Na creche, as coisas iam muito bem para o bebé Vicente. Todos os dias, que me lembre sem excepção, ouvíamos o mesmo (il a bien dormi, bien mangé et bien joué) com um enorme sorriso e um aceno efusivo a que ele respodia da mesma forma. Problemas? Nenhuns. Comportamento? impecável.
Isto tudo até Segunda-feira. Durante o banho descobri, com algum horror, duas marcas no corpo do Vicente daquilo que parecem ser mordidelas de alguma criança. A marca nas costas é especialmente exuberante, levando-nos a crer que a mordidela se arrastou durante uns largos segundos sem nenhuma intervenção. De cabeça quente, o pai do Vicente escreveu um e-mail à direcção da creche, alertando para esta falta de zelo (que se manifestava também noutros acontecimentos menores) e pedindo que se tomassem as medidas necessárias.
Ontem de manhã levámo-lo à creche e aproveitámos para mostrar as marcas à auxiliar que o recebeu, que se mostrou chocada mas que não sabia adiantar mais nada porque não tinha estado com ele. À tarde, fui eu mesma buscá-lo e aproveitei para falar com a educadora. Esta manifestou-se triste e chocada pelo facto de termos recorrido primeiro à direcção e não a ela, erro que logo reconheci assim que me coloquei na sua pele. Depois garantiu-me que aquelas não eram mordidelas, que nada se tinha passado com ele a não ser uma queda sem resultados aparentes. Contou-me que ele às vezes bate noutros meninos e também recebe mimos deste género quando disputam brinquedos mas que não era nada de preocupante e, como em todas as crianças desta idade, era uma tendência que iria desaparecer. Eu garanti-lhe que agimos com a melhor das intenções, talvez um pouco de cabeça quente mas que queríamos apenas saber o que se passa com ele diariamente, mesmo que isso implique que ele deva ser disciplinado. Ficámos assim.
Só que a história não acabou aqui. Hoje recebemos um e-mail de uma das directoras, pedindo que confirmássemos algumas conclusões: que estávamos satisfeitos com o serviço, que o pai do Vicente tinha escrito o tal e-mail porque estava de mau humor, que o Vicente se arranha sozinho quando se enerva e que batia noutras crianças com frequência como (supostamente) nos diriam todos os dias. Despediu-se oferecendo a sua ajuda para marcar um encontro com uma assistente social para discutirmos a agressividade do Vicente, característica que só agora nos foi descrita.
Eu fervi. Fiz um esforço hercúleo para conter as lágrimas. Além desta postura arrogante perante as evidências e uns pais que querem defender o bem-estar do filho, atacou-nos de forma gratuita e desleal, transformando um comportamente normal numa criança de menos de dois anos num traço de carácter a precisar urgentemente de correcção. Senti que o nosso trabalho como pais tinha acabado de ser transformado num enorme falhanço. Senti tudo isto como um golpe baixo e como se fossemos dois neuróticos, doentiamente protegendo um deliquente. Coloquei em causa a nossa avaliação da situação, pensando que talvez fosse exagero nosso.
Mas, depois de pensar e voltar a pensar, não é. O nosso filho passa um dia inteiro de trabalho com aquelas pessoas e cabe-lhes a elas vigiarem-no para que o possam ajudar no seu desenvolvimento e evitar lesões física e psicológicas. Cabe-lhes a elas falarem conosco diariamente sobre as dificuldades que sentem com ele e não despacharem tudo com um tout va bien. Esperamos uma confirmação para esclarecer (o que eu esperam que sejam) estes equívocos esta semana. Até lá, amaldiçoo o facto de não poder estar em casa todos os dias, mesmo que isso me roubasse a minha vida. Imaginar esta negligência diária dói-me muito mais.