setembro 29, 2016

Ao Vicente, pelos seus seis anos

Não há volta a dar: todos os anos, desde 2010, sinto o mês de Setembro a insinuar-se desde o seu início e com ele aquela emoção, aquela alegria tremenda de festejar a data em que nasceu o meu primeiro filho.

Hoje o Vicente completa seis anos de vida. Seis anos tão cheios e tão desafiantes, a viver tudo de coração na boca, sempre tão pronto para um abraço como para uma birra irracional. Não tenho a pretensão de estar a criar as melhores crianças do Mundo mas mentiria se dissesse que não sinto um orgulho desmedido pela independência, teimosia, liberdade e capacidade de adaptação que o Vicente demonstrou até agora. Durante quatros anos (que me pareceram toda uma vida), o Vicente encheu-nos os dias (e a mim as noites também, que alguém tinha de ter o sono mais leve...) de alegria, curiosidade e daquela capacidade que ele tem de nos absorver todas as forças. Para o bem e para o mal. Ele foi filho único durante quatro longos anos, sempre debaixo da minha saia e do abraço protector do pai, sem dividir a atenção com mais ninguém.

Depois nasceu-lhe uma irmã. E o Vicente, apesar de ainda estar a aprender a gerir os ciúmes e a compreender as diferentes necessidades de atenção, soube crescer pacificamente. Ainda está a aprender a brincar com a irmã, que só agora começa a acompanhar os desafios dele, mas sente falta dela e não lhe falta carinho que distribui sem ter noção da sua força. Ele ajuda nas tarefas domésticas, desenrasca pacotes de fraldas ou aquela toalhita quando temos as mãos ocupadas, ele partilha conosco aquele segredo que é poder ir para a cama um bocadinho mais tarde. Agora desenvolveu um interesse desmedido pelo futebol (olá férias em Portugal, porque aqui em casa não é coisa que se consuma...), continua a fazer muitas perguntas e passou a ter medo que a sua família morra (o cenário mais habitual é chuva torrencial que inundaria a nossa casa e, puff, lá marcharíamos todos...). Já demonstra empatia mas também uma tendência natural para discriminação entre géneros (músicas para homens e músicas para mulheres... quem raio lhe ensinou tal coisa?) que nos vai ainda dar muito trabalho.

Não há manhã que não comece com ele a reclamar sobre lavar a cara e os dentes, nenhuma. Há muitas tardes a pedir para ir treinar com o pai (vulgo, dar um chutos na bola num campo com balizas reais) e todos os dias faz um esforço (que a ele parece sobre-humano) para se recordar do que fez na escola e do que comeu ao almoço. Não existem muitas coisas que me dêem mais prazer do que conversar com ele, como um adulto, obrigá-lo a raciocinar, a ponderar os prós e os contras, perceber como pensa e o que pensa. Seis anos de aventuras, de birras épicas, de abraços sentidos e orelhas moucas, de coragem e crescimento com poucos medos. Não quero ter filhos preferidos, é evidente, mas há sempre aquela ebolição cá dentro sempre que se pensa no primeiro e em como nascemos pais quando também ele nasceu. E, mesmo que tenha dúvidas, o meu coração acalma quando ele me diz, como ontem, Mãe, eu nunca me queria separar de ti. Feliz aniversário, meu filho maior, caracóis desalinhados e os olhos mais bonitos do Mundo.

setembro 23, 2016

Acreditar em histórias de amor

Não posso ficar imune a esta história do divórcio mais mediático dos últimos tempos. Desde que Angelina e Brad decidiram divorciar-se que a minha wall no Facebook é um multiplicar de anúncios, artigos, análises a qualquer coisa que devia ser privada mas que, mercê do seu estatuto de estrelas, se tornou numa coisa pública. Mesmo que eu não queira saber detalhes sobre esta separação, diversos orgãos de comunicação social que eu (de livre vontade, é claro) subscrevi insistem em dissecar as razões, as cronologias e, pior, as culpas de cada um neste processo. E depois, além disto que me parece mau o suficiente, ainda existem as centenas, os milhares de comentários em todos eles, acusando um e outro de coisas impossíveis de provar e muito menos de saber - afinal, de onde é que os conhecemos assim tão bem?

São então vários os motivos que me levam a deitar este divórcio pelos olhos: a multiplicação das "notícias", a especulação sem a qual a imprensa dificilmente viveria, os comentários inflamados da pessoa dita "normal" que acha que pode julgar e condenar duas pessoas que não conhece em praça pública só porque são, claro está, figuras públicas. Mas há ainda outra coisa que me aborrece ainda mais nesta história: o facto de que muitas pessoas a consideravam o maior exemplo das histórias de amor. Um dos comentários mais frequentes que já li por aí é "Ai, se até eles se separam, o que há-de acontecer ao comum dos mortais?", como se eles fossem o exemplo a que todos devemos aspirar no que a amor diz respeito.

As únicas razões para as pessoas acharem que esta é uma linda história de amor, acima de qualquer suspeita e certamente livre de qualquer defeito, é o facto de serem duas pessoas muito atraentes e o facto de serem estrelas de cinema à escala mundial. É incrível que se pense que apenas essas duas condições podem constituir a garantia da felicidade, da fidelidade, possam construir as fundações do amor. Todas as pessoas se esquecem que os nossos ídolos têm (mais vezes do que gostaríamos) pés de barro e que, bem lá no fundo (se retirarmos as estreias, as lantejoulas, os milhões), são apenas pessoas como nós. 

Para mim, histórias de amor são como a dos meus pais, por exemplo, que depois de quarenta anos continuam casados, bem ou mal, com mais ou menos dias difíceis, atravessando todo o tipo de dificuldades (especialmente as criadas pelas filhas...) e ainda encontrando o que conversar todos os dias. Tem glamour, esta história? Não, nenhum. Tem rios de dinheiro a correr entre cada vitória ou entre cada discussão? Infelizmente não tem. Mas tem todos aqueles componentes das verdadeiras histórias de amor: paciência, amizade, humor, convicções, lutas, momentos de verdadeiro desespero e verdadeira superação, fezlimente não documentados para metade do mundo opinar, como se esse fosse um direito fundamental. A história de amor de Angelina e Brad pode mesmo ter sido isto tudo, com a diferença de estar precisamente debaixo do spotlight. No fundo, não creio que eles tenham culpa que tanta gente tenha idealizado a sua história de amor.

Bom, bom era que as mesmas pessoas que consideravam que esta era a relação-modelo olhassem à sua volta e percebessem que o Amor está em todo o lado, nas mais variadas formas, nos mais pequenos gestos e que é tudo menos perfeito. Talvez assim estes dois pudessem divorciar-se em paz e nós pudéssemos não ser bombardeados com tanta informação inútil e tanta opinião infundada.

setembro 16, 2016

Boa tarde, fala Tatiana Lopes, como posso ajudar?

Há uma password que ainda sobrevive entre os sites que mais utilizo desde o longínquo ano de 2005. Era uma password gerada aleatoriamente e que me foi dada para o primeiro dia em que trabalhei num call center da maior operadora de telecomunicações nacionais. Não era o meu primeiro emprego num call center. Já em 2002 havia trabalhado noutro de uma operadora de televisão por cabo durante alguns meses com um único propósito: comprar o meu primeiro kit de ADSL, instalado em casa dos meus pais. A ideia de poder aceder à internet a partir de casa fascinava-me.

Então, mesmo usando esta password diariamente, nem sempre a associo a estes meses estranhos de trabalho mesmo antes de acabar a faculdade mas ontem lembrei-me. No primeiro dia de atendimento a sério, atribuíram-me um cacifo (o número 69) e um nome de guerra (Tatiana Lopes) que nunca me habituei a usar. Sempre que atendia uma chamada e me identificava assim era como se eu estivesse de fora a assistir à minha conversa com o cliente porque de maneira nenhuma me sentia confortável com a falsa identidade. A ideia era proteger-nos (não dá para imaginar a quantidade de doentes mentais ou simplesmente de gente perversa que usava as linhas de atendimento gratuito para despejar frustrações, inventar ameaças ou simplesmente gozar com quem está a trabalhar) - a mim, afastava-me também da minha verdadeira personalidade e tornava as horas de trabalho numa fantasia pouco agradável.

A Tatiana Lopes existiu apenas durante uns tempos, já que a direcção do call center decidiu que o melhor era cada um responder pelo seu verdadeiro nome - o importante era manter a nossa localização no anonimato e apenas soube de dois ou três em que clientes furiosos (não sei com quem mas de certeza que o operador que os tinha atendido era o alvo errado para toda a fúria) que estiveram mesmo à porta do prédio a tentar concretizar as suas ameaças. De resto, era pacífico atender com o nosso nome e, para mim, bastante mais natural do que encarnar alguém que não existe.

Às vezes, quando estou mais zangada com pessoas que têm a vida facilitada e que se queixam por tudo e por nada, digo que toda a gente devia começar por trabalhar num call center. Na verdade, não desejo isso a ninguém. É um trabalho tão digno como outro qualquer, atenção: é óbvio que não tenho qualquer vergonha de ter começado assim, como não teria vergonha de transformar-me numa femme de ménage se disso dependesse o bem estar dos meus filhos e, por arrasto, o meu também. Mas as condições são tão precárias e, muitas vezes, humilhantes, já para não falar dos insultos e aberrações diárias que aquelas pessoas têm de suportar. Apenas x pessoas podiam fazer pausa ao mesmo tempo, portanto, se houvesse uma emergência fisiológica, era aguentar e esperar que alguém voltasse da pausa. Não era permitido ler ou até mesmo falar com o colega do lado entre chamadas - a ideia é ficar a olhar para o ecran do computador e ter o dedo no gatilho para atender a próxima chamada o mais rápido possível. No meio das 156 chamadas que deveria atender num turno de 6 horas, conseguia ter os clientes normais com dúvidas reais, os desocupados com demasiado tempo nas mãos, as mulheres controladoras a quererem saber o saldo dos maridos, as crianças que esgotavam 3000 sms num espaço de um par de horas, os doentes mentais a precisarem de um psicólogo, os que se identificavam como Dr. X quando lhes perguntava o nome, os que queriam apenas conversar. Tinha até muita sorte: afinal não era eu a iniciar as chamadas e não tinha que vender nada a ninguém, por isso sempre me considerei sortuda.

Tenho aprendido muitas coisas em todos os sítios em que trabalhei, não apenas relacionadas com a profissão mas com a vida. E desta minha experiência em ambiente de call center, a ser explorada, controlada e mal paga, retive uma lição muito simples: trata os outros como gostarias que te tratassem a ti. Operadores de call center, professores, empregados de mesa, engenheiros, mulheres da limpeza, médicos, electricistas e canalizadores, motoristas, varredores de rua - somos todos pessoas, com dias bons e dias de cão, a tentar fazer o melhor possível na profissão que escolhemos (ou que nos escolheu). Acredito naquela máxima que diz que a maneira como tratamos um empregado de mesa, por exemplo, diz muito de nós como pessoas. E faço um esforço (às vezes inglório, claro, porque nem toda a gente merece esse benefício da dúvida) para colocar-me na pele do outro e pensar que se calhar está só a ter um mau dia. Gostava de saber até quando vou manter esta fé na humanidade.