Quando em 2009 meti na cabeça que havia de fazer o mestrado, não podia imaginar a louca e imprevisível sequência de acontecimentos que me trariam até onde estou hoje. Era o que queria fazer, era na verdade o que precisava de fazer para deixar de me sentir operária sem qualificações e passar a ser uma (talvez inútil) mestre na área da comunicação. Comecei o mestrado tão bem, cheia de energia porque a) estava a tomar o futuro nas minhas próprias mãos e b) porque tinha esperança que esta escolha me fizesses mudar de vida. Só eu sei a satisfação que senti ao comprar material escolar, cadernos novinhos por estrear, páginas de conhecimento novo para estudar e sublinhar.
Só que ainda mal tinha começado o segundo trimestre e já eu estava de esperanças. Custava-me um bocadinho dividir os dias entre o trabalho e a faculdade, precisava de sentar-me sempre perto da porta em cada aula para garantir que os enjoos não me faziam vomitar em plena sala. Mas a coisa ia-se fazendo. No final do ano já tudo era diferente: eu quase me arrastava entre Picoas e a avenida de Berna, já cheia daqueles incómodos do terceiro trimestre de gravidez (a ciática então dava cabo de mim!), rezando que chegassem depressa as onze da noite de cada quarta-feira. Mas a coisa ainda se fazia.
No princípio de Setembro, ainda imbuída de algum optimismo e sem a menor ideia do que significa cuidar de um recém nascido, ainda fui à faculdade largar mais mil euros para escrever a tese. Achava que havia de conseguir conciliar as coisas, que o miúdo havia de me sair calminho, que tinha tudo para ser uma super-estudante. Só que enganei-me e de que maneira! O menino sofria com cólicas, berrava com cólicas, não suportava que me afastasse dele. Enquanto ele ia crescendo, as minhas horas de sono diminuíam a olhos vistos e levavam consigo a minha concentração, disponibilidade para analisar coisas mais complicadas que um rótulo de fraldas. O material continuava lá e eu até me informei de possíveis prolongamentos de prazos mas, não sei bem quando, chegou o momento em que percebi que não ia conseguir: o pequeno ser que tinha dado à luz consumia toda a minha atenção e, mais ainda, todas as minhas capacidades intelectuais que ainda hoje recuperam paulatinamente. Eu sabia lá que isto me ia afectar assim, que ia deixar de tudo para passar a ser uma mãe e que não saberia viver de outra forma durante muito, muuuuuuito tempo. Mil euros para o boneco e um grau académico que nunca obtive - foi este o resultado.
O problema é que os livros vieram atrás de mim para o Luxemburgo, de maneiras que tenho que olhar para eles todos os dias, todos os dias sem excepção, assim que saio da cama. Minto, mesmo sem sair da cama, o que é uma verdadeira tortura. É como se tivesse que olhar o meu falhanço todos os dias, como se não pudesse passar um dia sem sentir que não fiz o suficiente. Não sei o que fazer-lhes. Algumas vezes apetece-me pegar neles e devorá-los, sublinhá-los e enchê-los de post its e escrever uma tese só porque sim. Na maior parte dos casos, apetece-me fechar os olhos e esquecer-me que um dia foi esse o meu plano. A vida é uma coisa tão estranha: num dia meto na cabeça que havia de voltar à faculdade, noutro não entendo de onde me nasceu tamanha força de vontade. E espero que tanta constatação de falhanço, de insatisfação com o ponto onde cheguei se esteja a reunir num tornado figurativo que há-de aproximar de mim sem aviso e me lance exactamente no seu centro e me devolva ao Mundo, centrifugada, exausta mas com uma ideia clara de onde ir a seguir. Ou que de repente eu possa ser corajosa. Encostar-me aqui é que não.