junho 15, 2012

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Houve dias em que pensei que ficaria irremediavelmente sozinha. Dias de luta contra lençóis, casas em silêncio e alguma raiva. Em tempos acreditava que era esse o meu propósito, deixar de estar sozinha e via em todo o lado o amor que me faltava a mim e confundia distracções com coisas a sério. Somos feitos a acrditar que será sempre esse o nosso maior feito (e, quem sabe, talvez seja...): sermos aceites incondicionalmente, sermos alguém por quem valha a pena esperar e lutar, termos alguém à nossa espera quando o dia chega ao fim. Passei tantos dias a achar que não estava à altura, a achar que não valia a pena, a forjar desculpas para o maior falhanço que me podiam apontar. Mas depois aprendi a gostar de estar sozinha, a ter que cozinhar para um, a ter as manhãs de Sábado para um pequeno-almoço grande e um jornal, a ter jardins e miradouros à minha espera sem companhia.

Às vezes, como num flashback, essa sensação de vazio regressa.

junho 14, 2012

Força nas canetas


A melhor coisa de correr (ou de outra actividade física praticada longe dum ginásio mas de livre vontade) é a crescente sensação de controlo a cada dia que passa. Para mim, é uma emoção sentir que sou eu a responsável pela melhoria do meu bem estar e forma física, sem horários ou objectivos definidos por outros e apenas contando comigo para monitorizar o progresso. E é também recompensante sentir os resultados do exercício na forma de dores e de algum cansaço normal, como sinais absolutamente inequívocos de que alguma coisa está a mudar.

Eu corro muito pouco, resultado da minha actual condição física e de anos em que a actividade física foi não mais do que intermitente. Tenho medido as distâncias, a duração das corridas e os primeiros resultados são francamente decepcionantes. Mas, ao mesmo tempo, sei que são os resultados naturais nestas circunstâncias e não tenciono nem desistir, nem forçar-me a fazer algo que simplesmente não está ao meu alcance. É claro que ver os resultados é a mesma coisa que ficar desapontada mas é simultaneamente mais uma razão para continuar. Não tenciono correr nenhuma maratona nem entrar em provas oficiais, é claro, mas apesar disso sinto falta de alguma espécie de motivação de um professional, alguém credenciado que diga Força, estás no ritmo certo. Entretanto, vou buscando força nas (minúsculas) melhorias que possam surgir, com (pelo menos) a certeza de que mal nunca irá fazer.

Saio de casa poucos minutos depois das seis da manhã, ainda quase todo o bairro dorme. A temperatura não chega para se dizer que está frio e o céu está invariavelmente cinzento. Vou correndo o que aguento enquanto os primeiros madrugadores saem de casa. No meu regresso a nossa casa dorme ainda. Chego cansada mas ainda não o suficiente para ficar muito ofegante. Saio para trabalhar e encontro quase sempre as mesmas caras à espera do autocarro. O dia começa com muito sono mas um certo alívio quando penso que voltei a correr.

junho 13, 2012

Uma questão de disciplina

Os nossos dias têm sido esticados até à exaustão. Dividimo-nos entre as coisas que são obrigatórias (cozinhar, lavar roupa e outras tarefas que tais), coisas de que gostamos (escrever, tratar dum filho, tomar atenção ao Mundo) e coisas de que precisamos (burocracias, desporto). Habituados a horários bem diferentes em Lisboa, sofremos agora com a crónica falta de tempo para tudo.

Se em Lisboa ia de carro para o trabalho e demorava normalmente não mais do que quinze minutos, agora uso o autocarro, o que significa que o tempo que perco entre casa, trabalho e outros sítios aumentou exponencialmente. A única coisa boa disto é que voltei a ler nos transportes, poupo no carro (que ainda espera por nós em Portugal) e no gasóleo mas de resto estou sempre condicionada pelo trânsito que, para uma cidade tão pequena, às vezes é bem caótico. 

Em Lisboa, o pai do Vicente conseguia quase sempre ir buscá-lo antes das quatro da tarde e agora nunca conseguimos o mesmo antes das cinco. Esta parte do dia pode incluir dois autocarros em direcção à creche e mais dois em direcção a casa - é tempo a mais. Chegamos todos a casa já bastante cansados e ainda com uma mão cheia de coisas para fazer. A única possibilidade foi começar a escolher uma tarefa por dia (excepto as diárias, como lavar a louça) e dividir as outras pelos restantes dias da semana. Isto também me obrigou a uma mudança radical: ignorar, calmamente, que há muitas coisas a fazer. Mesmo cozinhar não tem sido feito com prazer mas antes como algo inevitável, o que eu detesto.

Não temos tempo para um ginásio mas queríamos fazer algum exercício. A solução (óbvia)? Correr. Mas para podermos correr, é necessário que o façamos por turnos (numa base de dia-sim-dia-não) e a horas um pouco impróprias. Está fora de questão fazê-lo depois do trabalho porque estamos cansados e há outras coisas mais importantes. Onde fomos roubar tempo? Ao sono! E assim se começa o dia, a correr às seis da manhã, antes de um duche e do trabalho. Por enquanto, às quatro e meia da manhã já é quase dia, pelo que a questão da luz nem se coloca. Mas não sei onde vai esta boa vontade no Inverno...

Sofre-se um pouco para manter esta disciplina. Eu, que sempre disse que não me imaginava a ser outra coisa que não espontânea, vejo-me a planear passo por passo as minha manhãs (madrugadas!) para nem perder tempo. As quarenta horas semanais de trabalho ninguém nos tira, apesar da muita flexibilidade de horários e boa vontade dos chefes. O que assusta são as outras horas todas de trabalho fora do escritório e o nosso aspecto de zombie cerca das oito da noite. Se compensa? Ainda não sabemos, continuamos a procurar a fórmula certa. Mas como ainda não podemos pensar na reforma e num quintal gigante para o Vicente correr, é importante alguma disciplina!

junho 06, 2012

Dias menos felizes

Na creche, as coisas iam muito bem para o bebé Vicente. Todos os dias, que me lembre sem excepção, ouvíamos o mesmo (il a bien dormi, bien mangé et bien joué) com um enorme sorriso e um aceno efusivo a que ele respodia da mesma forma. Problemas? Nenhuns. Comportamento? impecável.

Isto tudo até Segunda-feira. Durante o banho descobri, com algum horror, duas marcas no corpo do Vicente daquilo que parecem ser mordidelas de alguma criança. A marca nas costas é especialmente exuberante, levando-nos a crer que a mordidela se arrastou durante uns largos segundos sem nenhuma intervenção. De cabeça quente, o pai do Vicente escreveu um e-mail à direcção da creche, alertando para esta falta de zelo (que se manifestava também noutros acontecimentos menores) e pedindo que se tomassem as medidas necessárias.

Ontem de manhã levámo-lo à creche e aproveitámos para mostrar as marcas à auxiliar que o recebeu, que se mostrou chocada mas que não sabia adiantar mais nada porque não tinha estado com ele. À tarde, fui eu mesma buscá-lo e aproveitei para falar com a educadora. Esta manifestou-se triste e chocada pelo facto de termos recorrido primeiro à direcção e não a ela, erro que logo reconheci assim que me coloquei na sua pele. Depois garantiu-me que aquelas não eram mordidelas, que nada se tinha passado com ele a não ser uma queda sem resultados aparentes. Contou-me que ele às vezes bate noutros meninos e também recebe mimos deste género quando disputam brinquedos mas que não era nada de preocupante e, como em todas as crianças desta idade, era uma tendência que iria desaparecer. Eu garanti-lhe que agimos com a melhor das intenções, talvez um pouco de cabeça quente mas que queríamos apenas saber o que se passa com ele diariamente, mesmo que isso implique que ele deva ser disciplinado. Ficámos assim.

Só que a história não acabou aqui. Hoje recebemos um e-mail de uma das directoras, pedindo que confirmássemos algumas conclusões: que estávamos satisfeitos com o serviço, que o pai do Vicente tinha escrito o tal e-mail porque estava de mau humor, que o Vicente se arranha sozinho quando se enerva e que batia noutras crianças com frequência como (supostamente) nos diriam todos os dias. Despediu-se oferecendo a sua ajuda para marcar um encontro com uma assistente social para discutirmos a agressividade do Vicente, característica que só agora nos foi descrita.

Eu fervi. Fiz um esforço hercúleo para conter as lágrimas. Além desta postura arrogante perante as evidências e uns pais que querem defender o bem-estar do filho, atacou-nos de forma gratuita e desleal, transformando um comportamente normal numa criança de menos de dois anos num traço de carácter a precisar urgentemente de correcção. Senti que o nosso trabalho como pais tinha acabado de ser transformado num enorme falhanço. Senti tudo isto como um golpe baixo e como se fossemos dois neuróticos, doentiamente protegendo um deliquente. Coloquei em causa a nossa avaliação da situação, pensando que talvez fosse exagero nosso.

Mas, depois de pensar e voltar a pensar, não é. O nosso filho passa um dia inteiro de trabalho com aquelas pessoas e cabe-lhes a elas vigiarem-no para que o possam ajudar no seu desenvolvimento e evitar lesões física e psicológicas. Cabe-lhes a elas falarem conosco diariamente sobre as dificuldades que sentem com ele e não despacharem tudo com um tout va bien. Esperamos uma confirmação para esclarecer (o que eu esperam que sejam) estes equívocos esta semana. Até lá, amaldiçoo o facto de não poder estar em casa todos os dias, mesmo que isso me roubasse a minha vida. Imaginar esta negligência diária dói-me muito mais.