novembro 30, 2015

Dois dias (parte II) *

IUma linha de metro e um autocarro depois e estou em casa a tempo de beijar a minha irmã antes dela sair para trabalhar. Estava à minha espera e tinha-me feito a cama de lavado. Agradeci, ela sabe que não era preciso mas fê-lo por gosto e eu sorri.

Almoço na tasca dos três irmãos aqui na esquina. São os vizinhos, são os amigos e perguntam-me pelo marido e pelos meninos. Escolho a alheira porque é esta a comida de tasca e nem cinco minutos depois já a tenho à minha frente. Aqui não há tempo a perder, nem há mãos a medir. Entram os mecânicos, entram os doutores, entram a senhoras que vivem sozinhas e é travessas de cabidela e perca grelhada sempre a saírem. Resisto ao pudim de ovos e ao arroz doce, peço só um café e saio.

Espero meia hora pelo eléctrico. Dizia que passava de oito em oito minutos mas eu já me tinha esquecido que os minutos-Carris não equivalem a minutos humanos e encolho os ombros mentalmente. No eléctrico, há quem bufe com a falta de espaço. Eu não bufo, não cedo à frustração porque tenho tempo. Saio no Calhariz e dou um salto ao antigo Adamastor. A vida lisboeta é tão boa para os turistas: esplanadas brindadas pelo Sol, jarros de vinho fresco, um mundo de pratos regionais a descobrir. Tempo para se absorver as ruas sujas mas belas, as montras das pastelarias cheias de línguas de sogra, natas e bolos-rei, tantas horas de Sol. Para viver Lisboa como a sonho teria que ser turista e isso será sempre impossível, pelo menos permanentemente.

Chego ao cinema Ideal em cima da hora e compro um bilhete para o Montanha, do João Salaviza. Somos cinco na sala, todas mulheres. Tirando eu, todas com mais de cinquenta anos. O filme é um pouco amargo mas belo, a solidão e o desnorte algures nos Olivais, um crescimento à força embebido no suor e no calor, musicado pelos sons da cidade. E quando termina e eu quero levantar-me, um tal cansaço abate-se sobre mim, como se estivesse há dias à espera de se manifestar. 

Espero o eléctrico que não vem, espero o 758 que não vem e decidi procurar o 709. Desço até ao Rossio para descobrir que já não passa ali. Desespero porque parece que vou adormecer a qualquer momento. De caminho, vejo muita miséria pelas ruas, muita roupa coçada, gente sem pernas, três ou quatro cegos. Enfio-me no metro e, três linhas e um autocarro depois, consigo arrastar-me até casa. Deixo as luzes apagadas e preparo-me parq dormir um pouco. Aterro na cama e zás!, uma espertina de todo o tamanho.

(* uma série de posts em diferido, para não atrapalhar o curso da história)

novembro 29, 2015

Dois dias (parte I) *

São oito da manhã e estou sentada num autocarro com destino a Lisboa. Quase a partir, a manhã está fria mas há Sol e o céu está azul, o que parece explicar uma certa ponta de optimismo.

O autocarro avança e eu tenho Portalegre à minha esquerda e o Sol que nasce atrás das torres da Sé. Quero absorver o perfil da cidade uma última vezes, como em todas as vezes, mas só consigo fixar o olhar a espaços. Não consigo evitar chorar, não posso. Nunca quis aqui ficar mas penso em tudo o que já foi e tenho saudades. Estes dias foram tudo, foram catárticos, foram duros mas necessários. Fui sentindo ao longo da vida mas agora, aos trinta e seis anos, vejo claramente o amor incondicional que os meus pais sentem por mim e aspiro apenas a poder oferecer o mesmo aos meus filhos.

Perdi-me algures no caminho e tem sido difícil reencontrar-me. O autocarro avança e eu abandono-me à paisagem, às azinheiras ou sobreiros que nunca soube distinguir, à geada que cobre os campos verdes com o seu manto macio, às vacas que pastam alheias ao que se passa à sua volta e imagino este silêncio lá fora.

É possível que muita gente não entenda por que raio estou eu sentada sozinha a caminho de Lisboa e isso, apesar de não ter importância, incomoda-me um pouco. Já não me lembrava como era fazer uma viagem tão lentamente, sem a necessidade de estar perto do volante. Já não me recordava do que era ter tempo para pensar, do que era mergulhar neste estupor, de ver alternar terras lavradas com parcelas por lavrar, de adivinhar ribeiras e riachos, de cobiçar casas abandonadas e em ruínas. A paisagem lá fora é um filme mudo e os meus problemas são ridículos, envergonha-me chamá-los problemas. Como se estivesse sempre ao meu alcance controlá-los.

Talvez há mais de dez, doze anos não faça uma viagem assim. Na única paragem do caminho, o ridículo dos amores que se escrevem nas portas das casas de banho, na esperança... Na esperança de quê? Respiro fundo, muitas vezes. A minha missão é apenas apanhar ar. Não quero (não posso) falar, não quero partilhar, simplesmente preciso de espaço. Daquele mesmo que tinha em demasia quando eu era só uma e tinha apenas a responsabilidade (facílima, vejo hoje) de tratar de mim. A vida enfiou-me numa espiral perigosíssima e eu estou agora à tona, combatendo a profundidade com as minhas parcas forças. Por isso, olho pela janela. Às bermas constantemente cheias de lixo, junta-se a barragem tão em baixo, o desleixo das casas à beira da estrada, o piso bom e o piso por renovar, o Sol esconde-se atrás de nuvens, ainda há ribeiras a correr e os ciganos ainda se sentam na rua em acampamentos improvisados. Toda a vida continua, não há tempo para olhar para trás. Porque haveria eu de parar?

(* uma série de posts em diferido, para não atrapalhar o curso da história)

novembro 25, 2015

(uma sombra apenas)

Às vezes acontece-me isto. Acordo um dia e não sou mais do que uma sombra. 

Aconteceu-me há umas semanas e eu demorei a perceber. Depois tudo se conjugou numa imensa cabala contra a recuperação: a exaustão chegou para ficar e depois Paris foi atacada, Bamako foi atacada e Bruxelas ficou em estado de sítio. Durante as últimas duas semanas consomi mais televisão do que gostaria de admitir. Foram horas de directos, as polícias a intervir, os especialistas e os generalistas a comentar, muito mais especulação do que alguém consegue digerir mas eu não consegui sair da frente da televisão.

Estou-me nas tintas para quem acha que é hipocrisia sentir tanto os ataques em Paris. Agora estou em Portugal e talvez não me possa sentir segura em mais nenhum lado mas no Sábado levanto voo com uma bebé de nove meses e volto quase para o centro da acção. Tudo o que eu não quero é passar a andar a olhar sobre o ombro, à procura da ameaça a todo o instante. Tudo o que eu desejo é que os meus filhos, como os filhos de tanta gente da paz, possam viver, crescer, ir aos mercados de Natal, correr nos parques sem que eu tenha de lhes explicar que a ameaça é real.

Como não sei parar, li todos os artigos a que consegui deitar a mão, na ânsia de encontrar respostas. Na ânsia de entender porque é que tanta gente inocente, tanta gente pacífica tem de morrer às mãos de selvagens que invocam a religião a cada ataque. Não consegui entender, obviamente. Nunca vou entender fanatismos, sejam eles religiosos, partidários ou clubísticos. Nunca vou entender pessoas que preferem morrer e levar consigo o maior número de inocentes possível em vez de aproveitarem o que a vida tem de bom.

Continuo com medo mas com menos ansiedade. Tento mentalizar-me que não há nada que possamos fazer, não está ao nosso alcance evitar e a única coisa a fazer é viver. Beijar os miúdos sempre que possa, ouvir quem nos quer bem, escolher o Bem todos os dias. A ideia do que está para vir é horrorosa mas, se eu não escolher este caminho, não vou suportar essa escuridão.

As palavras têm-me faltado mais do que nunca. Os pensamentos correm à velocidade da luz, especialmente antes de adormecer. O esforço para esvaziar a cabeça é redobrado, se quero descansar. Nunca pensei viver para ver algo assim e imagino que ninguém, ou pouca gente, esteja preparado. Que estejamos cá todos daqui a uns valentes anos, para contar a História como ela deve ser lembrada.

novembro 06, 2015

36 ou a salganhada de sentir tudo ao mesmo tempo

(nota prévia: este não é um post luminoso sobre aniversários.)

Cheguei aos trinta e seis. Dobrei, portanto, aquele marco invisível da meia idade para viver a segunda metade da minha vida e possivelmente nunca me senti tão confusa, um pouco perdida.

Não se deixem enganar: eu gosto de fazer anos. Mas apenas porque é um dia que me faz sentir especial, não porque goste de sentir os anos a passar. E o pior é que nem estou a envelhecer bem: é o baby weight que teima em ficar, é o cabelo quase todo branco a emoldurar a minha cara, a fragilidade das minhas mãos. Ultimamente, em todas as vezes que me apanho em frente ao espelho ouço a mesma pergunta: mas quem raios és tu? Não era suposto que a resposta fosse fácil, trinta e seis anos depois de chegar ao mundo? Não era tão mais simples não fazer perguntas e, cúmulo da serenidade, não pensar sequer?

Cheguei aos trinta e seis com dois filhos e num estado de exaustão que me preocupa. Cheguei aqui e há dias em que eles são aquilo que me define: se os amei tudo o que pude, se lhes dei banho a correr, se consegui não gritar. Cheguei aqui e às vezes parece que eles são tudo o que interessa, mesmo quando me lembro que eu sou a minha própria pessoa, com desejos, falhas, neuras e vontades. Talvez por estar em casa há tantos meses mas eles ocupam-me tanto espaço no pensamento que só acordo do torpor às vezes, um número minúsculo de momentos em que resolvo ser só eu.

Trinta e seis anos, porra. Imagino como se sentirão os meus pais a olhar para mim e ainda a conseguir ver o bebé que fui, imagino olhar para os meus filhos com trinta e seis anos. Como é que se pode aceitar a crueldade do tempo com um sorriso nos lábios? Se calhar com trinta e seis anos percebi que não estou aqui para sempre, vou abrandar e ficar velha, se calhar definhar enquanto os meus filhos se tornam pessoas. Se crescer é ficar mais sábio, mais complacente, porque é que pensar na finitude custa tanto?

Tenho hoje trinta e seis anos e começo a sentir-me excluída da novidade, do entusiasmo dos mais novos. Vejo aquela malta a entrar para a faculdade e penso Mas espera lá, ainda há pouco eu estive ali. Só que não, entrei há quase vinte anos para a faculdade, dito assim parece ridículo e irreal mas é dolorosamente verdade. Vinte anos em que vivi tanto e que hoje me parece tão pouco. Algum dia vai chegar?

Hoje comemoro os trinta e seis anos. Se estou mais sábia, não tenho notado. Estou talvez mais paciente, mais apaziguadora. Esqueço-me dos grandes gestos para me concentrar nas micro vitórias que uma vida longe do meu país e da minha gente me dá. Estou um pouco desiludida com o que consegui até aqui e com o que me custa tantas vezes dar a volta por cima. Pergunto-me mais coisas do que aquelas que gostaria: é isto, ser feliz? Posso eu algum dia sentir que me cumpri? Só sei dizer não sei, repeti-lo até à exaustão. Que aos trinta e sete tenha já encontrado altumas respostas mas por agora preciso de me habituar a dizer trinta e seis.