março 29, 2013

Caca et cocó: o charme de ver crescer um bilingue *

"It's clear that I will have to compromise between the Amercian identity I'd like to give Bean and the French one she is quickly absorbing. I get used to her calling Cinderella Cendrillon and Snow White Blanche-Neige. I laugh when she tells me that a boy in her class likes Speederman - complete with a gutteral "r"- instead of Spider-Man. But I draw the line when she claims that the seven dwarfs sing "Hey Ho", as they do in the French voice-over. Some things are sacred."


O meu maior medo quando decidimos emigrar era apenas um: será que o Vicente se vai adaptar? Como pode ele ir para uma creche ouvir Francês ou Luxemburguês se ele ainda nem sequer domina o Português? Será que vai perceber o que lhe pedem? Será que vai brincar? Será que vão entender quando ele tiver fome, sono ou frio? Tudo o resto me parecia mais ou menos fácil de encarar naquela altura e, mesmo ouvindo toda a gente que me garantia que os miúdos se adaptam melhor, eu tinha dúvidas.

O Vicente foi para uma creche francófona. Apesar de algumas funcionárias serem portuguesas, fala-se sempre Francês. Talvez fosse benéfico ter ido para uma creche onde se falasse Luxemburguês mas a necessidade falou mais alto. Até as funcionárias portuguesas se dirigem a nós em Francês e não há nada a fazer. A maior parte dos meninos que estão na creche com ele são filhos de pais portugueses, brasileiros ou cabo-verdianos - não a escolhemos por isso mas acabou por acontecer. A maior parte fala outra língua em casa mas Francês durante muitas horas diariamente.

Nós falamos Português em casa. Não podia ser de outra maneira, seria uma traição vil às nossas origens. Eu já fiquei triste porque o Vicente nasceu em Lisboa e não é alentejano mas agora ter um Luxemburguês em vez de um menino que nasceu em Santa Maria dos Olivais era um bocadinho demais. Só que o Francês domina a maior parte do seu dia e de repente ele estamos no banho e ele diz que tem "três voitures" na banheira ou estamos na pintura e ele chama os lápis pelas suas cores ("Noooir, marron, orrrange...") e eu fico sem saber o que dizer. Algumas vezes tento dialogar com ele em Francês mas ele, talvez por um mecanismo de defesa, recusa e mantém-se na sua língua materna. É como se ele pudesse saber qual é a diferença e soubesse exactamente quando se deve usar uma e outra.

Apesar das facilidades que os Portugueses podem sentir aqui, nós queremos que o nosso filho se possa integrar facilmente, que seja aceite e que respeite os costumes do país onde escolhemos viver. Para ele tudo é tão natural, tão simples que não será um problema. Mas este ano (ou no próximo, assim decidam os serviços comunais), ele começará com o Luxemburguês. E depois, quando chegar a escola primária, com o Alemão. E, mesmo admirando a capacidade que o meu filho tem de se adaptar a tanta mudança, às vezes penso se isto não são coisas a mais. E penso que se calhar vai chegar um dia em que o Português já não lhe diz nada e que, mais cedo ainda, o meu Francês não vai chegar para o acompanhar. Tenho medo de perder este comboio, acho que é isto. Ele vai puxar por mim (por nós) mas eu fico sempre com medo de não chegar. Pelo sim pelo não, temos uns dicionários pela casa e umas gramáticas à espera de serem usadas. Depois de o ouvir contar até dez também em Inglês, já começo a pensar se aquela cabecinha não vai dar de si. Até lá, derreto-me toda quando o ouço dizer "Oh não, o comboio a parti" ou "Mamã, les pantalons!". É metade orgulho cego de mãe e metade de alguém que pensa que algum dia vai ser Francês a mais.

* é mais multilingue mas eu nem sei se esta palavra existe e ainda estou para ver como vai ele desenrascar-se com as outras.

março 21, 2013

Luxemburgo, ano zero: uma breve declaração de amor



Caramba, já passou um ano!

É incrível como às vezes nem damos pelo tempo passar. Por um lado, parece que foi ontem que levantei voo do Porto, com um filho e uns quilos valentes de bagagem às costas para chegar aqui. Por outro lado, sinto que vivo aqui há muito tempo e não posso dizer que me sinto mal nesta nova vida.

Nunca teríamos escolhido o Luxemburgo como primeira opção. Não sabíamos o suficiente sobre o país, apenas que era muito pequeno e estava cheio de Portugueses e era tudo. Não tinha qualquer ideia sobre a geografia, sistema político ou meteorologia. Só que, no meio de tantas candidaturas, foi daqui que chegou a oportunidade que em Portugal teimava em aparecer. Foi o Luxemburgo que nos escolheu a nós, é como gosto de pensar. Durante uns tempos, a ideia de emigrar parecia só uma coisa longínqua e maluca, que nunca ia chegar a acontecer. Até ao dia em que pisámos o Luxemburgo pela primeira vez.

Há um ano atrás, cheguei com um tímido dia de Primavera, cansada da viagem e triste pela vida que deixava para trás mas com muita esperança no que aí vinha. Os primeiros dias foram muito cansativos, tratando de limpar a casa, arrumar toda a nossa tralha, criando rotinas e hábitos. As idas ao supermercado ainda eram sinónimo de deslumbramento, sem saber onde procurar as coisas e extasiada com as escolhas tão diferentes. Ainda me espantava com o Português que se falava em todo o lado e estava até presente nas repartições públicas, nas antenas parabólicas portuguesas espalhadas por todos os bairros, pelas pessoas que reconhecia como portuguesas mesmo antes de as ouvir falar.

Depois veio o espanto com a eficácia dos serviços, com os baixos tempos de espera, com a clareza e transparência no tratamento dos expedientes. A seguir a admiração nas viagens que começavam perto da capital e nos levavam a outros países em vinte minutos, a possibilidade de pisar três países quase sem sair do mesmo lugar, as compras que se podiam fazer além fronteiras. Chegou a sensação de familiaridade e beleza que sentimos pelo verde dos campos no Verão, as cores exuberantes das florestas no Outono e a pureza da neve nos últimos meses. Esquecemo-nos de como era sobreviver apenas para passar a viver sem luxo mas com tranquilidade. Ganhámos uma casa maior, comprámos o primeiro carro das nossas vidas, trabalhamos mais mas com um salário mais justo. Pagamos muitos impostos mas sentimos o nosso dinheiro a contribuir para o sistema de saúde, para a educação gratuita, para o desenvolvimento da nossa comunidade. Sentimos que poder governar melhor é uma possibilidade real e que a classe política aqui não está tão distante dos seus eleitores.

Aprendemos a gostar de salsichas, feiras populares e mercados, flores e hortas de varanda, aquecimento central e neve de vez em quando. Melhoramos as nossas capacidades linguísticas, ficamos espantados com o civismo da maior parte das pessoas, sentimos que vivemos numa sociedade mais tolerante. É o país perfeito, ideal? Claro que não, nem que seja por lhe faltar um pouco da nossa espontaneidade, do nosso calor, da nossa capacidade de desenrascanço. Mas é certamente um país mais justo do que aquele que deixámos para trás.

Dói ter deixado a família e os amigos para trás. Dói privá-los do crescimento do Vicente, privar-nos da sua companhia, conseguir enfiar todos os compromissos na única visita do ano, não podermos estar à mesa com todos, passear na Estrela e em Paço d'Arcos em dias de calor, perder tantas ocasiões especiais onde só queríamos poder dar-lhes um abraço. Se calhar muitos pensam que, exactamente por isto, o sacrifício não compensa. E em muitos dias eu pergunto-me se realmente é assim mas a resposta não sei qual é. A única coisa da qual tenho a certeza é que tínhamos de vir, era preciso mudar de vida, era preciso encontrar outro poiso onde lutar não significasse apenas um esforço inglório. Felizmente, a vida ensinou-nos a aproveitar ao máximo as mudanças, sem grandes amarguras nem ressentimentos. Por isso, se pudesse agora abraçar o Luxemburgo, estendia os braços e agradecia por nos ter acolhido e deixado começar outra vez. Afinal foi fácil encontrar uma nova casa.

março 18, 2013

DIY: mais uma macacada para o Vicente



A mais recente fixação do Vicente são os números. Como ainda usa o biberão, é vê-lo contar de 1 a 9 (as ounces marcadas) de frente para trás e de trás para a frente. Quando vemos noticiários, por exemplo, as horas estão continuamente marcadas no ecran, o suficiente para ele se levantar a correr e, com um dedinho espetado, gritar quais são os números que consegue ver. Lembrei-me que era engraçado que ele pudesse jogar com os números como lhe desse na telha e surgiu-me uma ideia.

Desde que fui mãe, descobri esta paixão assolapada por fazer coisas à mão. Já o disse várias vezes, não tenho muito jeito com os trabalhos manuais mas ele ainda me desculpa todas as imperfeições. Sinto-me feliz com os meus passatempos pré-maternidade mas criar coisas para o Vicente entusiasma-me de uma maneira muito mais intensa e desta vez tivemos a recompensa. Como não me lembrava se alguma vez tinha visto um conjunto assim numa loja de brinquedos, decidi criá-lo à minha maneira. Idealizei o formato, arranjei uns moldes e os restantes materiais e, juntamente com o paciente pai, criei um jogo do mais simples que há mas feito com todo o carinho do Mundo. É possível que, dada a natureza dos materiais, isto não vá durar muito nas mãozinhas destruidoras do Vicente mas vai dar para entretê-lo umas quantas vezes. Dá para ele ordenar os números, procurar os números iguais, adivinhar que números temos não mãos, irá dar para ele os compor também (agora só chega até ao dez mas há-de avançar). Arrumam-se as peças muito bem numa caixa de plástico, sempre à mão. Só os gritinhos de felicidade dele quando brincou pela primeira vez já compensam a tarde toda a desenhar, cortar e colar como há muito não sei via.

É a maravilha desta fase que começou há uns tempos: a interacção. Não quero ser mal interpretada - eu adorei o meu filho em bebé, muito redondo e bochechudo, mesmo chorão e a dormir mal, sempre senhor da sua vontade. Mas agora as coisas estão num nível completamente diferente: ele brinca connosco, ele exige que nos sentemos no tapete com livros e camiões, ele interessa-se por tudo. Foi muito bom cuidar dele mas agora é ainda melhor juntar a isso a curiosidade crescente, a sua empatia pelos sentimentos dos outros, todas as vezes em que lhe explicamos alguma coisa e ele parece finalmente entender. Por isso, guardo todo o cartão que me chega a casa, encho a gaveta de tesouras, colas e pincéis, fico indecisa entre aguarelas ou lápis de cera, perco-me em papelarias. Enquanto não nos faltar a imaginação, não lhe faltará com que brincar.

março 07, 2013

Emigrar (nos dias que correm)


Há quase um ano que cheguei ao Luxemburgo. Por esta altura, há um ano atrás, já sabia quando iria viajar mas ainda esperava pela viagem que mais me custou até hoje. Lembro-me de levantar voo do Porto, lágrimas nos olhos, sem saber quando iria voltar a pisar o meu país. Não demorou muito, felizmente, mas isso era algo que eu não podia prever.

De vez em quando deixam-nos na caixa de correio um jornal português. É o nome na caixa, preciso de me lembrar sempre que me pergunto como sabem que vivemos aqui. Em quase todas as edições, o mesmo tema: a emigração portuguesa para o Luxemburgo e, especialmente, os conselhos para não escolherem mais este país. Fico sempre um pouco deprimida com as histórias que contam e com a perspectiva com que retratam as pessoas que escolhem vir. Não há trabalho, podemos ler, e as pessoas devem pensar duas vezes antes de se fazerem ao caminho. É uma visão um pouco limitada do que é ser emigrante hoje em dia, porque partem do princípio que quem vem tem pouca formação e irá depender maioritariamente das agências de trabalho interim (uma praga aqui, ao que parece). Esquecem-se que hoje também saem do país outras pessoas, mais preparadas, mais viajadas, com mais formação e experiência fora do país.

Sei que há muita gente se interroga se deve sair ou ficar em Portugal. É claro que cada um terá a sua listas de prós e contras, cada um sentirá a crise e as dificuldades à sua maneira mas eu arrisco dar uns conselhos:
  • escolham bem o país para onde querem refazer a vossa vida. Preparem-se para as agruras da meteorologia, a falta de mar, as distâncias que tantos dias para intransponíveis e tentem perceber que serão sacrifícios por um bem maior;
  • não se estabeleçam num país onde não dominem a língua. Apesar de a língua oficial aqui ser o Luxemburguês, todas as tarefas administrativas, burocracias e rotinas diárias podem ser feitas ou em Francês ou em Alemão. Eu preferia viver num país anglófono mas sei o suficiente para poder funcionar em quase todo o lado;
  • tenham em consideração também a área onde querem trabalhar: não faz sentido instalarem-se num país onde o vosso mercado de trabalho esteja estagnado;
  • se possível procurem outras pessoas que tenham feito o mesmo percurso e peçam algumas dicas sobre o que precisam para chegar, para se registarem, para se estabelecerem. Há um alívio enorme em saber exactamente que formulários preencher, que guichet escolher, os horários das repartições públicas ou os documentos a apresentar;
  • não dependam demasiado dessas pessoas: provavelmente elas têm já o seu trabalho, a sua rotina e será difícil procurarem uma casa por vocês;
  • saibam exactamente quais são os vosso pontos fortes e como será a melhor maneira para venderem o vosso currículo: no nosso país, isto já é vital mas longe de casa é ainda mais importante convencer um entrevistador de que vocês são a pessoa certa para o lugar;
  • tentem não depender de agências para encontrar um emprego. O ideal seria encontrar um emprego antes da partida mas, à falta disso, apostem nas candidaturas online, componham o vosso perfil e estabeleçam uma rotina diária de procura de emprego;
  • aceitem com um sorriso tudo o que o novo país vos quiser dar. Para mim, os primeiros tempos de emigrante são de uma fragilidade gigantesca e por isso é ainda mais importante estar disposto a transformar.
É claro que cada caso é um caso e que cada saída tem na sua base uma história. Da mesma fora, as histórias nem sempre terminam em sucesso, pelo que é obrigatório não desanimar e enfrentar os obstáculos e as dificuldades apenas como uma parte obrigatória do caminho. Na maior parte das vezes, conseguimos depois olhar para trás e rir desses momentos. Nestes últimos tempos, ouvi muitos comentários de pessoas que acham que a coragem não é sair mas sim ficar em Portugal. Eu cá acho é que falta de coragem é não seguirmos o caminho que sentimos como nosso. Por isso, ficando ou partindo, interessa é lutar e isso podemos fazer em qualquer lado.

março 02, 2013

Ainda mais trabalho - agora a partir de casa


Desde que comecei a trabalhar que sempre o fiz em fins de semana e feriados. Em alguns sítios, era esporádico, noutros obrigatório. Perdi a conta às vezes que não saí com amigos porque no dia seguinte, feriado, trabalhava, às viagens que perdi por não ter um fim de semana. Mas aceitei sempre isso: faz parte do tipo de profissão, num mundo que exige que tudo esteja a funcionar a toda a hora, sem interrupções nem descanso, sem parar para respirar. Só aqui no Luxemburgo, apesar de ter alguns fins de semana de prevenção, tenho os feriados oficiais livres. Isto dá sempre jeito: quando se é solteiro, sai-se com os amigos ou simplesmente dormimos até mais tardes; quando se tem filhos, aproveita-se para passar tempo com eles porque as semanas passam a correr.

Só que agora descobri outra modalidade: trabalhar no fim de semana mas a partir de casa. Não vou negar que há um grande conforto nisto e, mesmo que tenha de acordar bem cedo, pelo menos não tenho que largar o pijama e fazer uns quantos quilómetros no frio. Mas há só um pequenino problema: um filho que é cego por mim. Se eu estou em casa mas não estou com ele (no quarto, por exemplo) grita e esperneia à porta porque me quer ver, nem que seja só para me abraçar. Por isso, isto exigiu um plano estratégico para o retirar de casa e minimizar os impactos no trabalho: como tenho que estar sempre disponível, não posso ter um caganito de dois anos aos gritos pela casa ou a querer colo à força. Pai e filho despachados para o parque e boa parte de manhã sozinha a trabalhar. A hora do almoço, desta vez, trouxe um bónus e o menino deixou-se dormir antes sequer de almoçar. Três horas (!) de sono depois e já o trabalho tinha terminado e agora o meu tempo era dele.

Eu cá safava-me bem com este tipo de trabalho. Dá para limpar o pó entre chamadas, estender uma máquina de roupa enquanto se resolvem um ou dois problemas, trabalhar tranquilamente num sítio que nos é familiar. Acho que me habituava a isto, era o melhor para conciliar trabalho com o outro trabalho que se faz em casa e com a vantagem de não ter que ver pessoas (não me levem a mal, pessoas, mas algumas de vocês fazem-me desesperar e assim paga justo por pecador...). E assim eu tenho crescido, mais apegada a casa e sempre um pouco mais anti-social. Amanhã há mais.