dezembro 06, 2017

“A single person is missing for you, and the whole world is empty.”

Há dois dias acabei de ler o livro mais triste de que me lembro. Chama-se The Year of Magical Thinking (O Ano do Pensamento Mágico em Português), escrito pela jornalista e escritora Joan Didion. Quando peguei no livro, não sabia muito bem ao que ia. Já o tinha visto recomendado por algumas pessoas com quem partilho os gostos literários mas não estava preparada para o enorme murro no estômago que foram estas duzentas e poucas páginas de não-ficção.

O livro centra-se no ano que se seguiu à morte do marido de Didion, John Dunne, e em que a sua filha estava também internada em coma após uma pneumonia e um choque séptico. É o retrato de uma mulher sozinha, apenas acompanhada pelas muitas memórias de quarenta anos de vida em comum, dividida entre fazer o luto pelo marido e acompanhar a filha no hospital. É um relato brutal da dor mas principalmente das maneiras como ela tenta enganar-se a si mesma com o tal pensamento mágico: se ela fizesse muita força, se ela, por exemplo, guardasse os sapatos do marido, talvez ele não estivesse realmente morto e ainda pudesse voltar. Didion tenta evitar todos os sítios onde criaram memórias os dois (ou os três) mas descobre que até as mais pequenas coisas têm o poder de despertar memórias sobre as conversas, as discussões, as promessas, os planos que tinham feito, quase sempre trabalhando lado a lado. E depois há o facto da filha estar em coma aquando da morte do pai (acabou, tragicamemente, por morrer também em 2005) e de isso ter, de certa maneira, adiado o luto, tão necessário, quanto inevitável.

Não sou muito boa a lidar com a morte. Ninguém é, dirão vocês e com razão. Muitas vezes penso nela - não na minha mas na dos que me são próximos - e choro antes de dormir. Noutras vezes, não consigo compreender como pode a vida ser só isso, umas dezenas de anos sobre a Terra, uma passagem breve e totalmente desprovida de sentido. Há noites em que percebo que o Mundo como o conhecia está a desmoronar-se lentamente e que vamos ver mais e mais pessoas de quem gostamos ou com quem tivemos algum tipo de relação a ir também, sucumbindo à implacável passagem do tempo. Noutras ocasiões, penso na tristeza de (um dia) deixar de ver os meus filhos e imagino a tristeza que isso também lhes trará e isso dói. Sinceramente, nada faz sentido porque não acredito na vida depois da morte. Então vir ao Mundo, crescer, aprender, trabalhar, amar - é tudo um desperdício de matéria.

Mas devo dizer a verdade: na maior parte do tempo não penso na Morte. Na maior parte do tempo, é como se fôssemos todos imortais e não me consigo aceitar a ideia de que o nosso destino é todo o mesmo. Na maior parte do tempo, não penso em agências funerárias, em atestados e certidões, em termos médicos incompreensíveis, em coroas de flores e velórios, no vazio que são aqueles primeiros dias após. Na maior parte do tempo, tento convencer-me que tudo aceitarei, que nada me magoará, que serei capaz de tudo sem chorar. Não vou ser capaz, eu sei. Todos morremos, não precisam lembrar-me. É  a conclusão esperada desde sempre, claro que sim. A vida continua, com um bocado de sorte. Mas nada me preenche esta sensação de vazio, de escuridão e de inutilidade quando penso nos porquês.

(às vezes há períodos assim, cheios de Morte. Para mim, foram as noites a ler o livro. Depois morreram o João Ricardo, o Pedro Rolo Duarte, o Belmiro de Azevedo e o Zé Pedro. Há pessoas a morrerem em ataques terroristas no Egipto e no Iemen. Há colegas de trabalho que morrem ou a quem morre alguém. E no meio disto tudo, num rasgo de puro egoísmo, eu penso: quando é que me vai tocar a mim?)

novembro 13, 2017

#metoo

Este é um post que queria não escrever mas não posso ficar indiferente àquilo que se tem passado nos últimos tempos. Refiro-me, claro, às acusações de assédio sexual, violência ou puro comportamento misógino de muitas figuras públicas que têm vindo a público depois de muitas mulheres ganharem a coragem de (finalmente) falar.

Para mim, a questão fundamental é que este tipo de comportamento não se verifica apenas em posições de poder: está, literalmente, por todo o lado e às vezes vem mesmo de pessoas que estimamos e que julgamos imunes. Não me choca mais saber que o Harvey Weinstein, por exemplo, usou o seu poder para abusar de mulheres à procura de um lugar na indústria cinematográfica do que me choca saber que as mulheres estão sujeitas a este tipo de abuso todos os dias, na rua, nos seus locais de trabalho, nos sítios onde se vão divertir. Não me interessam apenas os nomes sonantes que se vêem agora envolvidos nestes escândalos, mas também os abusadores anónimos que provalmente nunca serão denunciados e, pior ainda, nunca compreenderão o efeito que têm sobre uma mulher.

Eu sofri na pele este comportamento misógino durante tantos anos da minha vida. Talvez até ganhar o poder sobre quem me pode magoar e deixar de prestar atenção a este tipo de abusos. Desde ser gozada por ter uma voz grave e, logo, pouco feminina; não encaixar nos padrões de beleza das miúdas de 12 ou 13 anos e ser gozada por isso; quase ser agredida por um rapaz numa festa (cheguei mesmo a ter a minha cabeça debaixo do braço dele e fui salva de um murro por um grande amigo, que infelizmente ganhou um olho negro) só porque não estava interessada nele e queria apenas dançar; terminar uma relação cheia de abusos e traições e nos dias seguintes ter o voicemail cheio de mensagens de ódio gravadas pelo ex-namorado, melhores amigos dele (incluindo uma mulher), confirmando a necessidade da minha decisão; apanhar um táxi para voltar a casa à noite e ter um taxista a perguntar-me repetidamente E se eu agora a levasse para um sítio escuro, sem ninguém ver?, como se isso fosse uma brincadeira; clientes que me perguntaram se não havia um homem para os atender porque não se sentiam confortáveis com o meu nível de experiência - muitos mais exemplos teria para dar, como creio que outras mulheres, anónimas e muitas vezes impotentes, devem também ter.

Em parte, sinto que cheguei a um ponto da minha vida em que este tipo de agressões (quase todas apenas verbais, felizmente) deixou de ter importância para mim e consigo simplesmente continuar a minha vida. A minha auto-estima deixou de se construir pela validação que buscava nos outros e passou a ser totalmente dependente apenas de mim. Aceito os meus defeitos e vivo especialmente bem com os defeitos físicos porque não são eles que me definem. Mas a verdade é que elas condicionaram a mulher que eu era e ainda continuam a ferir muitas mulheres por aí. Este tipo de comportamento não é exclusivo de um país, uma faixa etária, nível de escolaridade - está disseminado e, mesmo que muitas vezes abafado pelo silêncio das vítimas, bem vivo. E o único defeito desta movimentação toda, destes relatos (muitas vezes já antigos) é que vem tarde.

Mas ponhamos de parte tudo aquilo que se passou conosco e façamos a pergunta que se impõe de seguida: é este o Mundo que queremos deixar para os nossos filhos? Eu espero que a minha filha nunca tenha que passar pelo mesmo, que nunca veja a sua auto-estima destruída por um homem abusador, que saiba sempre de onde vem realmente o seu valor. E gostava que os meus filhos nunca fossem responsáveis por abusos deste tipo (de nenhum tipo, claro), que respeitem todos os seres humanos e lhes reconheçam o valor e apreciem as suas diferenças. É um legado muito difícil de atingir mas é o único pelo qual vale a pena lutar: fazer deste Mundo um sítio mais justo, com as mesmas oportunidades para todos, onde as diferenças se celebram e não servem os propósitos da discriminação, onde a simples biologia não constitui nenhuma fraqueza. É muito provável que eu não viva para ver estas mudanças mas que possamos, pelo menos, ajudar a desbravar caminho.

novembro 06, 2017

Trinta e oito viagens à volta do Sol

Depois de trinta e sete anos, continuo sem perceber muitas pessoas (os americanos, por exemplo), começo a perceber outras (a minha pequena filha, por exemplo, que se tem revelado numa pequena tirana em potência) mas conheço-me melhor. Não me importo de falar em público, empenho-me mil por cento em tudo o que faço, só fico contente quando sou a melhor.

2015
Cheguei aos trinta e seis com dois filhos e num estado de exaustão que me preocupa. Cheguei aqui e há dias em que eles são aquilo que me define: se os amei tudo o que pude, se lhes dei banho a correr, se consegui não gritar. Cheguei aqui e às vezes parece que eles são tudo o que interessa, mesmo quando me lembro que eu sou a minha própria pessoa, com desejos, falhas, neuras e vontades.

2013
Às vezes sinto que vivi muita, muita coisa e que aprendi outras tantas. Outras parece que cheguei agora ao Mundo e ainda estou no início da aprendizagem. No geral, o balanço entre as duas não me deixa arrependida de nada.

2012
E prometo tentar viver com menos ansiedade, aceitar os ensinamentos que os momentos mais vulgares nos trazem tantas vezes, ser menos colérica e impulsiva, duvidar menos do meu desempenho maternal, gastar menos e não me esquecer que o nosso filho é apenas uma criança.

2011
Fazer anos quando já se tem um filho é estranho: é como se me revisse neste pequeno gorducho que grita pela sala fora.

2010
O ano foi definitivamente de renovação: começou com uma imensa tristeza a oito de Janeiro, seguiu com uma notícia espantosa dia oito de Fevereiro, abanou-me no dia trinta e um de Julho e mudou a minha vida para sempre a vinte e nove de Setembro.

2009
Ainda sou uma chorona, na verdade. Choro por tudo e por nada, enervo-me a sério, comovo-me demasiado. Portanto, comprometi muitas horas de sono aos meus pais e esfrangalhei-lhes os nervos de vez em quando.

2008
São vinte e nove anos de alguma desorientação, certezas abaladas, vontade de arriscar e muitas descobertas. Que seja um ano para nunca mais esquecer.

[a escrever aqui há treze anos, hoje olho para trás e espreito o que escrevi sobre o meu aniversário desde que este blogue é gente. Descobri que nem sempre escrevi qualquer coisa, revi algumas fotografias minhas em bebé, viajei no tempo. E dou mais um passo gigante em direcção a esses monstros assustadores chamados quarenta (arrepio).]

outubro 27, 2017

VLOOKUPs e outras funções que tais

A minha saga profissional continua. Parece que quanto mais tempo trabalho, mais me vou afastando do que sonhava fazer.

Na minha inocência de criança, queria ser professora. De Inglês, de preferência, que era a minha grande paixão. Não admira: o Inglês está por todo o lado - filmes, televisão, música, livros, tudo coisas que eu sempre consumi avidamente. Não me lembro de querer ser outra coisa. No liceu, juntou-se-lhe o Alemão porque era assim o grupo de ensino, Inglês e Alemão, e porque eu tinha queda para as línguas. Mas quando começou a faculdade, tudo mudou. Durante um tempo ainda achei que ia fazer as cadeiras pedagógicas e passar pelo estágio mas dei um trambolhão metafórico que me fez perder o Norte e demorei nove anos a fazer o curso. Em algum momento, que não consigo isolar ou definir, deixei de querer ser professora e passei a sonhar com alguma coisa na área da cultura. A escrever, se pudesse ser.

Mas depois começaram as contas, as responsabilidades. Os meus pais levaram-me ao colo durante nove anos (mesmo depois daquele trambolhão), o que nunca lhes poderei agradecer de maneira satisfatória, mas tinha chegado a hora de me fazer à vida. Muitos dos meus colegas seguiram a via do ensino mas creio que muito poucos acabaram professores no sistema de ensino público. Outros seguiram tradução e safaram-se melhor. Muitos de nós terminámos a fazer simplesmente pela vida, um emprego que (se calhar) era para ser temporário e acabou a condicionar os anos que se seguiram.

Trabalhei em cinco ou seis sítios diferentes, na maior parte dos casos em posições ligadas ao apoio ao cliente, quer directo ou indirecto. Sempre que tive tempo, comecei pela posição mais básica e fui trepando pela cadeia hierárquica a pulso, mesmo quando não sabia criar um relatório ou fazer uma apresentação em público. Cheguei à empresa em que trabalho agora e fui apanhadas em sucessivas cambalhotas: primeiro, um conhecimento técnico que não tinha e fui obrigada a obter à força; depois, passar para uma área totalmente distinta, para a qual não tinha formação (as vendas) mas sobre a qual aprendi milhões com os meus colegas de equipa. E agora, um regresso aos bastidores para ajudar a equipa a fazer mais e melhor, para ajudar a empresa a compreender quem são os nossos clientes. Só há um pequeno problema: são ficheiros intermináveis de Excel com centenas de milhares de linhas, são análises que me vi obrigada a aprender sozinha (obrigadinha, Google), é lidar com o peso opressor dos números.

Eu sempre quis escrever. E nunca fiz nada por isso, há quem diga e com muitíssima razão. Despertei para essa paixão tarde demais e agora é difícil uma pessoa ser paga para escrever. Isto se não quiser viver de fazer publicidade, claro, porque se for para vender produtos, há aí muito boa gente. Eu sempre sonhei escrever, não aqui, não apenas num blogue, mas um livro a sério, sem que fosse preciso pagar para o editar. E agora vejo-me a braços com ficheiros de Excel que nunca mais acabam. Pelo contrário, têm apenas tendência a multiplicarem-se. E, que remédio, contento-me em escrever na minha cabeça ou um post aqui e ali. E no fundo aprendi uma coisa muita importante sobre mim: eu gosto é de trabalhar. Invejo aquela malta que consegue viver daquilo que gosta. Mas por enquanto, só ainda plantei uma árvore e fiz três filhos. O livro fica para depois.

outubro 19, 2017

Augusto: nove meses dentro, nove meses fora

Para mim, é uma data quase tão importante com o primeiro ano de vida. O meu pequenino Augusto, o meu ratinho apressado, cumpre hoje nove meses fora da minha barriga!

Ao terceiro filho, tudo devia ser mais fácil. Dormir devia ser canja, sentar-se devia ser canja, comer devia ser canja. Eu já me devia ter acostumado às noites sem dormir, não devia ter dúvidas nem medos irracionais, devia saber sempre interpretar o seu choro - devia saber sempre o que fazer. Mas o meu Augustinho veio lembrar-me que o terceiro filho é, tantas vezes, como o primeiro (e o segundo): uma pessoa totalmente diferente, com o seu próprio temperamento e personalidade. A única coisa que os meus filhos partilham como característica é o facto de terem demorado uma eternidade a dormirem bem. E o Augusto ainda está a trabalhar nisso.

Levei-o sempre para todo o lado, já fez milhares de quilómetros de carro como um valente, já voou como os irmãos (estar longe tem, pelo menos, o benefício de um baptismo de voo bem cedo!). Nasceu antes do tempo e pequenino mas o tempo se encarregou de o fazer crescer devagarinho. Eu bem quis acabar com a amamentação mas ele não deixa e parece que gosta hoje de mamar mais que nunca. Secretamente, fico feliz por ser assim, por poder prolongar este laço, mesmo que isso me roube ainda muitas horas de sono.

Passámos oito meses juntos e foi o bebé mais fácil dos três. Na unidade de neonatologia, era o bebé que menos chorava: só não gostava quando o despíamos para mudar a fralda mas fora isso não me lembro de o ouvir a chorar. Às vezes estávamos em casa e eu esquecia-me que ele também estava ali porque não o ouvia. Ainda me olha como quem está sempre feliz por me ver uma e outra vez, com aqueles olhinhos castanhos sempre a brilhar. Já se entretém com os seus brinquedos, sentado ao pé de nós e gosta pouco de estar sentado na cadeira, a não ser que veja que vem lá comida. Quer literalmente mexer em tudo o que entra no seu campo de visão e delira a chapinhar no banho.

Tem os dois irmãos muitas vezes a fazerem palhaçadas para ele se rir. E não lhe falta muito amor: dos irmãos, dos avós e dos tios mesmo longe, da pessoas que se cruzam com ele na rua e não resistem àqueles olhinhos de azeitona. O pequeno Augusto veio lembrar-me que ser mãe é um papel sempre inacabado, que todos os filhos são diferentes e muito especiais, que eu me posso sempre superar-me. E agora, a todo o vapor em direcção ao primeiro ano! De preferência, a dormir durante as noites mas havemos de lá chegar!

outubro 11, 2017

Nick, uma história de amor tardio



Li esta semana no blogue da Marta: percebi que aprendemos certas matérias com mais antecedência do que o nosso cérebro tem capacidade para as entender. E eu diria ainda mais: ouvimos e lemos muitas coisas em alturas da nossa vida em que não estamos preparados para compreendê-las.

Comigo aconteceu com alguns artistas e com alguns livros: cheguei a eles cedo demais. Não quer dizer que agora os compreenda na sua totalidade mas o passar do tempo ajudou-me a ter menos menos do desconhecido, a aceitar melhor a diferença nos outros, a ter mais tempo para pensar e digerir tudo o que consumo, culturalmente falando. E há uns tempos cheguei, finalmente, a Nick Cave, não só através da sua música, mas também através do documentário 20,000 days on Earth. Num mundo em que cada vez mais é o plástico e o vazio de ideias/carácter/personalidade que imperam, foi quase um alívio ver um documentário sobre um homem que, apesar de normal, se move num misto de escuridão e luz insuportável. Vê-lo criar, cantar e ensaiar, vê-lo no seu ambiente natural provou-me que nem sempre os ídolos têm pés de barro e ainda há quem justifique o hype.

Ontem pude vê-lo ao vivo. E vi-o de tão perto que, por momentos, me parecia estar a sonhar. A certa altura, o Mário chama-me e diz Olha, ele vem mesmo na nossa direcção! e no meio da multidão incrédula, de impecável fato e tão branca como um fantasma, uma espécie de aparição. Os olhos pequeninos, a camisa meio aberta, as mãos sempre à procura das mãos do público, a ironia sempre pronta a envergonhar quem, como eu, queria guardar o momento em vez de apenas o apreciar. Há muita dor na maneira como canta, pode sentir-se. Há um filho que já não vive e de cuja morte foi difícil recuperar. Ouvem-se os excessos da juventude, mistura-se luxúria com religiosidade, solta-se urros do fundo do ser, sussurram-se histórias ao microfone. Um concerto de Nick Cave é todo surpresa: a maneira desconcertante como se envolve fisicamente com o público, as forças que convoca para transmitir tudo o que é seu, as palmeiras projectadas debaixo de um tornado, um miúdo em câmara lenta num areal de Brighton.

Tocou coisas antigas e intensas como Tupelo, The Mercy Seat ou Red Right Hand. Tocou coisas novas e impregnadas de dor como Anthrocene, Jesus Alone ou Jubilee Street. Levou um monte de gente para cima do palco, dançou com miúdas, emprestou microfones, caminhou sem medo entre aqueles que o idolatram. Os Bad Seeds emprestaram-lhe solenidade, conduziram os momentos de fúria e também se mantiveram em silêncio quando foi preciso.

Lembro-me de implicar com os meus amigos (e primos) Monteiro porque não entendia a sua devoção a este Australiano misterioso. Mas lá cheguei e é melhor abrir-lhe os braços tarde do que nunca ter sentido o abanão que são a sua música, as suas palavras.

outubro 08, 2017

Senhor Mário, quarenta e um anos

O senhor que alguns conhecerão como meu marido celebra hoje quarenta e um anos de vida. Escolho a palavra celebra intencionalmente porque uma vida tão rica, tão cheia de aventuras, peripécias e de amor (nas suas mais variadas formas) precisa mesmo de ser celebrada todos os anos.

Este senhor só pensa em ter mais filhos (cinco é o mínimo que aceitava, até eu lhe explicar que três é o limite. Mesmo assim, gosta de insistir) e eu percebo porquê: trata-os com tanto amor, muda fraldas com a naturalidade de quem fez isso a vida toda, resiste aos nervos que causam algumas birras, relativiza e coloca sempre tudo em perspectiva, corta-lhes fatias de queijo mesmo como eles gostam, beija-os até eles não aguentarem mais, corre atrás e carrega-os sempre que as costas lho permitem, diz não com a firmeza de quem ter a certeza do que está a fazer, gosta realmente de brincar com eles.

Por outro lado, eu vejo - embevecida -  a maneira como outras pessoas gostam dele. Talvez não seja uma pessoa fácil de entender ou até mesmo de gostar. Talvez muita gente desista de o fazer porque a sua parvoíce e sentido de humor podem ser difíceis de compreender. Mas eu juro que nunca vi ninguém a fazer amigos com tanta naturalidade, a falar com estranhos como se os conhecesse há uma vida atrás, a falar com outros miúdos naquela linguagem que só eles entendem. Ele precisa de estar rodeado de pessoas, não de muitas pessoas e também não necessariamente a toda a hora - mas creio que murcharia definitivamente se não pudesse soltar o animal social que tem em si.

Há ainda um senhor Mário profissional. Alguém que já fez de tudo nesta vida, que se fez à vida quando teve de ser, que emigrou e desemigrou antes desta nossa aventura, que viu muita miséria e acudiu a muita gente que precisava, que trabalhou por turnos e que vi o seu sonho de negócio próprio a ir por água abaixo mesmo antes de existir. Alguém que faz o que tem a fazer mas que não hesita em reclamar com o que está errado. Alguém que não pode andar pela cidade do Luxemburgo sem que seja abordado por uma mãe e seus filhos a quem ajudou nas consultas médicas ou por um grupo de adolescentes a quem acompanhou nas inscrições escolares, todos de sorriso aberto, visivelmente felizes e gratos pelo seu trabalho.

E finalmente, ele existe como meu marido. Antes disso, é sabido, já era meu amigo há vinte, trinta anos. Ele era o amigo que queria ter filhos comigo e a quem eu enxotava sempre que ele brincava com isso. Mas ele era um grande amigo, alguém que me escutava e com quem podia partilhar qualquer história, um ombro onde ainda chorei. Não existiam muitos segredos entre nós: talvez apenas histórias que não partilhámos com mais ninguém. E hoje, olho comovida para o que já construímos juntos - vinte e tal anos de amizade, quase nove de namoro, quase seis de casamento, três filhos. As aventuras que já vivemos juntos, as vezes em que eu chorava e ele fez qualquer palhaçada para me fazer rir, a tristeza que senti quando percebi que nunca mais íamos ser só nós os dois, o arroz de polvo que fui obrigada a comer uma e outra vez, os gostos musicais que sempre partilhámos, a forma desinteressada com que sempre acreditou em mim - pode acontecer de tudo mas estas coisas já ninguém me rouba.

Querido Mário, parabéns pelos teus quarenta e um anos. Cada dia que passa fica mais claro que estarei ao teu lado por muitos e longos anos, mesmo com o meu mau feitio e o teu péssimo feitio. Mas com muito, muito amor. E só com três filhos, que não precisamos de preencher todos os lugares da carrinha.

(Os anos vão passando e a possibilidade de me repetir aumenta exponencialmente mas eu gosto de fazer este exercício uma e outra vez.)

outubro 07, 2017

Estou feliz porque amanhã sou obrigada a votar!

Este ano, depois de cinco anos e meio de Luxemburgo, vamos finalmente votar nas eleições comunais, as equivalentes às nossas autárquicas. A legislação prevê que todos os estrangeiros que vivam no país há mais de cinco anos e que queiram participar (apenas nestas e nas europeias, o direito ainda nos está vedado quando falamos de legislativas) o possam fazer, bastando para isso estar inscritos nas listas eleitorais da sua comuna de residência.

Mas aqui as coisas funcionam de maneira diferente do sistema eleitoral português. Todos os cidadãos luxemburgueses são inscritos automaticamente nos cadernos eleitorais e são obrigados a votar. A lei prevê apenas duas excepções: os eleitores que vivem numa comuna diferente da onde estavam previamente registados e os eleitores de mais de setenta e cinco anos (que podem votar por correspondência). Para os cidadãos não-luxemburgueses, o caso é diferente: assim que completem cinco anos de residência no Grão-Ducado, podem inscrever-se nos cadernos eleitorais. Esta inscrição é opcional mas, se a fizerem, os cidadãos incritos passam a ser obrigados a votar. Podem, a qualquer momento, pedir para cancelar esta inscrição, o que não acontece com os cidadãos luxemburgueses.

A realidade é preocupante, especialmente do ponto de vista de um cidadão estrangeiro. Neste momento, os cidadãos não-luxemburgueses representam quase mais de cinquenta por cento da população total do país. Isto significa que, se não se inscreverem voluntariamente nos cadernos eleitorais, não podem votar e deixam as grandes decisões nas mãos de uma minoria, os cidadãos nascidos aqui. Os representantes dos partidos da comuna onde vivemos mostraram-se desiludidos com número de inscrições de eleitores estrangeiros nas listas e eu também sinto que há algum desinteresse e afastamento da política, talvez por razões meramente linguísticas. Há um grande debate sobre as línguas em que devem ser publicados os materiais de propaganda: há comunas mais francófonas, há comunas mais inclinadas para o Alemão, há comunas que não abdicam do (difícil) Lixemburguês. E existe a dificuldade real que é traduzir os programas eleitorais e conseguir que eles façam sentido e mantenham o espírito inicial (hoje mesmo recebemos um dos programas eleitorais traduzido em Português mas numa tradução e aspectos tão pobres - parecia saída do Google Translator, numa folha impressa em casa, sem a marca visível do partido).

Quando recebi a convocatória na Segunda, com a indicação da nossa mesa de voto, senti que estava a viver um momento solene e que, de certa maneira, simboliza o coroar do nosso processo de integração na sociedade luxemburguesa. Não basta ter os miúdos na escola pública, participar nas variadas manifestações culturais, conhecer a história e assimilar a cultura, contribuir para a riqueza material e humana do país: é preciso aproveitar a oportunidade, tentar compreender melhor o sistema político e exercer o dever cívico de escolher quem nos representa.

No Domingo, somos convidados a votar entre as oito da manhã e as duas da tarde na escola onde anda o Vicente. Levamos conosco a convocatória e o documento de identificação e eu levo mais qualquer coisa comigo: o orgulho em fazer a minha parte, o mesmo que sentiria se estivesse a votar no meu país. E também a esperança de que outros entendam a importância destes pequenos (grandes) gestos e queiram também participar.

outubro 06, 2017

O regresso à vida real: pegar de caras o trabalho que nunca acaba

Primeira semana de trabalho e estou feliz apenas por ter sobrevivido. Depois de dez meses em casa, completamente afastada do jargão técnico, dos colegas e do escritório, custou-me regressar. Não ajuda ter um bebé em casa que em muitas noites ainda acorda de duas em duas horas, sabe-se lá porquê. Bastava que pudesse dormir umas seis horas seguidas por noite e já não me arrastaria pelo escritório à procura do café.

Na minha cabeça, tudo o que agora fica por fazer em casa na minha ausência. Antes, podia organizar bem o tempo e podia mesmo deixar coisas para fazer amanhã, porque sabia que estaria lá, porque sabia que conseguiria apanhar o combóio no dia seguinte. Agora? Agora não há dia seguinte. Tudo o que não faço hoje só vai acumular até ao próximo dia livre. Esta semana fiquei feliz apenas de conseguir manter os miúdos alimentados, dar-lhes banho todos os dias, passar algum tempo com eles. Pouco mais fiz, a não ser tratar das refeições. A minha cabeça voa frequentemente para a roupa que se há-de acumular, na arrumação que cumpro em serviços mínimos. E voa para o silêncio dos últimos dias, com os miúdos já na creche/escola e eu a tomar o pequeno-almoço a olhar para o jardim.

Para piorar, voltei ao trabalho e mudei de funções. Não para algo radicalmente diferente mas para uma posição recém criada, onde não há ainda muitas orientações definidas, onde vou precisar de desbravar caminho. Passo de uma função integrada numa equipa para algo mais individual e não vou mentir, gosto dessa possibilidade de trabalhar sozinha. É claro que continuo a gostar das pessoas que trabalhavam antes comigo mas sabe-me bem poder (às vezes) isolar-me e fazer o que há para fazer. De resto, no capítulo das pessoas, há demasiadas caras novas para conseguir sequer decorar nomes. Uma empresa que cresceu vinte por cento em pessoal no último ano é motivo de orgulho e confiança no futuro mas também de demasiada gente que precisamos conhecer, com quem é necessário estabelecer confiança (só eu sei o tempo que isso me leva...), com quem é preciso aprender a lidar. Eu lido mal com pessoas no geral, pior ainda com as que não conheço - extra esforço nesta minha rentrée.

O primeiro dia foi tão mau que duvidei da minha capacidade de acabar a semana com a saúde mental intacta. Dormi extremamente mal, apesar de não ter pensado uma única vez no trabalho. Só que estar dez meses em casa, sem precisar de estar em frente a um computador mais de oito horas por dia, faz mossa. À hora do almoço, tomei um paracetamol em casa e decidi que ali iria almoçar sempre que puder. Assim sempre faço de conta que a licença ainda não acabou. Depois, com o passar dos dias, a coisa foi melhorando: fui tolerando melhor o computador, fui repescando informação que já tinha arrumado na memória, fui sendo apresentada à gente, fui sendo recebida de braços abertas pelos antigos colegas. O CEO passou no segundo dia e perguntou-me se estava tudo bem e se me aguentava. Se me aguentava a quê, perguntei eu, inocente. E ele explicou que quando acabo o trabalho aqui, abro a janela do outro trabalho em casa e lembrou-me que a mulher dele, ao quarto filho, percebeu que já não conseguia conciliar as duas coisas. Hei-de provar que as mulheres são de tal maneira eficazes que conseguem produzir relatórios complexos e limpar nódoas de sopa. Mas por agora, se alguém quiser passar lá em casa e passar a ferro uma peça ou duas, eu não digo que não.

setembro 29, 2017

Sete anos de Vicente

Passam hoje sete anos desde o nascimento desta força da natureza que se chama de Vicente e com quem me transformei numa Mãe. Digo força da natureza porque vive tudo com o coração na boca, sempre num equilíbrio ténue entre o tudo e o nada, sempre capaz de irradiar a maior felicidade e desfazer-se na maior tristeza. Ainda esta semana, me diziam lá nos tempos livres "Só duas coisas, mãe: lê impecavelmente mas é preciso que deixe de chorar por tudo e por nada!". Eu, porque sei a quem é que ele sai, faço o mea culpa e explico-lhe que já não é tempo de tudo ser motivo para lágrimas.

O meu Vicente, que hoje me parece mais perto de um homenzinho do que dum miúdo, nasceu há sete anos. Era um dia ainda quente, eu não conseguia ajudá-lo a nascer por causa da epidural, tinha uma vista bonita sobre a Expo e foi o único parto a que o pai pôde assistir. Ali chegava o Vicente, gordinho e rosado, cheio de vernix, assustador com as suas pequenas mãos sobre as têmporas, como se tivesse chegado e já começado a pensar. O Vicente que sempre chorou muito, que deu noitadas que me parecem hoje infinitas mas incrivelmente longe, que cresceu sempre como devia, chegava há sete anos e o meu mundo dava uma cambalhota da qual ainda hoje não recuperei.

Hoje deixei-o na escola para ajudá-lo com o bolo de aniversário e ele estava contrariado: quer ir para a escola sozinho. O menino que viveu com os os pais durante mais de quatro anos como uma ilha, sempre os três para todo o lado, tudo para ele, agora quer ser livre. Não extremamente livre, que ainda se pendura nos nossos pescoços a pedir mimo, ainda nos quer mostrar os pontapés de bicicleta que sonha fazer bem, ainda nos pinta desenhos sem ser em ocasiões especiais, ainda nos quer. Mas já começou o caminho que há-de fazer sozinho e isso comove-me, deixa-me entusiasmada mas também triste, o meu primeiro bebé há muito que deixou de o ser.

Anda há três dias com duas folhas na mala que devia ler todos os dias (até hoje, quando vão ler na sala de aula) e praticava nos tempos livres e depois comigo, em casa. E de cada vez que o ouvi a ler aquelas palavras em Alemão, com o à-vontade de alguém que nasceu aqui mas que, na verdade, só começou a aprender há duas semanas, vieram-me as lágrimas aos olhos. Por perceber do que ele é capaz, por ver como se interessa pela escola (mesmo que às vezes esteja cansado), por desejar que assim seja sempre. E quanto mais penso nisso, menos me parece que tenha alguma coisa a ver conosco: ele quer saber, aprender, fazer bem. E só isso é coisa para me fazer chorar porque é meio caminho andado.

Andava há que tempos a contar os dias para o seu aniversário, com aquele febre de quem sabe que o dia é especial. Levantámo-nos cedo e cantámos-lhe os parabéns a cinco (na verdade a dois, porque um ainda não sabe o que se passa e a outra estava a tentar perceber porque é que ele recebe presentes e ela não). O nosso menino faz sete anos hoje e tem dado muito trabalho mas aquele brilho nos olhos vale todo o trabalho do mundo!


setembro 25, 2017

O fim (e, necessariamente, também o princípio)


Estou a apreciar os meus últimos dias livres o mais possível, já que regresso ao trabalho exactamente de hoje a uma semana. Prevêm chuva para a esse dia e eu decidi absorver os últimos raios de Sol num Outono que já vai longo (aqui). Portugal ainda se despede lentamente do Verão e nós já dormimos com o edredon há que tempos, os miúdos saem com os casacos de Inverno de manhã, há abóboras por todo o lado.

Hoje dei um passeio pelo nosso bairro e entrei mesmo no cemitério. Não sei porquê mas sei que respondi a um impulso, abri e portão e deambulei entre as campas. Só se ouviam os pássaros a cantar e um ou outro ramo a quebrar no bosque e apeteceu-me chorar pelos mortos que ali jazem: famílias inteiras, crianças, homens que nunca chegaram a ter a minha idade. Em Portugal, entrei num cemitério apenas duas vezes para enterrar os meus dois avôs e por isso ainda compreendo menos porque me senti impelida a entrar.

Não me cruzei com ninguém no caminho e o casaco mais forte ficou em casa. Estava tanto Sol e só se ouviam os trabalhos de jardinagem aqui e ali. Pelas janelas da frente, um vislumbre sobre os jardins nas traseiras e sobre as cozinhas em suspenso, sem que se visse alguém em casa. Numa porta de vidro, um cão tinha encostado o focinho e parecia esperar calma mas tristemente o dono. Num parque infantil, apenas uma mãe com um carrinho de bebé, a lembrar-me que estes tempos de calmaria, de introspecção, de criação de hábitos não se voltarão a repetir.

Em breve regresso à vida real. E se por um lado me sinto mais pronta do que nunca e mesmo desejosa de recomeçar, por outro lido com a tristeza de ser a minha última licença de maternidade. Abraço estes últimos dias com força, trato das últimas arrumações, deixo-me estar em silêncio. Numa semana tudo chegará ao fim e eu quero ter a certeza que não ficou nada por fazer.

setembro 22, 2017

Socorro, tenho um filho na primeira classe!

Todos os pais passam por isto, felizmente. Os miúdos crescem, passam da creche à pré-primária e de repente, puff!, estão na primeira classe. Imagino que à primeira custa um bocadinho, à segunda já se está mais à vontade e à terceira já se faz com uma perna às costas, mas é sempre um momento tão especial para pais e filhos.

O Vicente entrou para a primeira classe este ano, poucos dias antes de fazer sete anos. Pessoalmente, tenho a mania de o comparar comigo e, como entrei para a escola ainda com cinco anos, parece-me que ele vai atrasado. Mas o sistema educativo no Luxemburgo é diferente e aqui prefere-se que os miúdos brinquem uns bons três anos (um ano de Prècoce e dois anos de Spilschoul, literalmente escola precoce e escola de brincar) antes de começarem a aprender a sério. Digo a sério porque em ambas as escolas eles aprendem sobre a vida em sociedade, sobre a sua relação com os outros e com o seu próprio corpo, são despertados para os números, as letras, as artes e os trabalhos manuais mas ainda não funcionam em disciplinas propriamente ditas nem são, naturalmente, avaliados. Antes, são seguidos pelas educadoras e há balanços a cada três meses para que os pais saibam onde os podem ajudar, quais são os pontos fortes e os pontos fracos. Para o menino Vicente, o ponto fraco foi sempre (ainda é) o controlo da suas emoções, que leva às vezes a alguns problemas de indisciplina. Nada de grave, felizmente, mas ainda assim um assunto que trabalhamos com ele já da creche porque ele vive de coração da boca e consegue ser a maior drama queen deste mundo.

A geração dele não tem nada a ver com a minha geração em termos escolares. Quando nós andávamos na escola, a idea era os nossos pais darem-nos as oportunidades e ferramentas que eles mesmos não tinham tido. Em muitas famílias, os miúdos da minha geração eram os primeiros a poder ir para a universidade ou, pelo menos, a fazê-lo com algum conforto, ainda que com muito sacrifício. Não é isso que me preocupa na escolaridade do Vicente: já vivi o suficiente para perceber que uma licenciatura ou um mestrado não significam nada por si mesmo e podem mesmo nem ajudar no mundo profissional. Vou continuar a achar que a universidade é fundamental para melhor compreender o mundo, para aprender a pensar e apreciar as artes, a política e a cultura mas não é obrigatória.

O que me custa no sistema educativo luxemburguês é uma espécie de elitismo: os alunos são muitas vezes julgados previamente com base no seu apelido, sem incluir o seu percurso escolar. Isto significa que alunos com um apelido português são automaticamente colocados no pote dos menos capazes e orientados para o ensino técnico em vez do percurso no ensino clássico. Quero dizer que não tenho absolutamente nada contra o ensino técnico e que ficarei igualmente feliz se o Vicente quiser ser canalizador, electricista, médico ou sociólogo. A única coisa que desejo é que ele tenha muito sucesso no seu percurso académico mas, acima de tudo, que ele possa ESCOLHER o que quer fazer e que não seja prejudicado simplesmente pela sua nacionalidade. É um trabalho que também nos cabe a nós, pais: acompanhá-lo, ajudá-lo e fazê-lo sentir que tudo lhe é permitido, assim se aplique, esforçe e queira.

De resto, e avaliando apenas os primeiros dias de aulas, estou bastante feliz como se organiza a sua semana escolar e com os primeiros resultados que vou vendo nos cadernos diariamente. A escolaridade aqui é feita em Alemão (o Luxemburguês surge como língua à parte e o Francês e o Inglês só aparecem mais tarde), aprendem música, fazem ginástica e natação, têm uma disciplina de vida em sociedade (que substituiu Religião e Moral) e ainda brincam muito. Se ele se conseguir manter aplicado e entusiasmado como até agora (é pouquíssimo tempo, eu sei), estamos bem. E estamos cá para empurrar nos momentos em que isso não for assim. Empurrar com força, se for preciso.

setembro 21, 2017

Quantos filhos são filhos suficientes?

Disclaimer prévio (especialmente para os meus pais): não, não vamos ter mais filhos!

Só que esta semana li este artigo no blog da Joanna e, mais uma vez - com a devida distância e com as diferenças gigantes entre a vida dela e a minha - , ela toca na ferida. Na minha ferida e na de muitas outras mulheres por esse mundo fora, a julgar pelos comentários.

Começo por dizer que nunca imaginei ter mais do que dois filhos. Passei pela fase de querer ser mãe solteira (eu e um bebé todo para mim, sem figura paterna a ajudar, só porque sim - a adolescência tem destas imbecilidades), depois acho que sempre imaginei ter dois filhos. Afinal lá em casa era eu e a minha irmã e quatro parecia-me um número simpático. À nossa volta, apesar de existirem outros exemplos, sempre houve muitas famílias com dois filhos e, inconscientemente, sempre me pareceu a solução mais equilibrada. Então se fosse um rapaz e uma rapariga, ainda melhor!

Nós tínhamos conseguido essa proeza, o casalinho com que muita gente sonha mas resolvemos estragar esse equilíbrio e mandámos vir mais um. Até ao nascimento da Amália, acho que nunca tinha pensado que podíamos ser uma família ainda maior. Mas quis o destino que o meu marido (que raio, quando me irei a costumar a dizer isto?) sonhasse com uma família maior e contagiou-me com essa ideia. É verdade que ele sonhava com cinco filhos e eu digo que três é o máximo mas o certo é que ele conseguiu mudar a minha perspectiva sobre a parentalidade, quebrando a barreira dos dois filhos.

Escrevo este post ainda exausta. Digo ainda porque é mais ou menos assim que me venho sentido há uns dois anos, com dias melhores mas com muitos dias em que parece que simplesmente me arrasto e não vivo no verdadeiro sentido do termo. Uma filha que dormiu a primeira noite inteira depois dos dois anos e um bebé que começou a dormir bem mas piorou com o tempo e eis-me em todo o esplendor da falta de sono, incapaz de dormir mais do que duas horas seguidas, mesmo que esteja longe deles. Ainda não regressei ao trabalho e já me pergunto como vai ser quando tiver que passar nove horas fora de casa com o necessário esforço intelectual e depois regressar a casa e tratar de três crianças e de tudo o resto, antes de começar a noite e eu entrar no pesadelo que é quase não dormir. Estou decidida a não sofrer por antecipação (não ajuda em nada e só me desgasta ainda mais) e por isso vou-me tentando convencer que também hei-de sobreviver esta vez.

Então porque é que, depois de todo este cansaço, depois de todas as birras e amuos, depois de estarmos sozinhos e não termos mãos a medir com escolas e creches e futebol e brincadeiras, eu fico triste quando penso que não vou ter mais filhos? Para a família da Joanna, dois filhos foram o limite; para nós, dois eram suficientes mas ainda arriscámos o terceiro, sabendo das dificuldades que é não ter uma aldeia para ajudar com os miúdos. Porque é que eu sinto que ainda podíamos ter mais um pelo menos? E porque é que, depois do quarto, se calhar podíamos mesmo chegar aos cinco, como o pai tanto queria? Não podemos, não vamos mas as perguntas vão ficar sempre lá.

Na semana passada, voltei ao hospital onde nasceu o Augusto para uma consulta de rotina e senti falta do acompanhamento da gravidez, da força que me deu sentir que carregava um ser humano (nas três vezes) comigo, da pujança que me encheu o peito por saber que estava a gerar vida e que, felizmente, todas as vezes sem qualquer limitação. Senti falta daqueles momentos antes dos partos, mesmo estando completamente sozinha em dois deles, da onda de força que me invadiu sempre que foi preciso fazer força, dos primeiros instantes em que dei à luz um bebé, do incrivelmente poderosa que me senti todas as vezes. Incrivelmente poderosa e sortuda, trazendo ao mundo bebés saudáveis, sozinha numa sala de parto mas aceitando as circunstâncias e a natureza como elas são, sem perguntas nem lamentos. E sinto aquela dorzinha no peito que se insinua de vez em quando, sempre que penso que nunca mais vou sentir o milagre de trazer vida a este mundo.

E a verdade é que nenhum número de filhos me iria curar dessa dor: ter quatro, cinco ou dez filhos não me iria impedir de sentir falta desses nove meses de cuidado e daquele estado de alerta das primeiras semanas e daquela sensação de que, depois disto, sou capaz de tudo. Por isso, revivo as memórias dos meus três partos com muito amor e muita frequência para que nunca me esqueça do incrível que foi ver nascer os meus filhos. E revivo também as horas intermináveis, especialmente durante a noite, com eles no meu colo, exausta pela falta de descanso, para ter a certeza que não vou repetir estas proezas! A sabedoria popular tem sempre razão e lá diz que três é a conta que Deus fez...

setembro 11, 2017

Xô, ansiedade!

Eu tenho péssima memória e ter filhos só o vem provar. Se me perguntarem quando teve o Vicente o primeiro dente ou quando é que a Amália começou a gatinhar... não sei. Só se houver alguma imagem, algum registo do que ficou para trás, caso contrário estas minúsculas conquistas perdem-se na minha cabeça.

Pensava que ao terceiro filho já sabia tudo o que havia para saber da maternidade. Pensava que tinha a amamentação, os sonos, os sólidos, as constipações dominadas. Pensava que seria muito estranho ter dúvidas à terceira vez. Mas acontece que as tenho, não fosse cada um dos meus filhos uma pessoa diferente e única, com a sua personalidade e afectos e birras. A quantidade de literatura que consumi (especialmente antes de nascer o primeiro) sobre tudo o que era ter um bebé em casa de pouco serviu. Eles continuaram a chorar, a dormir muito pouco, eu continuei a não conseguir dormir durante o dia, a deixar-me muitas vezes consumir-me pela dúvida e, acima de tudo, pela culpa. E a esquecer-me que, na maior parte dos casos, não vale a pena procurar um motivo, uma razão, uma desculpa - eles são como são, um obedece mais, outra é dona disto tudo, o terceiro ainda se está a formar. Nós podemos ampará-los e direccioná-los mas tenho que repetir muitas vezes para mim mesma que dificilmente eles farão tudo o que achamos ser o melhor para eles. Mas ser mãe é nunca deixar de tentar.

Talvez por ter nascido prematuro (um mês antes do tempo, nada dramático, eu sei; muitos outros bebés vieram muito antes do tempo e, juntamente com as família,s lutaram para sobreviver e isso faz-me sentir privilegiada e parece que me tira o direito ao sofrimento que foram aqueles dias na Neonatologia), eu preocupo-me mais com o desenvolvimento do pequeno Augusto. Não passo os dias a pensar nisso e sei como essas coisas são flexíveis mas não posso dizer que não me custava perceber que ainda não se virava bem aos cinco meses ou ainda não se mantinha sentado depois dos sete. Mas na semana passada, quando o vi sentado e quase a brincar com o que tinha à frente, senti que continuo a sofrer por antecipação. 

E, nem a propósito, li no mural da bonita Inês Maria Meneses a seguinte frase Convocar a angústia antes do tempo, condiciona a possibilidade de vivermos melhor. E sei que este trabalho nunca está feito, a ansiedade está quase sempre lá, o pensamento é mais rápido do que a luz mas faço, há algum tempo, muita força para viver apenas agora. Deixando para trás aquilo que já não volta, impondo reservas a mim mesma sobre sonhos futuros (apenas os necessários, ninguém pode viver sem sonhar), tentanto fazer deste momento presente o melhor que posso. Com filhos, isso é especialmente importante e excepcionalmente difícil: como seguir em frente, sabendo que o que fazemos hoje condicionará o que eles serão amanhã? Só lhes posso prometer tentar e garantir que, com birras ou sem elas, capazes de se sentar ou já de correr, eu gosto deles exactamente como eles são. E esperar que um dia não lhe seja tão difícil aceitar as suas imperfeições como às vezes me acontece. Sem pressas e sem culpas.

setembro 03, 2017

Férias


Foram quase dois meses. Quatro mil quilómetros pela Europa e ainda mais em Portugal, entre Portalegre e Lisboa. Ser emigrante é isto mesmo: é ter sede de ver Mundo mas acabar sempre a desejar estar em Portugal. Passámos fora de casa tanto tempo quanto nos foi permitido. Nadámos e mergulhámos muito: o mais velho aprendeu a nadar debaixo de água, a miúda aprendeu a ficar sozinha com as braçadeiras, o pequenino tomou banho de piscina pela primeira vez e gritou quando lhe molhei os pés no mar. Abraçámos a nossa família, que pôde estragar os miúdos com mimos para compensar o resto do ano em que não estão. Comemos muito e comemos bem: muitos caracóis, empadas, sardinhas, boa fruta (obrigada tia Rosa e tio Tozé, ainda hoje comi torradas com doce de abrunhos e de figos das vossas árvores!). Foram quarenta e tal dias de muito, muito Sol, de um calor de que já não me lembrava e do que qual não vou sentir saudades, de fumo dos incêndios a esconder o Sol durante muitos fins de tarde, de leques e ar condicionado. Os cinco na nossa minúscula casa de Lisboa, sete na casa dos meus pais em Portalegre, andámos sempre ao monte e isso nunca ajudou a manter a calma. O Augusto a mudar radicalmente (noites muito mal dormidas, a fruta e a água que não vão nem à lei da bala, a barriga ainda sem funcionar), birras dos outros dois (em casa, nas piscinas, à saída da praia, nos restaurantes, no jardim da Estrela - em suma, onde pusemos o pé!). Mas também vivemos muitos momentos de alegria pura: quando não saíam da água a manhã toda, quando puderam apanhar ovos directamente no galinheiro e morangos da planta e abrunhos da árvores, quando andaram de trotinete, quando brincaram com os primos e com os amigos que só vêem uma vez por ano, quando recebiam mimos dos avós, dos tios, dos vizinhos.

O pai regressa ao trabalho amanhã. Eu tenho ainda um mês para me recompor, para preparar a entrada do mais velho para a primeira classe e a entrada do mais novo para a creche. E para dormir todas as sestas que conseguir, para ler e sair sozinha - é como se as minhas férias começassem agora. E respirar fundo muitas vezes, lembrando que falta uma mês para voltar à vida real. É que, por muito que o deseje, estou ansiosa por ver como nos vamos adaptar à nova vida trabalhadores + pais de três. Estou confiante, apesar de estar quase a bater com a cabeça no teclado. Se conseguir resistir a esta falta de sono, então será oficial: sou invencível!

julho 14, 2017

(um parênteses para dar sentido ao drama de ontem)



Imaginem o cenário: um chalet de escuteiros, em pleno bosque. Uma casinha de madeira preparada para a festa de fim de época do clube de futebol dos miúdos. Carnes na grelha, vinho, cerveja e champanhe para quem prefere bebidas mais leves. Saladas frias, tartes e bolos. Tudo organizado pelo treinador dos miúdos, incansável.

Imaginem os protagonistas: os Bambinis da época 2016/2017, sempre à procura de uma bola de futebol para improvisar um jogo qualquer. Os pais, os irmãos dos miúdos à volta das mesas, conversando em três línguas diferentes, partilhando as traquinices dos miúdos. Bebés e miúdos crescidos a correr pelo bosque, à procura de um tesouro que o treinador escondeu algures.

Estava tudo bem. Tínhamos comido e bebido, o Vicente tinha jogado muito à bola, a Amália tinha fugido vezes sem conta e arranjado mais umas quantas cicatrizes nas pernas e outras tantas marcas de urtigas. Alguns pais já tinham ido embora, nós decidimos que era a nossa vez. Despedidas feitas, recolhemos os miúdos e vemos um dos pais a passar a correr, sangrando de um dedo. Normal, pensei eu, talvez se tivesse cortado numa garrafa. Mas quando realmente saímos do chalet, percebemos que algo de grave tinha acontecido. Outros pais pediram aos miúdos para brincarem no bosque, nós ficámos frente à entrada porque estávamos de saída. O Mário foi perguntar o que se passava e como podia ajudar, está-lhe no sangue, é muito mais forte do que ele. E foi quando voltou, com outro pai e algum gelo, que se deu o primeiro choque: o outro pai não se tinha apenas cortado - metade do seu dedo tinha ficado nas grades do campo de futebol. 

Tentando acompanhar o pai, que ia salvar o que podia do dedo para que se pudesse coser depois, o Vicente percebe o que se passa e vê, ao mesmo tempo do que eu, o resto do dedo nas grades. Foi o terror e faltaram-me os braços para agarrar os meus três filhos e garantir que estava tudo bem. Já tinham chamado a ambulância e tentavam manter a calma lá dentro quando outro pai vem a sair e, subitamente, cai redondo no chão. O Vicente começou a chorar ainda mais e eu já não sabia o que havia de pensar: naqueles segundos iniciais, não era claro se o senhor tinha apenas desmaiado. Aparentemente, foi a reacção àquela visão que o fez perder os sentidos.. Eu continuei abraçada aos dois (Vicente aterrorizado, Amália choramingando por solidariedade com o irmão) e com uma mão no carrinho do bebé.

Depois de nos assegurarmos que havia gente suficiente para tomar conta dos dois acidentes, fomos embora. No carro, explicámos que é necessário falar sobre estas coisas e não guardar nenhum medo cá dentro, que o pai do menino seria tratado no hospital e que voltaria ao "normal". A noite prometia ser agitada mas teve apenas um breve ataque de sonambulismo sem consequências de maior.

Talvez o maior terror e desconforto tenha sido o meu. Não consigo tirar da cabeça a imagem do dedo sobre as grades e a expressão do Vicente quando percebeu o que se passara. Não consigo ainda entender como é que um dia tão tranquilo e inofensivo pode acabar numa sucessão de gritos e algum terror. As imagens repentem-se sem fim na minha cabeça. E sei que há-de passar mas agora é só no que penso. Nisso e nos dois pais acidentados e em como é que posso proteger os nossos filhos da violência e da dor.

julho 11, 2017

(um parênteses para falar de uma Festa)



Sábado à noite. Já não me lembro da última vez que saí e muito menos da última vez que saí sozinha mas este Sábado aconteceu. Perdi o incrível concerto dos Arcade Fire em Paredes de Coura em 2005. No Meco, com o meu cunhado, saímos pouco depois do concerto começar, exaustos de um dia de trabalho. Não podia perder esta oportunidade, era impossível.

À minha mãe ainda faz confusão que eu vá a um concerto sozinha. Aceito - normalmente, são ocasiões em que estamos acompanhados, só a dois ou num grupo de amigos. Mas e quando gostamos muito de uma coisa e não há quem nos queira/possa acompanhar? Há uns anos valentes que decidi que não deixo de fazer nada por falta de companhia. Para poder assistir ao concerto neste Sábado, precisei que o pai dos meus filhos ficasse com eles e tenho a sorte de ser ele um homem descomplicado e capaz. Pude ir sem nenhum remorso ou sem pensar se eles estavam bem entregues ou não.

Não me lembro da última vez que dancei tanto, juro! O concerto foi sobretudo uma festa dançante e há muito tempo que não via uma banda que se entregasse tão livemente ao prazer de estar em palco e de dar prazer aos outros. Num palco de 360º, o público teve a possibilidade de ver todos os elementos da banda trocando de instrumentos, incitando à dança, gritando e cantando (Wake up, Everything now, No cars go, Reflektor, Power out, Rebellion, entre outras tantas). Um calor terrível dentro da sala. Um casal ao meu lado que abandonou o concerto depois dele ter sofrido uma quebra de tensão. Não arriscar sequer ir buscar uma garrafa de água para não perder o lugar perto do palco. Tanto calor que a única solução foi aceitar o suor, as roupas coladas ao corpo e imaginar que perdia alguns quilos dispensáveis. Concerto a acabar às dez da noite: em Portugal, isto deve parecer uma coisa de choninhas. Eu cá aprecio: não é demasiado tarde, ainda era de dia quando saí e para quem, como eu, tem filhos bebés, ainda se chega a casa a horas de tratar do que é preciso. Um pedaço de pragmatismo depois da poesia que foi gritar, fazendo parte daquela celebração como mulher apenas e não como mãe de três filhos.

Por uma escolha nossa (voluntária muitas vezes, noutras fruto da falta de opção) não costumamos sair à noite. Não temos quem nos fique com os miúdos (claro, há babysitters, mas honestamente nunca nos sentimos capazes de tomar essa decisão) e isso limita-nos muito os movimentos. Não é de estranhar que estejamos mais vezes a dois quando vamos a Portugal: afinal, lá temos a nossa família, a quem confiamos os miúdos sem pestanejar. Por isso, estes momentos são duplamente saborosos. E são quase terapêuticos: são um bálsamo para a alma, especialmente naqueles momentos em que me lembro que há toda uma vida que não inclui fraldas, birras e noites sem dormir; há toda uma vida que era a minha antes de ter filhos e da qual sinto (pontualmente) saudades.

Sábado à noite, dez e tal da noite. Faço a viagem de volta a casa de janela aberta, a saborear a brisa que veio acalmar o imenso calor que se sentiu durante o dia, uma lua cheia impressionante à minha direita, a auto-estrada quase vazia. Rodo a chave na fechadura com jeitinho, a casa em silêncio, todos dormem e sobra ainda uma réstia de luz do dia que agora acaba. Apanho na garrafa de água e deito-me com aquele zumbido bom nos ouvidos. Custou-me a adormecer.

junho 30, 2017

Crise de meia idade

Treze anos a blogar tem destas coisas. Já fiz muitos balanços neste blog, olhei muitas vezes para trás e surpreendi-me quase sempre: treze anos a escrever sobre a minha vida é muita, muita fruta, especialmente se pensarmos no que se encontra por aí (como neste site ou neste). Mudei tanto e a minha vida mudou tanto que às vezes parece que foram pessoas diferentes a escrever em meses (anos) diferentes.

Este blog chegou a uma crise de meia idade, (ainda) não fui eu. Questiono-me cada vez mais sobre o que é aceitável escrever aqui, sobre o que pode interessar aos outros, sobre o que me apetece revelar. Na maioria das vezes, acho que, não trazendo nada de novo ao Mundo, mais vale manter-me calada. Noutras, é a abundância de blogs pessoais com o seu próprio estilo, com a sua própria voz que me faz desistir de escrever: afinal, que interesse tem ser apenas mais uma? Porquê continuar, se a única coisa que posso oferecer é uma vida que, diga-se em abono da verdade, não está muito longe do banal? Depois há ainda outras vezes em que vejo como tudo isto se tornou num negócio para algumas pessoas, que confundem a sua vida com publicidade encapotada e lembro-me de quando comecei a escrever: um blogger não era um influencer nem um trend setter; muitos eram pessoas que escreviam genuinamente bem, muitas vezes tinham graça, sabiam contar a sua história. Sinto-me uma dinossaura da blogosfera, é o que é.

Não quer dizer que vá fazer uma pausa oficial ou que deixe mesmo de escrever aqui. Não me estou a despedir, até porque nem consigo: todas as vezes que pensei em acabar com este blog acabaram comigo a ficar triste, sem conseguir imaginar como seria se este espaço deixasse de existir. Mas, como nessa crise de meia idade, questiono-me sobre o meu lugar aqui, sobre os assuntos sobre os quais posso e quero escrever, sobre a voz que quero fazer ouvir. Não vos quero maçar com banalidades, especialmente agora que a minha vida se resume a tratar de três filhos e a manter a casa longe do caos. Não quero ser especialista em nada, nem escrever sem paixão. Por isso, regressarei assim que me sinta mais inspirada, quer isso seja daqui a umas horas, dias ou meses. Obrigada por não desistirem, mesmo nos dias menos interessantes e até já!

junho 11, 2017

Dia da Mãe para mim, que sou muitas mães diferentes

É amanhã que se comemora o dia da Mãe aqui no Luxemburgo. Como as escolas estiveram de férias esta semana, as prendas vieram antecipadas, porque os miúdos não quiseram perder tempo. Antes das férias, ainda fui uma manhã à escola do Vicente participar na tradicional actividade do dia da Mãe. Este ano assistimos a uma canção que eles ensaiaram durante umas semanas, tomámos o pequeno-almoço juntos e eu comecei a magicar no que vai acontecer quando os outros dois também tiverem actividades destas. Como vou multiplicar-me para participar em três celebrações diferentes?

Desejos de ubiquidade à parte, a verdade é que eu sou mesmo três mães diferentes. Sou a mãe mais paciente, melhor ouvinte e deslumbrada com o mais velho. Ele foi o único filho durante quatro anos, três dos quais passámos aqui, longe de tudo, apenas uma ilha de três. Ele teve muita da nossa atenção indisputada, ele teve brinquedos feitos de cartão inventados por nós, teve o nosso amor concentrado num ser pequenino e sempre de coração na boca. Ele teve direito a mil fotografias, a um blog só dele, ele foi o nosso primeiro teste de força.

Depois sou a mãe autoritária e disciplinadora com ela, que sofre da síndrome do filho do meio. Ela foi muito esperada e desejada: tínhamos o rapaz, ela vinha fazer o pleno e realizar aquele sonho banal de ter um casalinho. Ela esgotou-me as forças e fez-me bater fundo, obrigou-me a pedir ajuda e fez-me desejar estar sozinha. Ela é absorvente, insistente, ela é teimosa, ela desafia-nos a todos os minutos, ela quer e ela tem de ter. Dizem que é por ser menina, não sei. Só agora está a começar a conseguir expressar-se (em paralelo com o Português e o Francês, o mundo começa a fazer sentido naquela cabecinha dela) e só agora mostra algumas atitudes espontâneas de carinho. Ainda ontem fez uma birra tal que o empregado do hotel me sugeriu que podíamos esperar com os miúdos lá fora - é este o género. É a menina do papá e isso às vezes magoa-me

E finalmente sou a mãe do bebé, do pequenino que veio desequilibrar as contas. Do filho que dorme melhor, que é mais mansinho e que mais precisa de mim agora. Do bebé a quem beijo talvez mais do que ele gostaria mas é necessário porque ele é o meu último bebé e não vou poder mais beijar bochechas pequenas assim. Sou a mãe que o trata como porcelana, que ainda tem perguntas sobre coisas de bebés mas que já confia (um bocadinho) mais no seu instinto.

Também sou a mãe mais desequilibrada que conheço: tão depressa tenho dias em que sinto que consigo tudo - tratar da casa, resolver problemas, tratar dos miúdos sem pestanejar - , como tenho dias de nervosismo e exaustão, em que tudo me parece impossível e em que me sinto uma falhada em qualquer passo que dê. Se há coisa que os meus filhos me deram, foi a capacidade de olhar para as minhas conquistas e as minhas fraquezas com muita transparência e sentido auto-crítico. O que (infelizmente) não me deram foi a capacidade de perdoar os meus próprios erros, a habilidade para distinguir o que é obrigatório do que é supérfluo, a aceitação da realidade: é impossível estar em todo lado, o tempo todo, com as minhas qualidades intocadas.

Estas férias deixaram-me fragilizada, especialmente no papel de mãe. O cansaço, o desfasamento entre o comportamento que eu desejava nos meus filhos e aquele que eles realmente têm, uma alergia dos diabos a qualquer coisa que ainda não sei o que é levaram-me ao limite. A fragilidade teve o seu pico numa estação de serviço alemã, quando eu enfiei a chupeta da miúda no bebé e não conseguia encontrá-la. Chorei desalmadamente quando percebi a dimensão do meu cansaço, enquanto eles riam a bandeiras despregadas - afinal, aquilo era divertido! E descarreguei um valente pedaço de stress mas ainda não o suficiente para me sentir normal outra vez. Ter parido três filhos faz-me sentir uma super mulher mas educá-los traz-me de volta à realidade. Mesmo em silêncio, hei-de celebrar o dia da Mãe porque não há nada, mesmo nada na minha vida tão importante e tão difícil ao mesmo tempo.

junho 10, 2017

Os cinco na Dinamarca e na Suécia

Ah, a Escandinávia! Esse conjunto de países sempre nas listas dos mais felizes e mais desenvolvidos do Mundo, apenas separados do Luxemburgo pela gigante Alemanha. Sempre desejei conhecer esses quatro países e, no entanto, eles sempre me pareceram inalcançáveis. Não sei explicar bem porquê mas sempre senti que seria difícil ir lá, mesmo sabendo que estão aqui perto e fazem, ainda por cima, parte da Europa. Então decidimos que nestas férias de Pentecostes (uma semana entre Maio e Junho) pegaríamos no carro e visitaríamos pelo menos dois deles. Os escolhidos, por razões de mobilidade e tempo disponível, foram a Dinamarca e a Suécia. 


Depois de mais uma viagem medonha (fazer mil quilómetros num dia com três crianças no carro para pouparmos tempo foi, digamos, uma escolha arriscada...), chegámos a Copenhaga às nove da noite. Como agora somos cinco, torna-se difícil marcar apenas um quarto de hotel e, para poupar no alojamento, decidimos começar a recorrer ao Airbnb*: podemos ter uma casa só para nós, com todo o conforto, possibilidade de cozinhar, pelo preço de apenas um quarto de hotel.

De Copenhaga, vimos aquilo que a chuva nos deixou: a Pequena Sereia, cheia de turistas amontoados, que quase se empurravam para chegar mais perto; igrejas bizarras e imponentes; os quarteirões de prédios todos iguais; o que resta de um bairro de pescadores; a incrível zona de Amager Strand, onde passeámos junto ao mar, admirando o trânsito marítimo, os moinhos eólicos, a ponte de Orensund e onde, fustigados por um vento selvagem, três de nós se constiparam. O tempo foi curto para decidir se é daquelas cidades onde me imaginaria a viver mas considerando a proximidade do mar, o estilo de vida descontraído e saudável, os supermercados com horários decentes e as muitas crianças que vimos, mesmo à chuva, diria que sim. O contra? O cinzento dos dias, claro. Aquele cinzento opressivo que nos esmaga, o  vento, a chuva, o Verão nórdico.


Seguiu-se a Suécia. Atravessa-se a ponte de Oresund em menos de trinta minutos e estamos do outro lado da Escandinávia. Demos um salto a Malmö mas apenas para comer qualquer coisa e fazer tempo para chegar ao nosso destino final, Falsterbo, numa espécie de península que acaba num campo de Golfe mesmo à beira mar. Campos de golfe que, descobrimos depois, se multiplicam no pedaço de costa sueca que visitámos, o verde do green sempre a contrastar com o azul (nuns rasgos de sorte) ou o cinzento do céu (o que mais vimos). Subimos até ao farol de Kullaberg, almoçámos em Mölle, uma aldeia costeira perdida onde assistimos a uma valente trovoada, o restaurante apenas servia um prato e em que a dona do mesmo tinha trabalhado dez anos com um chef português. Ficou espantada de ver uma família portuguesa por ali (durante anos, apenas outros dois casais apareceram por ali) e, considerando-nos exóticos, pediu-nos para nos fotografar.

Comemos schnitzel à moda sueca (com pepino em pickle, anchovas e alcaparras), umas fatias de Prinsesstarta (melhor bolo de sempre!), provámos a verdadeiras Kannelbulle (as do Ikea não se ficam atrás). A tempestade alternou com o céu azul, os Suecos revelaram-se simpáticos, o Inglês fala-se por todo o lado.  Fiquei fascinada com a costa: a vegetação vai mesmo até ao mar, não vimos grandes areais, apenas praias de pedras bem grande e casas que ficam entre bosques frondosos e a beira mar.

O que fiquei a invejar deste dois países? A forma como as pessoas vivem a sua vida independentemente nas condições meteorológicas e a maneira incrível como o fazem em plena comunhão com a Natureza. Vimos tantas pessoas a caminhar, a correr, de bicicleta pelos quilómetros de caminhos junto à costa, crianças e bebés incluídos, enquanto chovia ou eram fustigados pelas fortes rajadas de vento. Estas pessoas aceitam a Natureza na sua magnificência e não deixam que nada os páre. Já eu, mesmo depois de cinco anos a viver aqui (bem sei que não é exactamente um país nórdico mas pronto), ainda vivo com aquela mentalidade sulista: epá, se não está Sol, não vou arriscar nenhuma actividade fora de portas.

Tenho meenos vontade de conhecer a Finlândia mas um desejo gigante de nos aventurarmos nos fiordes noruegueses. Escandinávia nos aguarde, que nós vamos voltar!

maio 30, 2017

Um elogio da mediocridade

(Este post é inspirado neste artigo, que descobri através deste blog. É incrível como nos últimos tempos tenho encontrado pessoas que exprimem na perfeição os meus próprios dilemas.)

Depois de um período de alguma ansiedade, limpei das minhas redes sociais aquelas pessoas/contas que me faziam sentir uma péssima mãe/mulher por não conseguir ser perfeita. Os miúdos perfeitamente vestidos e comportados, a casa perfeitamente decorada e limpa, as refeições perfeitamente planeadas e saudáveis, as viagens perfeitamente organizadas - a pressão era demais. Mas a culpa nem sequer é dessas pessoas que fazem tudo parecer simples e atingível - a pressão é, em último caso, auto-imposta e por isso só eu tenho a chave para me desfazer dela.

As viagens de avião são um belíssimo exemplo de como as nossas expectativas e a possibilidade de concretizar os nossos desejos mudaram nos últimos 10, 20 anos. Lembro-me de ser adolescente e as viagens de avião eram uma coisa séria. Não estavam reservadas para o comum dos mortais, muito menos à classe média em que sempre vivi. Custavam, muitas vezes, centenas de contos e não nos faziam sonhar que era possível ir a todo o lado. Hoje em dia, todos sabemos, viajar de avião pode mesmo ser mais barato do que viajar de carro. O incoveniente de ter de voar é largamente suplantado pela vantagem de demorar muito menos tempo. Hoje parece que podemos ir a qualquer lado no Mundo. E não é exactamente verdade, muito mais quando se pensa que agora somos uma família de cinco (quatro bilhetes de avião completos, a multiplicação dos quartos de hotel, as mesas nos restaurantes...).

Mas não são apenas as viagens. Hoje parece que é proibido não ambicionar a ter a vida perfeita. Hoje parece que somos obrigados a inscrever os miúdos em mil actividades, a ser uns pais sempre pacientes e positivos, a comportarmo-nos como dois miúdos apaixonados mesmo que no final do dia só nos apeteça fechar os olhos e dormir, a termos sucesso nas nossas profissões, a encontrarmos a profissão ideal para "nunca mais trabalharmos um dia na vida", a termos o último modelo da moda, a viajarmos para os sítios mais incríveis, a comermos nos sítios mais in. Desejar menos que isto é sermos um extraterrestre, uma anomalia de feeds de amigos e de notícias.

Não quer isto dizer que eu não tenha ambições. Ou que não deseje o melhor para mim e para a nossa família. Simplesmente, acho que o segredo é adaptar as expectativas à realidade e àquilo que podemos realmente alcançar.  Para mim, a escolha é entre isso e ter de viver na frustação  de não conseguir  acompanhar as últimas tendências. É conhecer as nossas limitações e continuar a sonhar mas com os pés bem assentes na terra. É não ter medo de não ter uma vida espectacular e aprender a apreciar a nossa vida enquanto ela acontece, porque é essa a nossa riqueza. Sem salas perfeitas, sem a última novidade em brinquedos, sem aquela tosta de abacate que é o último grito da alimentação, sem frases feitas e com muita, muita imperfeição. Com as refeições que não merecem ser fotografadas, com os gritos que às vezes damos aos miúdos, com tupperwares que valem mais do que bonecas, com passeios em que o principal objectivo é mantermos a nossa sanidade, os cinco dentro do carro.

Se eu tivesse que subscrever um manifesto, seria por bebés que crescem mais ou menos depressa; por vidas que às vezes são difíceis mas sem artifícios; por filhos que não dormem a noite toda; pelos copos de vinho que me apetece beber; pelos livros que consigo ler às mijinhas com uma espécie de laterna para não acordar o bebé; pelo monte de roupa que se acumula à espera da triagem ou simples arrumação; por todas as sestas que ficam por dormir; pela sensação de que, a cada filho, a maternidade fica mais fácil; pelas birras sempre irracionais e dramáticas; pelas cólicas e perguntas difíceis; pelos pais que às vezes discordam mas no fim se entendem; pelos momentos em que estão os três a gritar/chorar ao mesmo tempo; pelos pesadelos e xixis a meio da noite; pela erva do jardim que não se corta sozinha; pelas chuchas que se perdem dentro de casa; pelas obras no vizinho que acabam com as sestas (que já de si eram complicadas...). A nossa vida muitas vezes é chata e sem glamour mas, garanto-vos, nunca, mas nunca monótona!

maio 14, 2017

Crónica de um dia do demónio

(na verdade, este post começa ontem, quando decidi espreitar só o festival da canção para ver como paravam as modas e acabei a ver tudo até ao momento inacreditável em que Portugal ganhou. Tudo isto quando sabia que tinha de me levantar pouco antes das quatro da manhã para apanhar um avião...)

4:20 am - chego ao balcão do check-in no terminal dois e sou atendida por uma funcionária carrancuda que primeiro me pergunta se vou viajar com a criança (o pequeno Augusto, entenda-se). Quando respondo afirmativamente, pede-me a declaração paterna de que ele pode sair do país. Entrando ligeiramente em pânico, respondo que tenho três filhos, já viajei com eles separadamente em ocasiões diferentes e nunca me foi pedida tal declaração. Depois de muitos argumentos tolos (se queria sair do país, porque não tinha a criança um passaporte? Espaço Schengen, duh.), lá a convenço que temos residência permanente aqui e que o pai nos espera. Ela pede que não me exalte, eu já estou que nem posso.

4:40 am - sou convidada a passar no controlo de bagagem no fast track. Funciona impecavelmente e não há ninguém à nossa frente. Quando terminamos, estamos directa em frente às portas de embarque.

4:50 am - amamento o miúdo tranquilamente mas cheia de fome. O primero café abre às cinco mas toda a gente do terminal já está a fazer fila. Abro um saco de cajus, como uma mão cheia e vou embarcar sem tomar o pequeno-almoço.

5:30 am - Entro depois de meia dúzia de passageiros prioritários e antes do resto dos passageiros. Viajar com bebés rende sempre.

6:20 am - o voo leva uns dez minutos no ar e passa uma miúda a correr para a casa de banho. Demoro a processar o que aconteceu: leva a cara cheia de vómito, que vai pingando para o corredor do avião e salpicando alguns passageiros. O cheiro é nauseabundo e sinto pena dos comissários de bordo que, de imediato, calçam as luvas, empilham guardanapos e enchem copos de água e limpam tudo o melhor que podem.

8:55 am - o miúdo porta-se lindamente durante todo o voo e aproveito para o ajudar na aterragem, amamentando-o. O piloto faz uma das piores aterragens de que tenho memória: o avião parece que salta e vai partir-se em dois. Alguém esboça um aplauso muito fraco, o resto dos passageiros está demasiado aterrorizado para reagir.

9:30 am - finalmente posso comer e tenho a sorte de comer um mil folhas, acompanhado de um galão. Ainda não estou em mim e penso que toda a gente à minha volta fala Português. Por acaso, é mesmo verdade.

10:15 am - vamos directos para o torneio de futebol do mais velho que durará até às quatro da tarde. Não há tempo para refrescar, deixar as malas em casa ou fechar os olhos durante uns minutos - ele precisa de nós. Não consigo imaginar maior tortura do que seis horas de futebol depois de uma manhã agitada mas ele merece tudo.

12:15 pm - almoço uma salsicha e uma daquelas bebidas dos atletas, entre um aguaceiro e o Sol que volta de repente. O treinador do miúdo passa e diz que ele tem que aprender a perder.

2:15 pm - o miúdo chora sempre que lhe tocam e sempre que as coisas não lhe correm como quer. E também sempre que perde um jogo. Ou seja, passa a tarde inteira a chorar, enquanto não simula uma falta e se manda para o chão. Os outros pais riem-se.

5:30 pm - depois da mala desfeita e de alguns amassos no miúdo, é hora de levar o marido ao aeroporto. Agora vai ele para Lisboa enquanto eu fico a capitanear o barco aqui. Estou com os meus dois miúdos, nada temo. O miúdo chora na despedida do pai, o bebé chora assim que chega a casa. Mesmo assim conseguimos tomar banho os dois.

7:40 pm - o bebé não consegue dormir, ora com os ruídos, ora com as dores de barriga. Abanamo-lo à vez até que adormece mais um bocadinho. Assim que nos dá uma abébia, desenrasco um jantar à pressa porque a única coisa que quero hoje é fechar os olhos. O bebé está na mesma e o mais velho também precisa de descansar do berreiro da tarde.

8:19 pm - finalmente consegui pôr o bebé a dormir na cama e parece que é de vez. O mais velho quer dormir comigo e não consegue moderar o tom de voz, pelo que lhe dou a escolher: o silêncio ao pé de mim ou a galhofa solitária na cama dele. Adivinhem o que escolheu. Não posso teclar mais, ainda assim não acorde o pequeno. Ou adormeça sobre o teclado.


maio 07, 2017

Dia da Mãe (7 anos para mim, 37 para ela)


Hoje é dia da Mãe e mais do que nunca acho que foi preciso ter sido mãe para compreender a minha própria mãe.Pode não ser verdade para toda a gente e pode mesmo haver quem, não experimentando a maternidade, compreenda a sua própria progenitora mas eu acho que ajuda muito passar pelo mesmo.

Talvez a melhor definição do que a minha mãe sempre foi para nós se possa traduzir num acontecimento nestes últimos dias. Em conversa, eu disse que andava com vontade de fazer um bolo de cenoura e ontem ele ali estava, com aquela cobertura de chocolate malandro e sem que eu tivesse que mexer uma palha. A minha mãe nunca se esquece de nada, mesmo aquelas coisas que se mencionam de raspão numa conversa. E, mais do que não se esquecer, ela gosta de nos fazer as vontades e de nos fazer surpresas. Ele é um pijama novo na gaveta, ele é aquela tomatada de que sentimos saudades, ele é esticar o colo para caberem os três netos.

Eu ouço a minha mãe hoje em muito do que digo aos meus filhos, quer queira, quer não. Mas reconheço que às vezes acho que não vou ser capaz da mesma abnegação com os meus filhos: a minha mãe sempre nos colocou acima de todas as coisas, eu continuo a achar que há coisas em que eu estou primeiro. Enquanto escrevi, a minha mãe cozinha vários pratos para que a minha irmã não tenha que se preocupar durante a semana e só não faz o mesmo por mim porque não dá jeito a troca de tupperwares a 2000km de distância. A minha mãe até mudou e às vezes nem se chateia quando lhe perdemos a tampa de um tupperware ou quando nos esquecemos do saco térmico.

A minha mãe ensinou-me que às vezes dói fazer a coisa certa: aquilo que precisamos fazer pode doer-nos a nós e também aos nossos filhos. Mas estas dores são necessárias para que todos possamos crescer e ela não mo explicou - sentimos as duas estas dores de crescimento, houve períodos em que nos afastámos, em que não nos compreendemos mas soubemos sempre voltar a um plano de entendimento.

Não somos de muitos abraços e beijinhos - bem, talvez eu não seja de abraços e beijinhos mas ela sempre esteve lá para me amparar as quedas e eu, cada vez mais, recorro à sua sabedoria e aprecio a sua aprovação. Felizmente tenho tido um bom modelo e, mesmo que tenha cá as minhas ideias e que possamos divergir em algumas coisas, sinto-me sortuda por ter uma mãe assim. E é verdade que sou muito má a dizer estas coisas mas desenrasco-me melhor a escrever e por isso lhe escrevo hoje Feliz dia, minha Mãe!

maio 05, 2017

Quase um mês de Portugal

Estou cá quase há um mês, parece mentira. Primeiro éramos cinco, depois ficámos três.

Como sempre, fui naive e pensei que poderia descansar um pouco. Afinal, os meus pais (e, ocasionalmente, a minha avó) têm tempo para ajudar. Mas, como sempre, não é isso que tem acontecido. É o que dá ter uma filha que tem uma personalidade exuberante, à falta de outro adjectivo. A necessidade dela de chamar a atenção tem crescido e tem sido difícil de conter e por isso, se ela estiver acordada, é sempre preciso chamá-la, convencê-la, afastá-la, acalmá-la, gritar, impedi-la, guiá-la, compreendê-la, inspirar fundos vezes infinitas, recordar que ela não tem segundas intenções e só quer centro o centro das nossas atenções. Faz-me sentir que estou a falhar a toda a prova, sinto-me frustrada por não encontrar a maneira certa de me fazer ouvir, mesmo quando me lembro que todo este desnorte é o resultado de ainda não saber comunicar decentemente e de estar a competir pela atenção com o mais novo da casa. Isto não são os terrible two, são os monstruous, fearful two e eu não estou preparada para que isto ainda piore um pouco. Valem-me os momentos em que ela é uma miúda doce, enviado beijinhos a toda a gente, espalhando Bonjours por todo o lado, aprendendo mais e mais palavras em Português (sendo coitadinho! a minha preferida, cortesia da minha avó que a repete frequentemente para o bebé), dançando as canções do Panda. É um equilíbrio super ténue entre um pequeno monstrinho indomável e um docinho bilingue e picuinhas.

O senhor Augusto deixa pouco para contar. Mama e dorme infinitas vezes melhor que os seus irmãos, distingue na perfeição o dia da noite, é simpátivo e risonho quando está acordado e só sofre ainda um pouco da sua barriguinha mas melhora a olhos vistos. Agradeço ter-me calhado em sorte um bebé assim porque se tivesse um bebé chorão ou um bebé que precisasse de estar sempre colado a mim ou que precisasse de imensa atenção - bem, o cocktail seria explosivo com a sua irmã do meio.

No meio destes dois, tem-me sobrado tempo para ver alguns amigos e família, vi uma mão cheia de episódios em atraso, consegui ler um livro (E a noite roda, da Alexandra Lucas Coelho, o seu primeiro romance, inspirador e comovente e, ao mesmo tempo, um valioso testemunho histórico sobre o conflito israelo-palestiniano), cozinhei uma ou duas vezes. Tenho planos para ler mais três livros na semana que falta até voltar a casa, já perdi a esperança de aprender a tricotar uma camisola (lãs, agulhas e uma diva de dois anos não combinam de maneira nenhuma...) e ainda espero bordar qualquer coisa em ponto cruz. Não sei de onde vem esta vontade grande de trabalhos manuais mas gostava de descobrir alguma coisa em que fosse boa para me distrair e oferecer aos outros. Não são exactamente as férias de que estava a precisar mas são as melhores que se podem arranjar e sinto-me grata por isso.