setembro 21, 2011

Uma (violenta) arqueologia das emoções


Foi como se, de repente, alguém estivesse de pincel na mão, afastando as camadas de pós ganhas com os anos, procurando a imagem mais fiel do que sentia. É um gigante lugar comum dizer que, vendo o filme, também eu me vi a crescer. Talvez a cassete inaugural da minha adolescência tenha sido o Vs, encomendado pelo Círculo de Leitores e ansiosamente esperado em casa. Antes disso, eram os vídeos gravados em VHS gastas pelas memórias que (ainda) pensava serem eternas, ao lado dos primeiros passos dos Nirvana, da descoberta dos Red Hot Chili Peppers ou de pérolas como os Lulu Blind.

Passávamos as tardes a ouvir música em rádios roufenhos: algo épico dos Metallica, seguido da barulheira dos Sepultura mas eu ficava sempre presa em coisas menos pesadas. Era a época em que os metálicos se juntavam em frente à secretaria do Liceu ou na varanda da Escola, em que se agitavam as massas nos concertos nos pavilhões, uma mistura de gangas com cabelos compridos e escorridos. A música chegava-nos a conta gotas - gravávamos de um amigo de um amigo de um amigo ou colávamos o gravador às colunas da televisão na esperança que depois se ouvisse alguma coisa. Eu era absurdamente inocente e estava perdidamente apaixonada pela imagem de alguém que nunca viria a existir, perdendo anos da minha vida a pensar que já lhe estaria destinada, como se não pudéssemos contrariar as histórias de amor mais idiotas e tivéssemos que aceitar o que alguém tinha escolhido para nós.

Depois houve o cd como prenda de Natal, aberto antes às escondidas para matar a curiosidade, a memória da primeira (e praticamente única) loja de discos que existiu em Portalegre - um espaço esconso no primeiro piso do centro comercial. E o concerto no Restelo, já com um coração completamente estraçalhado, esmagada também pela multidão que se acotovelava naquele dia de Maio. As edições dos cds eram sempre um motivo de alegria tão grande, à espera das letras e de mensagens em código que imaginaria terem sido escritas para mim.

Não quero ser mal interpretada: não tenho saudades de quem era naquela altura, naqueles anos. Muito do que vivi teve o condão de me fazer crescer mas só à custa de dias inteiros passados na cama a chorar ou do mais profundo recalcamento das coisas que me faziam sofrer. Não daria nada para voltar atrás porque crescer foi difícil, quase sempre à força, quase sempre à custa do amor e eu não sei onde fui buscar tanta vontade de ser amada, tanto desejo de romance. Nunca descreveria a maior parte desses tempos como felizes mas tenho saudades, isso sim, dos dias em que ligava a aparelhagem em altos berros e fazia do meu quarto a ponta do palco e o concerto era meu. Só não tenho saudades desse tempo porque sempre tive a sensação de que merecia melhor - eu que idolatrava, eu que esperava e perdoava as maiores falhas de carácter, eu que, paciente, esperava pela facada final.

Ver este filme ontem foi um gigante balde de água fria. A história deles é a nossa história e agora eles têm quarenta e cinquenta anos e nós já temos filhos e trabalhamos em escritórios com ar condicionado e temos as nossas contas para pagar e já não temos idade para nos lançarmos de cima de um palco sobre a multidão, mesmo que nos apeteça. Há que enfrentar a realidade: deixámos de ser adolescentes e isso doeu, mesmo sem guerras do Vietname, sem crises nucleares, sem fome. E tal como os Pearl Jam também nós mudámos e fomos fazendo concessões, esperando que não nos abandonassem pelo caminho. E tentámos ser fiéis a tudo o que esperavam de nós e ao que nós esperávamos de nós mas tivemos que mudar. Isso chama-se crescer e não se faz da noite para o dia e muito menos sem uma tristeza gigante de deixar para trás os doces anos da leveza. Há vinte anos, nascia a minha banda preferida de todos os tempos e o meu filho provavelmente nunca irá saber como são/foram realmente as estrelas do rock. Por favor, não escavem mais. A fazer fé na História, os gigantes do rock serão imortais.

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