junho 24, 2013

A tese que ficou por escrever



Quando em 2009 meti na cabeça que havia de fazer o mestrado, não podia imaginar a louca e imprevisível sequência de acontecimentos que me trariam até onde estou hoje. Era o que queria fazer, era na verdade o que precisava de fazer para deixar de me sentir operária sem qualificações e passar a ser uma (talvez inútil) mestre na área da comunicação. Comecei o mestrado tão bem, cheia de energia porque a) estava a tomar o futuro nas minhas próprias mãos e b) porque tinha esperança que esta escolha me fizesses mudar de vida. Só eu sei a satisfação que senti ao comprar material escolar, cadernos novinhos por estrear, páginas de conhecimento novo para estudar e sublinhar.

Só que ainda mal tinha começado o segundo trimestre e já eu estava de esperanças. Custava-me um bocadinho dividir os dias entre o trabalho e a faculdade, precisava de sentar-me sempre perto da porta em cada aula para garantir que os enjoos não me faziam vomitar em plena sala. Mas a coisa ia-se fazendo. No final do ano já tudo era diferente: eu quase me arrastava entre Picoas e a avenida de Berna, já cheia daqueles incómodos do terceiro trimestre de gravidez (a ciática então dava cabo de mim!), rezando que chegassem depressa as onze da noite de cada quarta-feira. Mas a coisa ainda se fazia.

No princípio de Setembro, ainda imbuída de algum optimismo e sem a menor ideia do que significa cuidar de um recém nascido, ainda fui à faculdade largar mais mil euros para escrever a tese. Achava que havia de conseguir conciliar as coisas, que o miúdo havia de me sair calminho, que tinha tudo para ser uma super-estudante. Só que enganei-me e de que maneira! O menino sofria com cólicas, berrava com cólicas, não suportava que me afastasse dele. Enquanto ele ia crescendo, as minhas horas de sono diminuíam a olhos vistos e levavam consigo a minha concentração, disponibilidade para analisar coisas mais complicadas que um rótulo de fraldas. O material continuava lá e eu até me informei de possíveis prolongamentos de prazos mas, não sei bem quando, chegou o momento em que percebi que não ia conseguir: o pequeno ser que tinha dado à luz consumia toda a minha atenção e, mais ainda, todas as minhas capacidades intelectuais que ainda hoje recuperam paulatinamente. Eu sabia lá que isto me ia afectar assim, que ia deixar de tudo para passar a ser uma mãe e que não saberia viver de outra forma durante muito, muuuuuuito tempo. Mil euros para o boneco e um grau académico que nunca obtive - foi este o resultado.

O problema é que os livros vieram atrás de mim para o Luxemburgo, de maneiras que tenho que olhar para eles todos os dias, todos os dias sem excepção, assim que saio da cama. Minto, mesmo sem sair da cama, o que é uma verdadeira tortura. É como se tivesse que olhar o meu falhanço todos os dias, como se não pudesse passar um dia sem sentir que não fiz o suficiente. Não sei o que fazer-lhes. Algumas vezes apetece-me pegar neles e devorá-los, sublinhá-los e enchê-los de post its e escrever uma tese só porque sim. Na maior parte dos casos, apetece-me fechar os olhos e esquecer-me que um dia foi esse o meu plano. A vida é uma coisa tão estranha: num dia meto na cabeça que havia de voltar à faculdade, noutro não entendo de onde me nasceu tamanha força de vontade. E espero que tanta constatação de falhanço, de insatisfação com o ponto onde cheguei se esteja a reunir num tornado figurativo que há-de aproximar de mim sem aviso e me lance exactamente no seu centro e me devolva ao Mundo, centrifugada, exausta mas com uma ideia clara de onde ir a seguir. Ou que de repente eu possa ser corajosa. Encostar-me aqui é que não.

junho 22, 2013

Caçadora de memórias


 

 Tenho um grande defeito (entre outros) que é anular-me um pouco quando estou perto de pessoas que fazem uma coisa muito bem. Eu explico: se estou ao pé de uma pessoa com outra língua mãe e que eu até domino também, tendo a não falar muito porque sei que nunca estarei ao seu nível e precisarei de inúmeras correcções.

Isto aconteceu-me com o meu marido, um belíssimo fotógrafo amador que, além da prática, também domina a teoria mas no fundo se interessa mais por documentar o mundo à sua volta do que pelos preciosismos técnicos. Ele instalou-se na minha vida e de repente, para mim, ele era o gajo das fotografias. Na minha cabeça, não fazia nenhum sentido ser eu a fotografar, já que ele o fazia tão melhor que eu.

Isto continua a ser verdade e eu continuo a admirar a facilidade como saca todos os dias a melhor imagem da vida que construímos os três mas eu continuo a querer fotografar. Tenho o melhor professor a meu lado (ainda que a sua paciência seja muitas vezes pequenina, pequenina) para o caso de me surgirem dúvidas, tenho os meus olhos e as minhas mãos (que não sendo perfeitos, traduzem pelo menos aquilo que eu vejo) e tenho um projecto chamado Vicente.

Um projecto? Sim, pode chamar-se assim. Lembro-me dos álbuns que os meus pais fizeram para mim e para a minha irmã, até dos caracóis que me guardaram num envelope, das memórias que ainda hoje estão na nossa casa e quero fazer qualquer coisa parecida ao Vicente. Quero contar a história dele, quero que ele saiba como passava tão rapidamente duma birra por querer ver desenhos animados para um abraço cheio de ternura, enquanto me dava palmadinhas nas costas. E já o faço virtualmente mas quero que ele tenha alguma coisa em que possa tocar, páginas que possa folhear e onde descubra como gostava de carros, aviões e comboios, fotografias onde recorde os caracóis indomáveis que não sabemos de quem herdou (da avó materna ou de um tio materno, talvez). Quero construir-lhe uma memória física: a virtual também está muito bem mas a satisfação de poder ter as memórias debaixo do braço é diferente.

Se ele vai gostar ou dar valor a isto? Não sei mas acho que sim. Se não quando for um adolescente em plena idade do armário, pelo menos quando for um jovem adulto e quiser, naturalmente, perceber como chegou até ali. Faço isto para/por ele mas também para minha satisfação pessoal. A três meses de ter um filho com três anos, pergunto-me onde se enfiaram estes meses todos, onde está aquela sensação de pânico dos primeiros tempos, onde ficarão as gracinhas que aprende todos os dias. Não me chega que me fique na minha cabeça, preciso guardar tudo isto da forma mais palpável que conseguir. E por isso hei-de fotografar outra vez.

junho 16, 2013

Stickerbücher



Uma das coisas que nos preocupa sempre que falamos de viagens de avião é como vamos entreter o Vicente. Ele é muito irrequieto e fico tensa só de pensar que ele precisa de apertar o cinto pelo menos na descolagem e aterragem. Parece-me, mesmo assim, que as viagens correm cada vez melhor e ele, apesar de não entender muito bem o que se passa realmente numa viagem de avião, percebe que é um meio de chegar de A a B e também que é algo temporário.

Quando voamos para algum lado fazemos questão de levar connosco todas a alternativas possíveis para o manter entretido o máximo tempo possível. A minha escolha preferida são os livros de autocolantes porque são do mais simples que há e porque ajudam a estimular-lhe a imaginação. Costumamos criar as cenas juntos, eu retiro os autocolantes e ele normalmente cola-os todos em cima uns do outros. Às vezes isso irrita-me um bocado mas quem sou eu para ditar esse tipo de coisas? Depois, o divertimento até é a dobrar. É que o Vicente noutros tempos livres adora abrir os livros e descolar e rasgar as cenas que já compôs... Mãe, Pai, agora percebo quando vocês me diziam que nada durava muito nas minhas mãos!

junho 14, 2013

(Constante) Insatisfação

Não é segredo nenhum que todos os empregos que fui tendo até ao dia de hoje não são mais do que maneiras de ganhar dinheiro. Sei perfeitamente que preciso de trabalhar para viver (especialmente depois da responsabilidade acrescida que significa ter um filho), tenho-me aguentado sempre muito bem mas empregos de sonho? Não me parece. Claro que também sei que pessoas que fazem aquilo que gostam se contam pelos dedos de uma ou duas mãos mas elas existem e, mais do que isso, tenho visto o seu número a aumentar muito.

É preciso dizer que não tenho nenhuma vergonha do meu trabalho (corrente ou passado) como boa gente que vou encontrando por aí e que, digamos, embeleza os seus currículos com funções e experiência que estão muito longe da verdade. Sou daquelas pessoas que limpava escadas na boa, desde que isso fosse o necessário para poder viver dignamente e sem grandes sobressaltos de consciência. Não é isso que almejo mas não me sentiria muito constrangida se um dia a coisa se desse. Mas isto não significa que gosto de fazer qualquer coisa que me apareça à frente ou que não tenha ambição. Em todos os empregos que tive até agora olhei sempre um pouco mais à frente do que a minha posição do momento e sempre trabalhei para melhorar, eliminar os meus pontos fracos na medida do possível, ser a melhor. Se consegui ou não, isso são outros quinhentos.

Só que já tenho trinta e três anos e não faço aquilo de que gosto. Tenho trinta e três anos e normalmente sinto-me uma peça insignificante no meio de uma estrutura gigantesca e insensível, sinto-me como uma máquina de fazer dinheiro sem que isso traga nenhum bem ao Mundo. Nos melhores dias, eu entendo que todas as profissões são necessárias e, dentro de cada estrutura ou organização, farão sentido. Mas eu gostava de sentir que o meu trabalho é mesmo importante para alguém. E, talvez mais do que isso, eu gostava de poder encontrar a resposta mais importante: o que é que me faria mais feliz? 

Tenho a certeza que não é ser mão de obra barata, dias cheios de tabelas de Excel, conceitos tão abstractos e obscuros para mim que me demoram uma eternidade a compreender. Gostava de trabalhar com as minhas mãos, as minhas ideias e, acima de tudo, com o meu coração. Gostava de trabalhar fora de um escritório, longe dos horários fixos e sufocantes, livre para sentir o mundo nos seus afazeres quotidianos. Gostava de criar os meus horários, a minha rotina e de ter capacidade de alimentá-los indefinidamente. Vejo a boa gente que larga empregos para fazer o que gosta, vejo as ideias a brotar de cabeças inquietas a toda a hora e pergunto-me se seria, se serei alguma vez capaz de tão grandes actos de coragem. Calha que os outros acreditam mais em mim que eu própria, só que isso não empurra para lado nenhum. Então, espero pacientemente o dia em que vou acordar e saber exactamente qual é o meu lugar na vida. Entretanto, amaldiçoo a minha falta de coragem e, acima de tudo, de estratégia e de determinação. Eu sei que ninguém pode fazer nada por mim mas um dia hei-de saber como começar.

junho 13, 2013

(Regressar)



(Voltar ao Luxemburgo depois da meteorologia amiga que encontrámos em Lisboa é mais do que difícil, é uma verdadeira tortura. É como se o Inverno aqui nunca acabasse, de cada vez em que se vislumbra um raio de Sol logo se apressam a chegar nuvens de todos os tamanhos, feitios e quantidade de água, acompanhadas por um vento violento para qualquer altura do ano mas, possa, o Verão é daqui a sete dias e continuamos nisto. Mas não é só o cinzento eterno que dói: estar em Lisboa e fingir, literalmente, durante uma semana que aquela era ainda a nossa casa não podia trazer bons resultados. Lembrámo-nos que sentimos falta de tantas, tantas coisas que o fim dos dias foi com um balde de realidade gelada e interminável. Enquanto escrevo estas palavras olho peça janela e vejo a chuva insistente que torna as hortas dos vizinhos portugueses mais viçosas mas suspiro pelos azulejos da rua do Jardim à Estrela. Às vezes, estar aqui é de uma solidão tão imensa que parece que a garganta se nos entumesce até não podermos respirar, é como se nos olhássemos de fora do corpo e víssemos três pessoas a tentar funcionar em território hostil, alternando os dias de agradecimento por uma vida que melhorou de verdade com os dias em que o que deixámos para trás é milhões de vezes mais importante. Não me digam que a escolha é nossa, eu sei, eu lembro-me disso todos os dias e há muito que aceitei viver com ela mas não é isso que me impede de nos sentirmos deslocados, pequenos e desprotegidos - de desejar secretamente voltar, ao mesmo tempo que sabemos que por agora o nosso lugar será aqui. E todos os dias aprendemos a viver sem olhar para trás, a depender apenas de nós mas a tentar manter os laços que deixámos tão longe e tão frágeis. Se calhar ser emigrante é mesmo isto, são duas pessoas no mesmo corpo, se calhar uma tomou a cabeça e a outra ficou-nos com o coração, reinando sobre tudo em dias distintos. Tenho saudades e digo-o em voz alta, sem vergonha, sem pudor, sem medo de ser julgada. Posso ter aprendido a amar o Luxemburgo, a deslumbrar-me com os seus bosques cerrados, a gabar-lhe a justiça e organização, a sentir que cresce uma casa assim mas não é isso que me faz esquecer a nossa família, as minhas pessoas, o património tão rico e tão sub-aproveitado, a calma mesmo em tempos tão difíceis, a vida que gostava de ter no meu país. Olho pela janela e a chuva abrandou um bocado, como que a mostrar-me que até aqui há um silver lining. E depois lembro-me do Steve Jobs a dizer que os pontos se unem é olhando em frente e que mesmo as más decisões/os acontecimentos menos positivos têm uma razão de ser e enfim, tudo será o que tem de ser.)

junho 05, 2013

Lisboa



Passar férias em Lisboa, ainda por cima na nossa própria casa, tem tanto de doce quanto de amargo. Imaginar que a nossa vida ainda se faz pelas mesmas ruas, a bica bebida sempre na mesma pastelaria, o abraço do nosso filho aos senhores do café, os vizinhos que quase não se lembram de nós, o dono da loja de animais que se espanta com o tamanho dele, o mesmo jardim exuberante e cheio de vida que deixámos para trás, olhar o corredor onde este menino começou a andar - tudo custa e, ao mesmo tempo, conforta. Depois ainda temos os amigos que se desdobram em atenções que nem sabemos se merecemos, temos as praias quase ali, o tempo que se esforçou para nos receber de céu bem azul, os sons e as ruas da cidade que nunca esquecemos, todas as coisas que queremos ainda ver, como que para garantir que não se apagam da nossa memória. Estar em Lisboa é a melhor e a pior coisa que nos acontece esta semana, é sentir outra vez o que perdemos quando decidimos ir, é imaginar como seria se o caminho fosse outro, é sonhar como seria se pudéssemos regressar já. Só que não podemos e por isso afogamo-nos em cheiros a sardinhas e a Tejo, decoramos paredes e últimos andares banhados pelo Sol, repetimos os hábitos de uma vida que já não existe a não ser nas nossas cabeças. E durante uma semana é tudo Sol, é tudo tempo para nos lembrarmos que, apesar de sermos do Mundo, é aqui que pertencemos e esperar que um dia, não demasiado tarde, possamos ainda voltar.