Eu gostava de escrever um texto muito bonito e inspirado sobre a minha casa mas calha que não tenho apenas uma. Gostava que a minha casa fosse organizada, limpa e decorada como nas revistas e blogues da moda mas a que tenho agora está sempre a um curto passo do caos.
Primeiro existiu a casa de Portalegre. Existiu não, ainda existe e ainda bem. Não saberia o que fazer sem ela. Aliás, sem elas, que as casas das minhas avós são também as minhas casas. Entre as três, cresci, sempre com o gigante luxo de ficarem apenas a minutos umas das outras. Ao contrário de muita gente que conheci, sempre tive os meus avós na minha vida e não imagino como seria não os ter. Em cada uma delas, memórias tão doces quanto ríspidas: a minha avó a ralhar com o meu avô só porque sim, o meu outro avô a dizer-me que nunca mais poria os pés naquela casa se saísse naquele instante, os meus pais aturando a música em altos berros e os concertos que dei no quarto. Fiz-me pessoa em todas elas e delas sinto a falta. O meu medo, o meu grande medo de as ver desaparecer é perder também eu as origens e não ter mais razão para regressar ali. As minhas casas têm fotorgrafias minhas e da minha irmã nos móveis e nas paredes que começam a dar lugar às do meu filho. Deve ser a isso que chamam renovação.
E um dia, depois de passar por meia Lisboa, comprei uma casa num bairro que não conhecia. Tinha adorado o Alto do Pina, sofrido pela Praça do Chile, sonhado em Benfica, perdido o Norte na Penha de França, tinha-me isolado em Telheiras e acabei na Lapa. Que é hoje Estrela, ou qualquer coisa assim. Acabei na casa que desejei ter na primeira vez que a vi e disse ao senhor "Por favor, não coloque nenhum anúncio, eu fico com ela!" e ele acedeu. E ela tornou-se minha, num dia que lembro como cinzento na sede do banco, com vista sobre a Praça de Espanha, eu a enganar-me ao escrever o montante no cheque, envergonhada pela minha ingenuidade e nervosismo e de repente dona de uma casa! Um feito, pelo menos para mim. Um abrigo, uma toca num prédio quase a cair de velho, onde os meus vizinhos chamam o filho nas escadas para o jantar, onde se ouve gritar pelo Sporting e pelo Benfica com a mesma intensidade. É a minha casa, a mesma que viu a minha gravidez e o meu despedimento aos sete meses, onde o Verão era impiedoso mas onde o vento a fazer bailar as cortinas em tardes amenas tudo fazia esquecer. A minha casa, cujo cheiro me descansa assim que abro a porta, que vive agora fechada, sempre à minha espera na penumbra dos dias lisboetas que tanta falta me fazem.
E agora a minha casa luxemburguesa, onde ganhámos um quarto a sério e uma casa de banho onde cabe mais do que uma pessoa. A casa onde o meu filho me pediu pela primeira vez na sua curta vida para dormir e onde anseio chegar todos os dias. Não é uma casa de revista, não consigo fazer desaparecer todos os carros e tractores e autocarros da cozinha, casa de banho e sala. Há dias em que literalmente todos os pertences do miúdo estão espalhados no chão do quarto, como é o caso de hoje. Mas é o sítio onde me apetece estar nos meus dias livres e onde preciso deitar-me no tapete para que o miúdo faça de mim um cavalo, onde me deito e posso ver o céu, onde tento não matar algumas plantas.
Ter o coração assim dividido é custoso mas é impagável poder voltar a cada um destes cantos quando posso, quando as férias me deixam, quando o tempo chega para dizer olá. Acho que em cada uma delas sinto a falta das restantes e nelas ouço também os ecos do meu passado. Nelas posso caminhar às escuras sem tropeçar e regressar, se a vida me quiser empurrar assim.
* que é exactamente o tema da Granta que fui hoje, finalmente, levantar aos correios.