setembro 16, 2014

Para memória futura

A minha avó que me guardava sempre os figos. A minha avó que nunca se zangava conosco mas que ralhava por tudo e por nada com o meu avô. A minha avó com o cabelo com mais jeitos e mais teimoso do mundo. A minha avó que tinha as flores mais bonitas e bem cuidadas do seu bairro. A minha avó que jogava conosco à bisca com cartas que tinham a ponte 25 de Abril atrás. A minha avó que nos fazia café solúvel e bifanas ao lanche. A minha avó que sobreviveu a um cancro quando havia tanta a gente como ela a morrer. A minha avó cozinheira, que adorava contar sempre a mesma história sobre um vizinho e batatas fritas. A minha avó que só aprendeu a escrever já eu andava na escola mas conseguiu finalmente assinar sozinha o que era preciso. A minha avó que pegava no nosso coelho com as mãos de quem fazia aquilo há anos. A minha avó e uma das nossas histórias preferidas: grávida, caindo de uma árvore enquanto apanhava fruta e proibida de continuar a trabalhar depois disso. A minha avó que gostava de poder dar sempre mais. A minha avó cheia de ciúmes nossos por tudo e por nada. A minha avó com paciência de avó e as gavetas cheias de comprimidos que ia comprar a Espanha. A minha avó que achava que a televisão só dava porcaria. A minha avó que ainda guardava a cadeira onde criou o meu pai. A minha avó que se foi abaixo quando o meu avô nos deixou. A minha avó que nos preparava piqueniques para fazermos nas escadas. A minha avó onde passei tantas tardes a sentir o cheiro da fábrica da rolha. A minha avó da tomatada e das batatas fritas mesmo, mesmo como eu gosto. A minha avó dos canários que falavam com ela. A minha avó doceira, sempre a querer encher-nos o frigorífico nas festas. A minha avó que se calhar já não me reconhece.

A minha avó, com um corpo que ainda aqui está mas uma mente que começou a fugir sabe-se lá para onde.

1 comentário:

Dalma disse...

Querida, que linda homenagem à tua avó!
Oxalá ela pudesse ler este teu lindo texto!
Bjis