julho 14, 2017

(um parênteses para dar sentido ao drama de ontem)



Imaginem o cenário: um chalet de escuteiros, em pleno bosque. Uma casinha de madeira preparada para a festa de fim de época do clube de futebol dos miúdos. Carnes na grelha, vinho, cerveja e champanhe para quem prefere bebidas mais leves. Saladas frias, tartes e bolos. Tudo organizado pelo treinador dos miúdos, incansável.

Imaginem os protagonistas: os Bambinis da época 2016/2017, sempre à procura de uma bola de futebol para improvisar um jogo qualquer. Os pais, os irmãos dos miúdos à volta das mesas, conversando em três línguas diferentes, partilhando as traquinices dos miúdos. Bebés e miúdos crescidos a correr pelo bosque, à procura de um tesouro que o treinador escondeu algures.

Estava tudo bem. Tínhamos comido e bebido, o Vicente tinha jogado muito à bola, a Amália tinha fugido vezes sem conta e arranjado mais umas quantas cicatrizes nas pernas e outras tantas marcas de urtigas. Alguns pais já tinham ido embora, nós decidimos que era a nossa vez. Despedidas feitas, recolhemos os miúdos e vemos um dos pais a passar a correr, sangrando de um dedo. Normal, pensei eu, talvez se tivesse cortado numa garrafa. Mas quando realmente saímos do chalet, percebemos que algo de grave tinha acontecido. Outros pais pediram aos miúdos para brincarem no bosque, nós ficámos frente à entrada porque estávamos de saída. O Mário foi perguntar o que se passava e como podia ajudar, está-lhe no sangue, é muito mais forte do que ele. E foi quando voltou, com outro pai e algum gelo, que se deu o primeiro choque: o outro pai não se tinha apenas cortado - metade do seu dedo tinha ficado nas grades do campo de futebol. 

Tentando acompanhar o pai, que ia salvar o que podia do dedo para que se pudesse coser depois, o Vicente percebe o que se passa e vê, ao mesmo tempo do que eu, o resto do dedo nas grades. Foi o terror e faltaram-me os braços para agarrar os meus três filhos e garantir que estava tudo bem. Já tinham chamado a ambulância e tentavam manter a calma lá dentro quando outro pai vem a sair e, subitamente, cai redondo no chão. O Vicente começou a chorar ainda mais e eu já não sabia o que havia de pensar: naqueles segundos iniciais, não era claro se o senhor tinha apenas desmaiado. Aparentemente, foi a reacção àquela visão que o fez perder os sentidos.. Eu continuei abraçada aos dois (Vicente aterrorizado, Amália choramingando por solidariedade com o irmão) e com uma mão no carrinho do bebé.

Depois de nos assegurarmos que havia gente suficiente para tomar conta dos dois acidentes, fomos embora. No carro, explicámos que é necessário falar sobre estas coisas e não guardar nenhum medo cá dentro, que o pai do menino seria tratado no hospital e que voltaria ao "normal". A noite prometia ser agitada mas teve apenas um breve ataque de sonambulismo sem consequências de maior.

Talvez o maior terror e desconforto tenha sido o meu. Não consigo tirar da cabeça a imagem do dedo sobre as grades e a expressão do Vicente quando percebeu o que se passara. Não consigo ainda entender como é que um dia tão tranquilo e inofensivo pode acabar numa sucessão de gritos e algum terror. As imagens repentem-se sem fim na minha cabeça. E sei que há-de passar mas agora é só no que penso. Nisso e nos dois pais acidentados e em como é que posso proteger os nossos filhos da violência e da dor.

julho 11, 2017

(um parênteses para falar de uma Festa)



Sábado à noite. Já não me lembro da última vez que saí e muito menos da última vez que saí sozinha mas este Sábado aconteceu. Perdi o incrível concerto dos Arcade Fire em Paredes de Coura em 2005. No Meco, com o meu cunhado, saímos pouco depois do concerto começar, exaustos de um dia de trabalho. Não podia perder esta oportunidade, era impossível.

À minha mãe ainda faz confusão que eu vá a um concerto sozinha. Aceito - normalmente, são ocasiões em que estamos acompanhados, só a dois ou num grupo de amigos. Mas e quando gostamos muito de uma coisa e não há quem nos queira/possa acompanhar? Há uns anos valentes que decidi que não deixo de fazer nada por falta de companhia. Para poder assistir ao concerto neste Sábado, precisei que o pai dos meus filhos ficasse com eles e tenho a sorte de ser ele um homem descomplicado e capaz. Pude ir sem nenhum remorso ou sem pensar se eles estavam bem entregues ou não.

Não me lembro da última vez que dancei tanto, juro! O concerto foi sobretudo uma festa dançante e há muito tempo que não via uma banda que se entregasse tão livemente ao prazer de estar em palco e de dar prazer aos outros. Num palco de 360º, o público teve a possibilidade de ver todos os elementos da banda trocando de instrumentos, incitando à dança, gritando e cantando (Wake up, Everything now, No cars go, Reflektor, Power out, Rebellion, entre outras tantas). Um calor terrível dentro da sala. Um casal ao meu lado que abandonou o concerto depois dele ter sofrido uma quebra de tensão. Não arriscar sequer ir buscar uma garrafa de água para não perder o lugar perto do palco. Tanto calor que a única solução foi aceitar o suor, as roupas coladas ao corpo e imaginar que perdia alguns quilos dispensáveis. Concerto a acabar às dez da noite: em Portugal, isto deve parecer uma coisa de choninhas. Eu cá aprecio: não é demasiado tarde, ainda era de dia quando saí e para quem, como eu, tem filhos bebés, ainda se chega a casa a horas de tratar do que é preciso. Um pedaço de pragmatismo depois da poesia que foi gritar, fazendo parte daquela celebração como mulher apenas e não como mãe de três filhos.

Por uma escolha nossa (voluntária muitas vezes, noutras fruto da falta de opção) não costumamos sair à noite. Não temos quem nos fique com os miúdos (claro, há babysitters, mas honestamente nunca nos sentimos capazes de tomar essa decisão) e isso limita-nos muito os movimentos. Não é de estranhar que estejamos mais vezes a dois quando vamos a Portugal: afinal, lá temos a nossa família, a quem confiamos os miúdos sem pestanejar. Por isso, estes momentos são duplamente saborosos. E são quase terapêuticos: são um bálsamo para a alma, especialmente naqueles momentos em que me lembro que há toda uma vida que não inclui fraldas, birras e noites sem dormir; há toda uma vida que era a minha antes de ter filhos e da qual sinto (pontualmente) saudades.

Sábado à noite, dez e tal da noite. Faço a viagem de volta a casa de janela aberta, a saborear a brisa que veio acalmar o imenso calor que se sentiu durante o dia, uma lua cheia impressionante à minha direita, a auto-estrada quase vazia. Rodo a chave na fechadura com jeitinho, a casa em silêncio, todos dormem e sobra ainda uma réstia de luz do dia que agora acaba. Apanho na garrafa de água e deito-me com aquele zumbido bom nos ouvidos. Custou-me a adormecer.