março 31, 2009

One is the loneliest number

Partamos do princípio que sou uma rapariga solteira. Partamos também do princípio que tirei férias numa altura em que mais ninguém que conheço tirou. Façamos agora um exercício: marcar uma estadia num hotel, dentro ou fora de Portugal, apenas para uma pessoa. Este exercício, aviso já, não tem solução.

Recebi uma oferta de pacotes de férias de Verão em vários sítios do nosso país. Que se marcasse já, os preços seriam escandalosamente mais baratos e, realmente, existiam ofertas muito interessantes. O único problema é que não encontrava a opção quarto single em lado nenhum. Daí, resolvi telefonar para a linha da agência, para tentar perceber as minhas opções. Depois de muita música, ouço do outro lado da linha que o empreendimento me oferece essa possibilidade. Mas pelo preço de duas pessoas, claro. E se eu fosse uma rapariga comprometida e quisesse uma semana de paz interior, tentando renovar baterias longe da minha cara metade? Também podia ser. Pagando o preço de duas pessoas.

A simples ideia de programas exclusivos para solteiros, speed dating ou serviços do género assusta-me um bocado porque não concebo listar características de uma pessoa para que tentem encontrar alguém que se encaixe nessa descrição. À força. É claro que podia encontrar o amor num cruzeiro para encalhados ou num fim de semana relâmpago em Viena. Mas então e o romance? As semanas que demora a perceber que se anda a pensar demais numa determinada pessoa? As borboletas na barriga à vista do outro ou exactamente antes de dormir? O orgulho que nos custa a engolir para tomar uma atitude e nos insinuarmos de rompante? Ou a paixão que nos derruba sem sequer percebermos de onde chegou? Sim, tudo isto existe. Mas só se formos de férias com mais uma pessoa. Ou dez, para todos os efeitos.

E até podia falar do agravamento da carga fiscal para solteiros sem dependentes. Ou de como os supermercados embalam tudo em quantidades destinadas a servir pelo menos dois. Mas o que me chateia mesmo são as férias. Saímos mais caros sozinhos que mal acompanhados.

março 29, 2009

Sobre a pele que há em mim tu não sabes nada *

Porque não queres. Fazemos parte de constelações tão diferentes, desalinhadas na sua essência, incapazes de se cruzarem em pleno trânsito astral. De vez em quando, pedes-me que me mantenha na tua órbita, num movimento estudado do qual já conheces o fim, porque foi assim que o planeaste sempre. E eu, de vez em quando, esqueço-me de ti, arrumo-te a um canto, declaro-te oficialmente erradicado de todos os momentos que antecedem o meu sono. Deixo de pensar nos teus lábios, nas perguntas que nunca chegaram a aparecer, nas perguntas que nunca me atrevi a verbalizar, no depois. Sobre a pele que há em mim tu não sabes nada. E eu, que sempre te quis entender, que um dia pensei que talvez tivesse chegado a hora, que te dou sempre segundas e terceiras e quartas oportunidades, hei-de aceitar que estou a anos-luz de quem tu queres. Nesse dia, mesmo a tua pele (o teu cheiro a efémero sobre os meus lençóis) deixará de contar, os teus olhos deixarão de me procurar quando estás de saída, as minhas mãos deixarão de escrever sobre ti. Mas continuarás sem saber nada sobre a minha pele.

* a Márcia tocou também esta quinta-feira no Maxime e escreve coisas muito bonitas e frágeis.

março 28, 2009

Eu, que construo ídolos por tudo e por nada

Eu já te tinha ouvido cantar, Samuel*. Pelas vozes de outros homens que, agarrados à sua guitarra, brilham como tu em cima de um palco, sem pudores nem desconforto, apenas com a simplicidade de quem sabe o que está a fazer. Já tinha ouvido cantar mas nunca tinha, como tu mesmo disseste, visto ninguém partir pedra em palco. Mas esta sensação de déjà vu não se esgota aqui. As ideias são tuas, o jogos de palavras também te pertencem a intensidade com que marcas o ritmo com as botas sobre o mármore branco e como deixas o teu peito voar através da camisa azul que manténs aberta - tudo teu. Mas um dia eu vi alguém parecido contigo a tocar um guitarra numa manhã clara de Inverno. Eras tu e era outro mas a guitarra era a vossa continuação, empunhavam-na com orgulho, passeando o dedo sobre as cordas enquanto eu, atrás dos holofotes e da luz sobre aquele sofá naquela manhã, ficava profundamente tocada com a música que levam dentro, pela vossa expressão de comoção a cada acorde novo.

Por isso Samuel, não estranhes que goste do que fazes. Da fina ironia com que tratas quem te ouve, da voz que te falha mas nunca te impede de continuar, da forma encantadora como pareces demasiado auto-consciente, da tua falta de jeito em frente a um piano. Sou apenas uma cara anónima que se derrete com o talento de um homem e com as suas imperfeições. Mesmo que, no fim, ele tenha pés de barro.

*o Samuel Úria tocou na quinta-feira no Maxime e foi fotografado pelo JER para a Rua de Baixo

março 25, 2009

JC says:

...que, não obstante eu ter já participado há pouco numa corrente idêntica (é o que dá perder o feeder ou o reader, não sei que a modernidade não chegou ainda a este T2 na Lapa), devo deixar aqui a quinta frase da página 161 do livro* que ando a ler. E eu, como hoje não estou com medo de parecer uma assistente administrativa com a mania que domina uma das línguas do Mal, acedo.

Da lebten gleichzeitig in derselben Stadt der erste Physiker und der erste Sexualforscher.

Não foi bem uma pochette das que eu pedia (e merecia!) mas valeu a lembrança.

* Don Juan de la Mancha de Robert Menasse

março 24, 2009

Trinta e três minutos

Seis e quatro da tarde. Não está calor e guardo o casaco na mala. Já estou quase a enfiar-me na entrada do metro, aquela boca sempre pronta a engolir-nos, nunca exausta ou hesitante. Não percebo sequer como decido. Mas sei que às seis e quatro estou antes a descer a avenida Fontes Pereira de Melo, num passo estranhamente calmo (especialmente para mim), decidida a chegar a casa pelo meu pé. É o Boxer a tocar e abafar o ruído dos carros que, ordeiramente, formam fileiras antes de todos os semáforos por onde passo. Não sei sequer porque regresso a este álbum hoje mas nem sequer me ocorreu que podia ouvir outra coisa. Faz-me lembrar o Verão passado, um momento específico do Verão em que, sentada sobre as ondas da Comporta, penso que podia controlar alguma coisa. Nesse mesmo dia, descubro que não há nada que consiga evitar e espalho-me ao comprido.

Seis e dezoito da tarde. Avanço mais rápida, subindo a Braancamp e cruzando-me com os yuppies que os edifícios à volta parecem cuspir em grupos de três. É isto que queres ser, pergunto-me, um par de pernas preocupado com o próximo corte de cabelo, com o stock de base que teima em nunca chegar e com as próximas férias num sítio onde possa ser vista? E, se este fosse um outro dia, eu diria que sim, que se lixasse o amor e uma cabana, que limparia uma cabeça perdida para as fantasias, que sacrificaria a minha paz de espírito pela paz do meu bolso. Mas somos todos mais ou menos felizes assim, yuppies e eu, nesta rua ou em qualquer outra da City lisboeta.

Seis e trinta e cinco da tarde. Perco a conta às mensagens que já trocámos hoje e aproveito a pausa nos semáforos para lhe responder mais uma vez. Ele faz-me pensar que uma relação poderia subsistir apenas com palavras: uma pontuação cuidada, o estilo sóbrio misturado com a ironia com que ambos aprendemos a viver, histórias que cabem em cento e sessenta caracteres. Sei que está na hora de ele voltar a casa e sei que nos estamos a despedir agora. E sei ainda que estamos condenados a ser apenas isto, duas pessoas que se podiam ter cruzado não fosse esta pessoa aqui ser um poço, um amontoado de incertezas e feridas que custaram o Mundo a fechar. Mas o conforto de saber que ele está sempre ali, sempre à distância da minha mão ou da vibração do meu telefone é desarmante. É como se, esperando e conhecendo o nosso ritmo, pudéssemos atravessar os dois o jardim da Estrela, meio descontentes com o que temos.

Seis e trinta e sete da tarde. Estou em casa, a momentos de saber que janto sozinha. Ainda consigo deixar a janela aberta até aquecer o que quer que seja a que vou chamar jantar. Estamos na Primavera e eu sou toda hormonas. Alguém que me arrebate deste sofá, se faz favor. Ou que me arrebate neste sofá. Ou que venha comigo a pé para casa desde o trabalho. Sem chatices profissionais. Só os dois, a fazer pouco de quem vai enlatado no autocarro em plena hora de ponta. O resto é conversa, prometo.

março 22, 2009

Ficção #15

Ela consulta o relógio pela enésima vez naquela tarde. Está estendida sobre a cama, deixa a cabeça pender em direcção ao chão, tem os olhos abertos mas é como se não visse nada. O resto da casa está em silêncio, apenas consegue ouvir o cortinado que avança e logo se retrai com a passagem do vento quente, vozes de mulheres que sobrem a rua com os livros debaixo dos braços. Sabe que não devia estar ali, sabe que há compromissos que a esperam no outro lado da cidade mas não consegue impor a sua vontade à vontade do próprio corpo e deixa-se ficar. Do terceiro piso do prédio em frente ouve-se o som de uma guitarra. Se ela pudesse levantar-se e chegar perto da janela, veria um rapaz de guitarra ao peito, o olhar perdido sobre os telhados habitados por gatos vadios e velhos esqueletos de antenas. Não saberia distinguir se ele tocaria de amor ou de saudade mas poderia tentar adivinhar-lhe a intenção no olhar.

O relógio não lhe mostra o que ela quer ver. Ela supõe que irá falhar o seu compromisso e antecipa já a desilusão que irá provocar. Pensa em chegar à janela, para perceber se é só imaginação o que vê neste momento: um homem a descer a rua, mãos nos bolsos, um olhar triunfante que faz baixar os olhares das mulheres com quem se cruza; um homem encostado a uma ombreira da porta, com a sua vida dentro de uma pequena mala, esperando pacientemente que ela chegue; um homem que, estando perto dali, se desviara do seu caminho e quisera apenas olhar-lhe a janela aberta, em silêncio, sem nunca se denunciar. Mas não há sinal desses homens em lado nenhum. Ela sabe mas isso não a impede de os sonhar todas as noites, cruzando-se em intrincadas histórias surreais, transformado-lhe o sono em horas de agitação. São demasiados corações em trânsito, pensa ela, que espera apenas a colisão com um corpo celeste.

março 19, 2009

O senhor M.

Esta fotografia tem uns belos quinze anos, talvez. Foi tirada à saída da montanha russa na Feira Popular e, apesar das nossas caras felizes, tínhamos os nossos estômagos às voltas. Lembro-me que tinha uma t-shirt nova, que adorava e que estávamos de férias em Sesimbra, no Alto das Vinhas. O meu pai tinha o bigode muito preto, eu e a minha irmã estávamos na idade estúpida das raparigas.

Eu tenho muito mau feitio porque o herdei do meu pai. Gostamos muito de ter razão e às vezes não temos motivos para justificar o que dizemos. Damos poucas vezes o braço a torcer mas o tempo já nos amansou e até nisso somos iguais. Ele queria-me engenheira e ainda hoje me diz que eu devia candidatar-me a um posto da Microsoft, como se isso por si fosse garantia de sucesso. Trazia-me carteiras de cromos de umas colecções bestiais (carros, motas, equipas da primeira divisão com o Marlon Brandão a jogar no Estrela da Amadora) sempre que ia ao café. Levantava-se às quatro da manhã para fazer sete quilómetros e apanhar-me à porta da discoteca. Eu, como o meu pai, tenho um gigantesco problema em dizer não. Lembro-me dele acordar de madrugada para ir trabalhar para fora de Portalegre, enquanto a minha mãe lhe preparava o termo com a sopa e fritava uma omelete. O meu pai (e a minha mãe) é o meu grande exemplo profissional: nunca o ouvi ter preguiça e muito menos a ser injusto. Como ele, tenho orgulho num trabalho bem feito e procuro ser sempre honesta comigo própria.

Numa fase muito má da minha vida, em que fui tudo menos verdadeira comigo e com toda a gente, o meu pai recebeu-me literalmente de braços abertos e consolou-me e ouviu-me chorar o que aguentou. Já fiz chorar o meu pai umas duas vezes na vida. À minha frente, pelo menos. O meu pai ensinou-me tudo: a preencher o reembolso do IRS, a mudar um pneu, a usar ferramentas. Muitas vezes não o compreendi mas hoje tudo faz sentido na minha cabeça. O meu pai (e a minha mãe) deu-me sempre tudo o que conseguiu. E ainda mais, porque eu sempre tive um jeito de conseguir dele tudo o que queria. O meu pai larga tudo para me ajudar - já deixou um casamento à uma da manhã para fazer duzentos quilómetros para me salvar. Quando tiver um filho, quero que o pai desse filho seja como o meu pai, o verdadeiro homem da minha vida.

março 18, 2009

Um dia triste

O caos e a arbitrariedade assustam-me. Não conseguir controlar todos os acontecimentos que me dizem respeito, estar sujeita ao curso natural das coisas é aterrador. O meu sofrimento faz nascer muitas das minhas palavras, o sofrimento dos outros cala-me insistentemente.

Aos meus amigos, um abraço. Nestas alturas, digo mais com os gestos do que com qualquer combinação de caracteres.

março 17, 2009

Run M. run!

Eu pensava que era um lugar comum mas afinal é verdade. Esta malta começa a ver os dias a ficarem mais longos, a temperatura a subir às casas das duas dezenas, a oportunidade de reaver decotes e calções e toca de ir correr um bocadinho. De Setembro até agora, muitos foram os dias frios, com aquela humidade que me deixava nervosa e se colava à pele em que corri no escuro. Fui conhecendo as caras de quem arriscava também palmilhar os caminhos sinuosos do jardim da Estrela, mesmo quando essas caras se escondiam do frio debaixo de um capuz ou de um gorro cuidadosamente enfiado até aos olhos. Há até uma pessoa a quem cumprimento, tantas foram as vezes com que me cruzei com ela e com o Igor, um labrador lindo que corre mais que a dona.

Correr é muito libertador mas, melhor que tudo, é muito barato. Aliás, é de graça. Basta calçar uns ténis, escolher uma roupa mais confortável e o Mundo é meu. Posso correr entre os carros que estacionam em cima do passeio, a caminho do talho, antes de perder o eléctrico, à volta do meu quarteirão. Eu demorei muito tempo a encontrar um ritmo, uma constante força de vontade mas acho que lhe apanhei o jeito e agora sinto-me inquieta quando não calço os ténis. É que correr dá resultados, além de me proporcionar muito tempo para pensar, ou melhor, para esvaziar a minha cabeça de coisas sem sentido e concentrar-me apenas em suar mais.

E agora que sentem que o Verão vai chegar, mais mês menos mês, as pessoas começam a ganhar mais confiança. E pensam que vão estar prontas para a escassez de roupa num ou dois meses. Eu gosto de me cruzar com os corredores cujo equipamento cheira a lavado, o casal onde a senhora anda a reboque do marido, o rapaz que se quer sempre exceder, a senhora que anda bem devagar. Andamos todos à procura do mesmo: uma figura mais esguia, uma noite de sono mais profundo, uma prolongada sensação de bem estar. Às vezes, procuramos todos os objectivos simultaneamente. E ver resultados só dá vontade de ultrapassar os nossos limites. Cada vez mais forte, hipoteticamente mais sã.

março 15, 2009

Insurrectos em graça *

Antes assim/Visito a morte/Passa-me a língua/No sexo forte/Veludo rubro/Em carne viva/Garganta funda/Super activa

Ele parece um dançarino de salsa em versão Frankenstein, ensaiando coreografias descoordenadas e exercendo hipnose sobre o público. Há momentos em que só lhe vemos a cara iluminada por um violento foco vermelho. Nascem-lhe dois círculos negros debaixo dos olhos que procuram avidamente absorver a energia de quem está do outro lado. Adolfo é um coração gigante, bombeando a poesia da interioridade com fervor, dando vida a um organismo que se transforma naquela sala num gigantesco coro autónomo. É a voz dele a comandar os corpos que depressa se chegam perto do palco, talvez para a venerar, sentir-lhe a tensão quando repete murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar murmurar. Ele concentra em si o poder de reavivar-nos as memórias, levar-nos atrás no tempo até nos vermos a crescer, sem compreender verdadeiramente o mundo, preocupados em agitar o pântano em que nos movíamos. E eu, que cheguei até ele (s) há pouco, que só o (s) convidei a entrar talvez tarde demais, consigo agora compreender o fascínio. Consigo reconhecer-lhe o estatuto de mito, um advogado feito messias, um agitador de massas pouco convencional, um concentrado de sexualidade. E quando tudo termina, quando se despede, percebo que a minha atracção por ele nasce da ideia de excesso, do abismo profundo para onde ele me conduz, como se com uma palavra sussurrada eu pudesse perder-me totalmente. Toda.

* os Mão Morta tocaram ontem no CAEP.

março 14, 2009

Noite após noite

As viagens são cada vez mais longas. Às vezes são oito da noite e ainda nos conseguem apanhar na faixa do meio em cima da ponte, conversando animadamente ou simplesmente de cabeça encostada ao banco, tentando adormecer ao menor solavanco. Os jantares são cada vez mais comidos à pressa. Já não são horas para jantar, penso eu, enquanto engulo mais uma garfada do bife que só como em casa. Hoje tenho tempo para umas três músicas* e até gosto do que ouço, apesar das opiniões contrárias. É cada vez mais simples comover-me ou deixar-me afundada em recordações que recalquei cuidadosamente nos últimos tempos. Eu penso que é deste calor e das memórias do último tempo quente, todo o tempo que passei a treinar-me para não acreditar, não ceder, não gostar. As bebidas são servidas à rodada, não sei que horas são, alterno entre a rua e o balcão. Quando tento realmente procurar um relógio, são seis da manhã e falamos animadamente sobre depilação caribeña e outras intimidades. Na rua, o Sol já começou a subir e os pássaros acordaram com um óptimo humor matinal. Para ser honesta, não sei do que ando à procura.

* os MONOMONKEY tocaram ontem na Quina das Beatas.

março 12, 2009

Ficção #14

Ele pega no livro e lê, pela décima quarta vez, a mesma frase. Um homem só pode ser feliz com a primeira ou com a última mulher. Acena a cabeça quase imperceptivelmente, como se alguém agora pudesse acompanhar este seu gesto. Chegou a casa há poucos minutos e ainda tem a maçãs do rosto frias, imobilizadas pelo vento que fazia entre a casa dela e a sua. Procura estranhamente desinteressado o maço de tabaco e, enquanto revolve os bolsos do casaco que há pouco pousou na cadeira, percebe que ainda é dela o cheiro das suas mãos. Sorri mas é um sorriso amargo. Ela não é a primeira e certamente não vai ser a última. Pergunta-se se um homem não pode ser também feliz com as mulheres que vão ficando a meio do caminho e pára, cigarro por acender na mão, como que fazendo a contabilidade a essas mulheres do meio. Pensa que todas as mulheres que teve se insinuam da mesma forma na sua memória e já não consegue distinguir cabelos, pulsos nus e adornados, armários cheios de roupa, pudores desnecessários, cuidados antes de adormecer.

Mas agora há este cheiro que é ainda mais forte que o fumo do cigarro que acendeu entretanto e ele sente-se tentado a pegar no livro novamente. Um homem só pode ser feliz com a primeira ou com a última mulher. Lê a frase em voz alta, como se a pudesse compreender melhor ouvindo a sua própria voz. E pensa na maneira como a deixou, àquela que brevemente deixaria de ser a sua última mulher, inerte sobre os lençóis em alvoroço, exausta perante o corpo que antes lhe tinha sido oferecido. Imagina-a acordando a meio da noite, uma cama despida da sua masculinidade, pensando que acabara de sonhar até olhar para o cachecol de que ele esquecera à saída. É como se se olhassem nos olhos agora mesmo, pensa enquanto acaba o cigarro. É como se ela pudesse saber que é dela a sua última recordação, como se pudesse voltar a adormecer na certeza de que ele voltaria. Mas ele pega no livro pela última vez esta noite e suspira. Talvez já não se lembre do caminho até casa dela, talvez o cheiro tenha desaparecido pela manhã e as memórias tenham regressado à sua ordem normal. Suspira novamente porque sabe que pode ser feliz. Mas ela não poderá ser a última.

março 10, 2009

Sobre voar *



*sobre Lisboa, num vídeo de um Pedro via outro Pedro

Sempre achei que adorava voar. Andar de avião, quero dizer. Digo isto porque na última vez que me vi num Canadair, num voo regional em pleno espaço aéreo alemão, descobri que odeio voar. Nada me provoca tanta ansiedade como estar sentada num avião, sabendo que, se acontecer uma desgraça, não posso simplesmente fugir.

Andei de avião pela primeira vez aos vinte anos, talvez, o que é um pouco tarde para os padrões actuais. É claro que podia dizer que a minha mãe só experimentou voar perto dos cinquenta anos mas enfim, os padrões dela eram outros. Foi no pequeno aeroporto militar de Badajoz e nunca me hei-de esquecer que ainda o avião se fazia à pista e já a minha irmã fechava os olhos, a chorar muito. Repito: o avião fazia-se à pista, naquela marcha lenta, aborrecida - quando começou a ganhar velocidade para levantar foi ainda pior. No regresso, não consegui ouvir durante quase um dia inteiro mas tudo bem: tinha finalmente andado de avião.

Alguns voos depois, esse entusiasmo todo passou-me. Já me encantei o suficiente com as nuvens que parecem algodão doce, com a miniaturas de cidades debaixo de nós, com os cristais que se formam na parte de fora da janela. Continuo a não ser fã da comida de avião (aquelas doses extremamente plásticas e minúsculas), nunca uso a casa de banho no ar e também nunca desaperto o cinto de segurança. Quando pego nos folhetos com as instruções para casos de emergência, rezo sempre para que seja éter a sair das máscaras e não oxigénio - só isso explica a cara alegre dos modelos. Também detesto aeroportos: aquela espera toda suga-me a energia, já para não falar dos controlos sucessivos em que tenho que tirar cinto, botas, abrir mala e deixar examinar leitor de mp3. Também não me agrada que olhem sempre desconfiados para o meu bilhete de identidade, nem lugares longe da janela e pessoas que quase vergam o meu banco para se poderem levantar.

Mas, mesmo depois da perda de alguma pressurização, do medo indizível de cair a qualquer momento, da forma paranóica como analiso todos os sons a bordo, gosto de aterrar em Lisboa - ver a cidade organizada de cima, estender o braço e quase tocar na cúpula da basílica da Estrela, sobrevoar a ponte 25 de Abril. E quando o trem de aterragem toca a pista, não bato palmas, como parece ser costume. Mas rejubilo interiormente - estou outra vez em terra firme.

março 09, 2009

Sorrir aos primeiros sinais de Primavera

O jardim está cheio de gente. São três da tarde e consigo ainda descobrir um banco livre. Algumas pessoas arriscam correr entre a multidão que veio aproveitar os tímidos raios de Sol. Três ou quatro pessoas estendem-se na relva, algumas têm um piquenique preparado, outras aproveitam para dormir. Há crianças por todo o lado: de patins, trotinete, correndo atrás de bolas e cães, gritando de balão preso ao pulso, trepando às árvores mais baixas. Os velhos sentam-se à sombra, têm jornais com que tapam a cara do Sol, fazem palavras cruzadas e levantam-se sem pressa. Por lá, continuam o homem que tem um rádio literalmente atado à bicicleta, a senhora das pevides que monta a sua banca à porta virada para a basílica, o sem abrigo que destapa incessantemente as suas várias garrafas de vinho.

Às vezes precisamos de sentir que há vida noutros sítios. Precisamos enfiar o livro na mala mas deixar a música em casa, beber um café à pressa para aproveitar a tarde como deve ser. E não precisamos levantar a cabeça para sentir que há agitação à nossa volta. Há tantas histórias ali que parece que as ouvimos desordeiramente, em uníssono.

março 08, 2009

As minhas noites são mais belas que os meus dias vii

Salvam-me, as noites. Mesmo que esteja um frio estranho enquanto cruzamos uma ponte sobre os caminhos de ferro e tenhamos que apertar bem o casaco contra o peito. Mesmo que nos apanhem a caminhar por subúrbios feios e descaracterizados, onde se multiplicam sucursais de bancos, talhos modernos e carros sobre os passeios. Mesmo que às duas esteja tudo a fechar e não reste alternativa senão descer, descer até encontrarmos o que procuramos. Mesmo que os planos não corram como gostaríamos e decidamos que não são horas de recuperar o ritmo. Mesmo que só sejamos três porque há sempre pessoas com outras coisas para fazer. Mesmo que das duas garrafas de Periquita ainda sobre um pouco, embora o vinho seja mansinho e quase doce. Mesmo que nos encontremos e não falemos mais que dois minutos, olá, tudo bem?, até mais ver. Esqueço-me de tudo, a sério. Quando meto a chave à porta, reparo que são seis da manhã e que sou eu que venho interromper este silêncio. Não sinto nada senão uma vontade enorme de fechar os olhos e não tenho tempo sequer para pensar. Adormeço profundamente até a luz de um dia de Sol me despertar lentamente. Longe da euforia, respiro fundo.

março 07, 2009

Sabedoria popular

Não há nada que uma noite a dançar no Incógnito não faça esquecer.

março 06, 2009

Acabou, finalmente.

Acabou esta semana que mais parece ter durado três meses inteirinhos. Como sobrevivi, dividida entre manter o nível do departamento e a compostura durante os despedimentos, ainda não sei. Mas ainda mexo e hoje, exactamente antes de acordar, tive um sonho muito bom. Estava grávida, a barriga enorme mas sem saber o sexo do bebé, que foi uma coisa que sempre quis - nove meses a desfrutar de uma criança, sem me preocupar com o seu género nem com as cores das paredes do quarto. Mas o sonho chegava a ser erótico, uma sensação de calor que não sei se é inerente às grávidas, as minhas mãos sobre a minha perfeita barriga redonda. E depois acordar, os dias ainda cinzentos e o meu corpo a pedir-me, preguiçoso, para ficar mais um bocadinho. A barriga ficou do outro lado.

E hoje quero sítios com fumo, conversas cruzadas em frente a um prato sem caril, dançar, se puder ser. E quero beber gins tónicos com uma palhinha e quero pensar que se a vida me trata tão bem, esta minha insatisfação toda só pode ser engano. E depois quero deixar de fugir, quero deitar-me de madrugada e repetir-lhe os passos, sentir-me desejada e conseguir calar o meu próprio desejo. E quero manter arrumadas as minhas recordações, nesse sítio bem fundo onde escolhi escondê-las, para que o meu olhar reflicta apenas esperança. Hoje fugia com ele, se me fizesse exactamente as mesmas perguntas, se me conseguisse enganar da mesma maneira e eu me enganasse também, pensando que era livre. Por isso, hoje vou deixar a tralha emocional em casa e vou sair oca. Livre de todos os compromissos e desilusões, livre para todos os compromissos e desilusões, feliz por esta semana ter acabado.

março 04, 2009

Estado em que se encontra este blog

A bebericar chá numa noite que fez lembrar que o Inverno ainda não acabou. A tentar dissolver o imenso sentimento de culpa de me encontrar no extremo mais alto da pirâmide, agora que a base começa a ser desbastada. Ainda sem conseguir dormir uma noite inteira, cinco ou seis horas consecutivas de sono sem sonhos bizarros ou respiração interrompida. Incapaz de resistir às saudades que me estão permanentemente proibidas, sob pena de voltar a olhar constantemente para trás. Sublimando o facto de só me interessar por (o que emocionalmente falando se designa de) casos perdidos. Com o início de uma história na cabeça e buscando nas outras pessoas as características para encher estas personagens. Quase habituada a ler debaixo da luz de uma lanterna, depois de três noites com a electricidade a falhar sempre à mesma hora. Com as sinapses hiper-estimuladas mas capazes de assimilar ainda outras formas de prazer. Expectante.

março 03, 2009

Sabem quando adormecem facilmente mas depois acordam a cada meia hora e estão sempre a ter o mesmo sonho, ainda que em variantes diferentes e depois levantam-se e estão sem fôlego da forma atabalhoada como respiram à noite e fazem um esforço abismal para voltarem a adormecer? Lembram-se de como é caminhar numa manhã ainda gelada com um nó gigante a meio da garganta, capaz de romper a traqueia a qualquer momento e por momentos pensam que são capazes de insultar as testemunhas de Jeová que vos perguntam t-o-d-o-s os dias a mesma coisa? Imaginam o que é transmitir as notícias que mais ninguém quer dizer, analisar outras expressões, tentar adivinhar qual é a grandeza do impacto para minimizar os danos e, subitamente, depois de tudo dito, sentirem-se mal fisicamente, como se toda a angústia daquele momento fosse sair em golfadas?

Hoje despedi quatro pessoas. De uma só vez. E tenho o meu método de auto-flagelação.

março 01, 2009

Finito


Acabou ontem mas foi como se também tivesse acabado hoje. Foi mais uma oportunidade que dei ao jazz, sentando-me a ouvir, esperando a surpresa que acabou por chegar. Somos amantes, nós. Sabemos quais são os lugares que nos competem e ouvimos o tempo dizendo-nos que é tarde demais. Por breves momentos, não queremos entender porquê ou como é que algum dia estivemos ligados. E eu fecho os olhos, gravando para sempre as imagens com que me desafia. Esta música vem de longe e esta música volta para longe, deixando-me sempre no mesmo lugar, quase rompendo os meus tímpanos, abanando as minhas recordações e acelerando perigosamente o meu coração. Somos amantes, sim. À hora marcada, bateria e trombone. À hora marcada, uma curiosidade capaz de me engolir, um beijo de que não me consigo esquecer, os castanhos olhos que se olham. Farrapos de prazer não maculados pelas palavras - o jazz acabou até ver.