é relativamente fácil de adormecer. Ainda estamos a treinar a coisa de a deixar adormecer sozinha na cama e acho que está a andar. Mas a cabeça de mãe não deixa dormir como antes - qualquer suspiro ou volta na cama são suficientes para despertar. Esta semana o mais velho gritou pela irmã em pleno sono e pregou-me um valente susto. Eu, que sempre conseguia dormir até ao meio dia nos bons velhos tempos, transformei-me numa pessoa das manhãs e luto para relaxar mais durante as noites.

As coisas pequenas são mais saborosas que alguns grandes gestos. Nos primeiros tempos, é difícil descrever a patetice que é ficar contente com um cocó mas foi assim com ele e continua a ser assim com ela. Ele trouxe-me a prenda do dia da mãe há uma semana. Conseguiu guardar segredo enquanto a fazia lá na escola e isso surpreendeu-me. Mas o melhor são momentos como quando me perguntou Posso dizer-te um segredo?. Acenei que sim e ele disse-me ao ouvido, bem baixinho Prometo que hoje não choro quando me for deitar. Foi ele que decidiu isto, espontaneamente, sem ninguém lhe pedir nenhum compromisso e cumpriu a promessa. Ele nunca nos deixa esquecer as nossas promessas mas também honra as dele.

Deixei de ter medo de coisas parvas. Ter um filho tem este efeito: passamos a achar ridículos alguns medo. Lembro-me de ficar tão nervosa para entrevistas de traqbalho, por exemplo, que a dor passava a ser física. E depois tive um filho e agora o segundo e nada disso me assusta. Convenhamos: quatro horas em trabalho de parto intenso em casa, quarenta minutos no hospital e nenhum tempo para levar a epidural tornaram-me mais rija. Claro que tenho ainda medo de algumas coisas mas eliminei os medos supérfluos. É muito importante ter um trabalho, claro, mas é mais importante poder estar com os nossos filhos.

Comecei a ver os meus filhos reflectidos em todas as crianças do Mundo. Nas que são refugiadas, nas que têm fome, nas que têm família e nas que não a têm, nas que se cruzam conosco diariamente. Todas as caras me fazem lembrar dos meus filhos e da imensa sorte que eles tiveram nesta lotaria: puderam nascer em países onde há paz e segurança suficientes para as crianças crescerem. É que se pensarmos no número de refugiados que existem no mundo, se não ignorarmos as imagens que nos chegam todos os dias a casa, então temos mesmo que admitir: temos uma sorte imensa por podermos fazer parte de um mundo livre, sem nunca precisarmos de deixar as nossas casas.

Às vezes pode não parecer mas consigo gerir muito melhor o cansaço. É claro que há dias em que tudo o que quero fazer é ficar deitada no sofá e reservo-me o direito de ter mesmo esses dias. Mas depois há os outros em que consigo fazer tudo o que tenho em atraso e nesses dias sinto-me uma verdadeira super-mulher. Às vezes ando a passear com ela no quarto de olhos fechados e com vontade de dormir, outras só estou à espera que eles se deitem para poder fechar os olhos mas no geral sinto-me muito menos cansada do que quando nasceu o Vicente. Talvez seja o calo, a prática, não sei, mas por enquanto ainda dá para gerir. Só não quero pensar quando, daqui a seis meses, tiver que voltar ao trabalho. Mas empurrei essa data para o meu inconsciente e lá ficará até dar.

junho 11, 2015

De que têm medo os Luxemburgueses?

(Disclaimer prévio e óbvio: não percebo nada de política. Este post é menos sobre castigos políticos e mais sobre integração.)

No passado Domingo, os Luxemburgueses foram chamados às urnas para um referendo, onde lhes foram feitas três questões:

- está de acordo com o voto a partir dos 16 anos?
- está de acordo com o voto dos estrangeiros residentes (desde que habitem no Luxemburgo há pelo menos dez anos e tenham já votado em eleições comunais/europeias anteriores)?
- está de acordo com a limitação dos mandatos governamentais a um máximo de dez anos?

A questão sobre o voto dos estrangeiros incendiou as conversas e as redes sociais, ao mesmo tempo que trouxe para a discussão a ideia de que, apesar de muito se falar sobre tolerância e integração, os Luxemburgueses (grande parte, pelo menos, e a julgar pelos resultados do referendo) são xenófobos. Um pouco antes e depois desta consulta pública, dediquei-me a investigar os foruns online sobre o assunto e fiquei assustada e, simultaneamente, espantada com aquilo que fui lendo.

Primeiro, há que dizer que o Luxemburgo é um caso isolado no que diz respeito aos seus congéneres europeus: é o único país em que a percentagem de estrangeiros residentes está prestes a ultrapassar a percentagem de naturais do país. Do total de 563 mil residentes, 258 mil são já estrangeiros (donde 92 mil são Portugueses). Prevê-se que em 2020 o número de estrangeiros a residir aqui ultrapasse os naturais do Luxemburgo, a fazer crer no balanço migratório dos últimos anos. Isto quer dizer que em breve mais de metade de população deste país não terá direito a votar e terá que aceitar as escolhas de menos de metade da população.

Os Luxemburgueses contra o direito ao voto dos estrangeiros (quase 80% dos votantes neste referendo!) acham que todos os estrangeiros que querem votar devem pedir a nacionalidade Luxemburguesa. Para este efeito, é apenas necessário residir no país há pelo menos sete anos, frequentar um curso de instrução cívica e passar num curto teste de Luxemburguês (uma prova oral sobre assuntos do dia a dia). São estas três cláusulas que tornam alguém digno de poder votar neste país. Eu acho que saber Luxemburguês é desejável e devia ser encorajado mas num país com três línguas oficiais e em que as demarches administrativas são feitas maioritariamente em Francês e Alemão, não entendo a insistência. Falar e compreender duas das línguas oficiais, por exemplo, devia também valer alguma coisa.

Os Luxemburgueses querem, naturalmente, defender a sua língua, história e património. Evidentemente, sou a favor desta auto-preservação, que creio ser comum a todos os povos. Mas os Luxemburgueses acham que os estrangeiros apenas vêm para ganhar mais dinheiro que no seu país de origem e nada mais. Esquecem-se que esses mesmos estrangeiros também querem ficar porque gostam de viver num país mais justo, onde as melhores condições de vida não se resumem aos ordenados, onde há gente de centena e tal de nacionalidades, onde o património histórico e natural são verdadeiramente impressionantes e porque o país está exactamente no coração da Europa. Também se esquecem que os estrangeiros trabalham e, como tal, pagam as suas contribuições, sendo que muitas vezes ganham menos do que um trabalhador luxemburguês exactamente na mesma situação.

Muitos comentários que li diziam qualquer coisa como "Não gostam? Podem voltar para a vossa terra". Acho que estes comentadores se esquecem que sem nós, os estrangeiros que (ainda) não sabem falar Luxemburguês mas que vivem em pleno a sua vida no país não existiria construção civil, restauração, turismo, serviços. Sem nós, o país estaria muito mais atrasado e seria muito menos atraente. Era bom que, a curtos passos de nos tornarmos a maioria, os Luxemburgueses passassem a olhar para nós como parceiros em vez de potenciais ameaças. E que percebessem que uma língua não nos faz amar e valorizar mais o seu país.

junho 02, 2015

Bem-me-quer, mal-me-quer

Nos últimos tempos tenho ouvido algumas histórias de relações que não deram certo. Não vou cometer o erro de considerar que os motivos foram sempre os mesmos mas, no geral, há uma característica que me parece comum a todas: há muitas pessoas que não sabem o que querem.

Pessoalmente sempre tive um problema: parti sempre para as minhas relações com a ideia de que aquela é que era. Mesmo nas relações mais fugazes, em que honestamente eu sabia que não tinha grande hipótese de ir a algum lado, eu investi muitíssimo em fazer tudo resultar. Acho que sempre levei tudo demasiado a sério, nunca fiz coisas só por fazer, sempre procurei ser a melhor versão de mim mesma. Mesmo por isso, vi-me enredada em algumas ilusões que eu mesma criei, sofri e, nesse aspecto, fui responsável for esse sofrimento. Mas, se existe alguma coisa de que me posso orgulhar, é o facto de sempre ter respeitado as pessoas que passaram pela minha vida.

Ouço histórias hoje em dia que me fazem temer pela minha própria relação: pessoas que estavam juntas há imenso tempo e que se separam pelos motivos mais absurdos, famílias que se constroem para logo cada um ir à sua vida, divórcios e separações litigiosas, surpresas um pouco tristes, até na minha perspectiva. Não tenho nada contra pessoas que não querem assumir compromissos, que querem ser livres. Mas então que o admitam, ajam de acordo essa sua filosofia de vida e poupem as outras pessoas do sofrimento desnecessário. Ouço histórias de pessoas que mudam radicalmente e um dia simplesmente deixam de gostar e tenho medo por nós.

Na maioria dos casos, acho que as pessoas se esquecem que uma relação a sério requere trabalho, empenho. Não é só feita de magia e daquela paixão inicial, ambas tão fortes e cegas. Uma relação a sério passa, a partir de um certo momento, a ser também composta daqueles momentos banais do quotidiano, sem glamour nem encantamento, dos defeitos do outro e dos nossos defeitos (tanto os que conhecíamos como os que vamos descobrindo), dos filhos se os houver, das vezes em que só pensamos em estar sozinhos. Não é fácil, muitas vezes não é inspirador, não é bonito. Não é só caras felizes nem fotografias perfeitas, não é toda a gente de acordo, uma rotina sem percalços. Não sei se há quem espere tudo isto mas eu acho que não existe nada assim. Mas sei que existem relações em que as pessoas cuidam uma da outra, em que o sentimento de segurança e tranquilidade é avassalador, em que a admiração e o orgulho pelo outro vão crescendo, em que o amor vence as quezílias mais mesquinhas com o sorriso gozão de quem sabe que ia ganhar. Felizmente, também conheço histórias de amor duradouras, de preserverança e empenho. E a única coisa que desejo é que todos possam encontrar alguém por quem valha a pena lutar, com quem valha a pena discutir, com quem possam ser verdadeiros e por quem se sintam valorizados. Eu bem sei que muitas vezes parece qualquer coisa verdadeiramente rara e inatingível mas talvez com um pouco de paciência e o olho bem aberto a pessoa certa esteja bem perto. E se não estiver, continuo a acreditar que mais vale só que mal acompanhado.

maio 27, 2015

Arqueologia sentimental


Não é fácil. Não é fácil pensar que nunca mais entrarão nesta casa, que as velhas cadeiras nunca mais serão ocupadas por eles para ver quem passa e que as flores nunca mais serão regadas e mimadas como antes. A casa da minha avó está vazia de pessoas mas cheia de recordações. Acho que ela não pôde despedir-se convenientemente porque a doença já não o permitia mas sabe que não voltará a entrar aqui. E assim eu fico triste - por mim e por eles.

Temos o resto do nossos pertences na sala da minha avó. A mesma sala onde quase nunca entrava, onde a minha avó guardava as melhores peças de roupa, onde descansava a papelada do médico e algumas fotografias nossas. São caixas e caixas de coisas que deixámos para trás no imenso silêncio que é o que resta dos meus avós. Não me hei-de esquecer nunca: o retrato gigante do meu pai quando estava no Ultramar, o gato de loiça a substituir o gato que uma vez largaram em Arronches, o velho relógio a marcar as horas que sempre passaram lentas, os cortinados de renda que foram fundo de fotografias encenadas e pouco naturais, as flores e plantas que a minha avó sempre adorou com o seu jeito inato, o pote com açúcar louro que sempre guardou na gaveta ao lado do fogão, a pequena cafeteira com que fazia a mistura para os nossos lanches e que bebíamos em chávenas que eram maçarocas de milho, a cama onde me sentei tantas vezes enquanto o meu avô ainda dormia depois do turno da noite, as nossas fotografias em bebé e os nossos primos afastados e eu vestida para a primeira comunhão.

Não quero ter medo de um dia entrar lá em casa mas a verdade é que agora sinto que em breve não restará nada, apenas os fantasmas da vida que tivemos lá, enquanto crescíamos. Não me esqueço dos lanches nas escadas como se fossem piqueniques ou de entrar a custo pela varanda depois de vir da biblioteca carregada de livros. Hei-de sentir sempre o cheiro a cortiça e ver as mulheres que se param a conversar ao pé do quiosque e lembrar-me das batatas fritas que a minha avó me fazia (grossas e moles, como eu mais gostava). Eu sei que eles vivem enquanto restarem as nossas memórias mas não é a mesma coisa. Parece que com eles desaparece também a minha infância e tudo o que resta são os artefactos desse tempo numa espécie de museu. A casa da minha avó está vazia de pessoas mas cheia de recordações.

maio 13, 2015

Estar só

Num período bastante conturbado da minha vida tive que aprender a estar só. Para algumas pessoas, é qualquer coisa que sai naturalmente mas não para mim, habituada a estar sempre com gente à volta, a sair mesmo sem propósito. Passei muitas horas, muitos dias sozinha em casa. Às vezes só falava com as pessoas com quem trabalhava, outras nem isso. Hesitei muitas vezes entre cozinhar para uma pessoa ou comer só qualquer coisa. Nao tinha horários e era completamente dona do meu tempo e das minhas decisões. Era uma liberdade esquisita porque às vezes desejava estar presa a outro alguém.

Depois vieram os filhos. Todos sabemos que há um tempo antes dos filhos e outro depois deles chegarem. Com um, ainda conseguia ter algum tempo livre, algum silêncio e espaço para respirar. Com dois, e se bem que ela é ainda uma bebé com poucas exigências, vi-me privada desses momentos de solidão. E estou a todo o momento a arranjar maneiras de substitui-los como posso. É por isso que caminhar me faz tão bem: a miúda vai a dormir no carrinho, eu a ouvir um podcast qualquer ou simplesmente os sons do bairro. Se calha ela a dormir um pouco mais (como neste preciso momento) tento desligar-me das tarefas e dos afazeres e simplesmente aproveitar o silêncio e estes minutos em que não preciso de tratar de ninguém, em que ninguém esta directamente a depender de mim. Poder sentar-me na nossa varanda e ler um pouco nestes dias em que se começa finalmente a sentir a Primavera é realmente um luxo e eu faço o que posso para aproveitá-lo.

Daqui a uns minutos volto a ser necessária e daqui a umas horas duplamente assim. Por agora, sou apenas eu a pensar no que ainda tenho a fazer, a apanhar um pouco de Sol e às vezes é tudo o que é preciso.

maio 06, 2015

Ser mãe: um longo tratado de culpa

Li este artigo há uns dias e não pára de me assaltar o pensamento desde então. Para quem não tem tempo ou vontade para o ler, é um artigo que versa sobre a forma como um casal mudou de ideias sobre a melhor maneira de fazer férias depois de ter um filho: passaram de aventureiros destemidos para um casal que procura o conforto dos resorts com tudo incluído. Também descreve as diferenças entre as infraestruturas disponíveis para quem viaja com crianças nos Estados Unidos (país de origem) e a Escócia (país onde o autor vive no momento). Mas, mais do que o artigo, o que me ficou na memória foi a discussão que se gerou na caixa de comentários.

Para além do binómio já esperado comentadores sem filhos/comentadores com filhos, surgiram outras questões pertinentes sobre as viagens com  filhos de várias idades. Algumas posições chocaram-me bastante (às pessoas com bebés não devia ser permitido viajar de avião, as crianças nunca devem ser levadas a jantar a restaurantes, os bebés devem estar é em casa), outras fizeram-me pensar bastante (o que fazer quando os miúdos se portam mal, escolher sítios apropriados à idade para evitar o desconforto dos olhares de soslaio e adaptar o comportamento dos miúdos às circunstâncias).

Mãe de duas crianças, não consigo evitar o sentimento de culpa pelo potencial comportamento indesejável dos meus filhos: por um lado, uma bebé pequenina que sofre imenso com a imaturidade do seu sistema digestivo e é obviamente incapaz de controlar o seu mal estar; por outro, um puto de quatro anos que, apesar de gentil e amoroso quando quer, não pára de ser rebelde e tentar afirmar-se como um ser independente. Com ele, precisamos do triplo da paciência, muita capacidade de negociação e muitas estratégias para o distrair das suas parvoíces. Mas daqui a deixar de fazer coisas para não incomodar os outros? Não me parece. Na cabeça de algumas pessoas, ter filhos é o equivalente a renunciar a uma vida social. É claro que não os levamos a todo o lado e preferimos as actividades com crianças mas isso é apenas o senso comum a falar.

O caso do mais velho é o que me preocupa agora. Dois meses depois da irmã nascer, as birras atenuaram um pouco e os dramas irracionais diminuíram de dimensão. Já conseguimos fazer uma refeição sem acabarmos todos aos gritos e que ele se mantenha a dormir na sua cama. Ele adora a irmã e não interage mais com ela porque nós não deixamos ou estava constantemente em cima dela - literalmente. Mas continua um pouco beligerante e muitas vezes é difícil argumentar com ele para que se comporte ao nível do normal. Não negociamos com comida e tentamos que sejam sempre reforços positivos a fazê-lo andar na linha mas muitas vezes nem isso funciona. Tento falar com ele e saber como foi a escola: ele responde sempre que correu tudo bem mas não é verdade, às vezes as professoras contam-nos histórias que nos preocupam. E aqui entra a culpa: estamos a fazer tudo mal? Que parte disto tudo é culpa nossa e que parte é responsabilidade da personalidade dele? Eu acredito que podemos ter os propósitos mais nobres na educação de um filho mas há muitos factores externos que não podemos controlar e um deles é ele ser a sua própria pessoa e não o que nós antecipámos como filho.

Não tenho respostas e muito menos soluções. A senhora que o vai buscar à escola diz que ele é uma mão cheia de trabalho mas que apaixona as pessoas que o conhecem. Eu preocupo-me com o seu futuro com antecipação porque quero que seja um tipo porreiro, que se interesse pelo mundo e respeite os outros. Não sei medir se estamos ou não a conseguir transmitir-lhe tudo isto: talvez seja algo que só se pode ver bem à distância mas sei que não desistimos de tentar. Que pena não podermos ter segundas oportunidades mas pelo menos sabemos que fazemos o que podemos.

abril 22, 2015

Virar o jogo

Começar, como em tudo, é muito, muito difícil. Antes de mais, um disclaimer mais ou menos evidente: não procuro ser uma atleta de alta competição nem uma super modelo. Quero só ser mais saudável (e, claro, perder uns quilos no processo), acho que é um desejo simples e que resulta do senso comum.

Muitas vezes as pessoas confundem a licença de maternidade com um período de férias. Não trabalhamos fora de casa, é certo, mas temos um bebé para cuidar e isso a mim ocupa-me muitíssimo tempo. Nas primeiras duas semanas foi relativamente fácil mas a tarefa complicou-se desde então e a miúda exige-me muita atenção. Só esta manhã, por exemplo, foi andar com ela ao colo para trás e para a frente para acalmar até decidir sair um bocado de casa antes que desse em maluca. Tentar enxaixar exercício nestes primeiros meses é uma missão difícil mas não impossível. Vejo aquele video da mãe super-em-forma que faz exercício com o seu bebé em cima e só penso Agora experimenta a fazer isso com um bebé de dois meses com cólicas e que não pára de chorar, vá.

Estava fora de questão ir para um ginásio (já tentei demasiadas vezes para saber que não funciona) e ainda não dá para correr sozinha. A solução? Um programa de exercício que posso seguir sozinha em casa (poupo dinheiro, tempo e o desconforto dos balneários) e caminhadas com a miúda sempre que o tempo o permite. Era muito bom ter alguém por perto para corrigir a minha postura ou para me motivar mas por agora chega-me bem poder seguir um plano de exercícios durante cinco dias por semana, no conforto de casa e sentir que pelo menos me estou a mexer. Depois é só pegar no carrinho dela e andar um bocado aqui pelo bairro e já me sinto mais leve no final.

E a decisão lógica seguinte foi começar a comer melhor. Não se trata de nenhuma dieta, é apenas o que se designa de comer o mais clean possível: diminuir o consumo de carne e apostar noutras proteínas, escolher produtos frescos e da época para cozinhar, evitar ao máximo todos os alimentos processados. Há dias em que é mais difícil seguir os preceitos à regra: são dois filhos a precisarem de muita atenção, uma casa para gerir - nem sempre me apetece cozinhar e muito menos cozinhar tudo mas o que interessa é fazê-lo o maior número de vezes possível. O verdadeiro desafio é passar estes hábitos para a restante malta cá de casa, embora sejam incontestavelmente mais saudáveis.

Mesmo antes de ver quaisquer resultados, sinto-me bem e existe apenas um único motivo: a vida é minha e eu faço dela o que quiser. Poder tomar as rédeas com convicção e determinação, poder decidir o que é melhor para mim sem esperar pelos outros - poucas coisas sabem tão bem! E no fundo os resultados já aí estão: mais energia e aquele cansaço bom quando me vou deitar. Agora é bola para a frente e força de vontade para não furar os planos!

abril 17, 2015

A vida lá fora


O céu hoje acordou cinzento pela primeira vez em bastantes dias. É apenas um intervalo, segundo a meteorologia, que prevê o regresso do Sol para amanhã. Mas nem o cinzento consegue ofuscar o branco puro da árvore que está quase totalmente florida e a qual ainda nos falta identificar - somos novatos nestas coisas de quintais.

No chão, restam ainda as folhas que caíram no Outono passado, à espera que saibamos o que fazer com elas. Tenho visto alguns vizinhos a cuidar dos seus quintais e estou a tentar aprender pela observação antes de recorrer aos tutoriais que devem estar espalhados por aí. À esquerda, fica o quintal cuidado do nosso vizinho que partilha o apelido com a nossa rua e que gosta muito de cumprimentar o Vicente pela manhã. À direita, o estendal onde a nossa vizinha congolesa estende a roupa dos seus três filhos. No outro dia, apanhou-me a estender a roupa com os miúdos e desceu para se vir apresentar e conhecer-nos. Sou muito má com nomes mas sei que tem três filhos (rapaz de 25 anos e gémeos rapariga-rapaz de 15). Falou-me da viagem que fez no ano passado a Lisboa e de como comeu bem por lá. Concordámos as duas que é fácil fazer boa vida em Portugal quando se vive por estas bandas. A nossa vizinha de baixo juntou-se à conversa e percebi que fazem as duas exercício juntas quando começaram a brincar aos agachamentos. A senhora congolesa faz limpezas em lares de idosos e diz que já viu de tudo mas que teve uma surpresa (desagradável) na semana passada. A minha vizinha de baixo trabalhava numa pastelaria até ter um acidente de trabalho que a tem de baixa há vários meses. O que meia dúzia de minutos nos pode dizer sobre as pessoas...

À nossa frente, duas personagens: a velhinha que de vez em quando espreita à janela e usa a marquise apenas para passar a roupa a ferro e deixa-la bem estendida, pendurada em cruzetas; do seu lado esquerdo, o senhor que podemos ver a vestir-se todas as manhãs, pouco depois das sete, e que nunca abre ou fecha as persianas de casa. Há pássaros a pousarem na nossa varanda e a picarem um ou outro quintal, há esquilos de vez em quando a saltar de árvore em árvore à procura de qualquer coisa para comer. Estamos mais longe do percurso que os aviões fazem pouco antes de aterrar no Findel mas ainda os conseguimos ouvir a chegar. Aposto que mais umas semanas e vai começar a cheirar a sardinhas ou entremeada grelhada quando chegarem as sete da tarde. Nós havemos de procurar um grelhador maneirinho, uma mesinha para a varanda, umas cadeiras para o quintal e uma manta para deitar os miúdos. Nunca pude viver as traseiras de uma casa e ainda me estou a habituar a ter um espaço assim. Falta-nos um estendal e o tempo para tratar do pedaço de terra onde hei-de plantar as plantas comestíveis. No fim disto tudo, só nos ficará a faltar a companhia dos nossos para fazermos um beberete nos dias quentes!

abril 14, 2015

Também há Primavera a Norte!


É de caras: um céu azul faz muito mais por nós do que qualquer anti-depressivo artificial. Basta que o Sol entre pelas janelas pouco depois das seis da manhã e que o céu se mantenha azul durante todo o dia e sai meio mundo de casa para aproveitar.

O parque estava cheio de miúdos e pais que se dividiam entre escorregas, baloiços, bancos a entreter bebés mais pequenos ou simplesmente a conversar com outros pais. A língua que mais se ouvia era - surpresa! - o Português. Havia quem o falasse discretamente, outros gritavam-no para quem quisesse ouvir. Quanto mais tempo passamos aqui, mais fácil se torna saber quem é português só pelo aspecto. Nunca, mas nunca, falhamos!

As ruas da capital e os parques de estacionamento estavam sobrelotados. As gelatarias não tinham mãos a medir (com empregados - adivinhem! - portugueses!), todas as escadarias e bancos eram um pretexto para parar e absorver o Sol. Há árvores floridas por toda a parte, num espetáculo de cor que rivaliza apenas com o Outono. As varandas e terraços encheram-se de vida, com o solitário na companhia de um livro, até ao grupo de amigos simplesmente na conversa. Lembrámos-nos que precisamos de uma pequena mesa e cadeiras para a varanda, talvez umas espreguiçadeiras para o jardim. Tenho quatro pacotinhos de sementes de ervas comestíveis por plantar e finalmente nem preciso de vaso!

Durante as horas que passámos fora de casa, tudo parece mais simples, care free. A miúda chorou um bocadinho mas nada que um bocadinho de leite não consiga acalmar. Mesmo que os outros dias sejam mais pessimistas, mais negros, é vital que estes dias leves também vão aparecendo para que eu não me esqueça de como é realmente a vida lá fora.