fevereiro 26, 2015

Amália

O teu avô V. tinha razão quando disse que havias de chegar com a mudança de lua. Sem que nada o pudesse prever, ontem decidiste que era hora de nos vires conhecer para meu alívio e nossa alegria!

Eu sabia que os segundos eram mais rápidos mas não contava com isto: contracções a começarem lentas perto da uma da manhã, a deixarem-me de rastos perto das quatro, a bolsa de águas que pude sentir rebentar. Fomos os três (tu ainda na minha barriga) ensonados e cansados para o hospital. O teu pai tinha instruções para não falar comigo, o teu irmão foi percebendo pelo caminho. Foram os dez minutos mais longos da minha vida, já perdida na dimensão infinita da dor que não podemos controlar, só esperar que passe. No hospital, o silêncio e a penumbra, nenhuma sala de parto ocupada sem ser a nossa. As parteiras ajudaram-me como podiam a libertar-me da roupa e a fazer as primeiras medições. Dilatação mais que suficiente quando entrei às 4:50 da madrugada. Ao teu pai e o teu irmão foi pedido que voltassem para casa: seria um parto curto mas não se sabia exactamente quão curto. Eles despediram-se e voltaram.

Uma das parteiras informa-me que sem análises de sangue recentes não podia passar já à epidural e que teria de esperar pela toma de sangue que acabara de me fazer. Provavelmente não ia ter tempo, disse ela. Não pode ser, rugi eu como um animal acossado, um rugido que subiu do mais primitivo de mim, ao mesmo tempo que lhe tentava explicar em Francês que não, eu não ia conseguir sem anestesia. De súbito, a vontade de fazer força, a qual foi incentivada por ela com todo o entusiasmo, ciente de que não teria tempo para mais nada. Um, dois, três puxões e nasces tu, Amália, frágil e de pulmão aberto, talvez assustada com a velocidade das coisas. Eu sem acreditar que tinha conseguido, a parteira a assegurar-me que sim e a dizer-me Olhe-a aqui, olhe-a aqui, mãe corajosa! Afinal, tu estavas mesmo lá.

Revejo tudo o resto, todas as horas que nos trouxeram até aqui debaixo de um véu incrível de tranquilidade e muito silêncio. Como um bebé normal, alternas os sonos curtos com a fome e com a falta que te faz o útero aconchegado e quente da mãe. És tão mais pequena que o teu irmão, que não arredou pé de ti quando te veio conhecer. Chorou quando te ouviu chorar pela primeira vez, por pura empatia e algum desespero inocente de quem ouve o bebé chorar pela primeira vez. Ele adora-te e eu não podia ficar mais contente com essa reacção, que - quero acreditar- ajudámos a preparar. O teu pai adora-te também, ainda mais por vires refazer o nosso equilíbrio e por ter alguém que o vai seguir com paixão.

E nós? Bem, a nossa história já vai longa. Eu fui o teu colo desde o dia um e continuarei a sê-lo até que possa. Aliviada pela gravidez ter finalmente chegado ao fim, resta-me apenas decorar todos os teus pormenores e maravilhar-me uma vez mais com a lotaria que é criar um ser humano que é (aparentemente e até agora) perfeitinho. Aceito-te como o nosso segundo milagre, agradecendo à Natureza a tua chegada espontânea, natural e livre de ansiedade. Que as aventuras a quatro comecem de seguida!


fevereiro 12, 2015

Pronto, já chega. A sério, podes sair.

Eu cá, apesar de ainda não ter chegado às 37 semanas de gravidez, já não estou a achar graça nenhuma a isto. Primeiro, foram seis semanas de náuseas intensas e incapacitantes que me deixaram estendida no sofá sem vontade de fazer coisas, tratar de mim e dos miúdos, viver. Depois seguiu-se um, dois meses de tréguas, aquele pico de energia e brilho que vem com o segundo trimestre, em que tudo nos parece possível e insuportavelmente belo. E depois outra vez um golpe: síndrome sacro-ilíaco all the way até ao dia de hoje, a fazer-me sentir que, mais cedo ou mais tarde, as minhas pernas se separariam definitivamente das ancas, a fazer-me chorar de dor apenas de me levantar da cama. Depois o peso que não ajuda nada, a miúda que me faz perder o ar por dá cá aquela palha, as mudanças a descer de um terceiro andar para subir a um primeiro carregando a tralha que se acumula em três anos de vida, o sono que já não colabora - em suma, o cansaço já substituiu a maravilha de me sentir grávida.

Por isso, não desejando nenhuma desgraça nem que a miúda venha incompleta, eu digo que por mim ela podia sair já. Tipo, daqui a três ou quatro horas. E de preferência bem depressa, que seguir instruções durante o parto numa língua estrangeira não deve ser pêra doce. Vamos lá, miúda! O teu irmão canta-te músicas que inventa na hora e que só fazem sentido na cabeça dele; o teu pai arrepia-se com os teus movimentos na barriga; os teus avós querem chegar a tempo de te conhecer. E eu? Bem, eu sinto-te minha cúmplice, minha companheira de aventuras, tens-te aguentado tão bem com tanto esforço que fiz, com os voos em que quase tinha um ataque de pânico mas estou cansada, Amália. Por isso, quando quiseres aparecer, quando achares que podes trocar esse quentinho pelo quentinho dos braços que te esperam cá fora, força nisso. Ai não, espera, quem faz força sou eu. Mas vá, vem daí conhecer-nos. Naturalmente ou com ajuda mas não demores.

fevereiro 11, 2015

A meio gás

Uma das coisas mais difíceis mas mais apaixonantes de mudar de casa é criar novas rotinas. Já passou uma semana desde que estamos definitivamente instalados (mesmo que o nível de caos, desarrumação e lixo tenham atingido quantidades record) mas as coisas ainda estão a demorar a acontecer. Ainda é difícil saber onde está aquele prato ou onde guardei o esparguete, ainda estamos a tentar decidir se os móveis ficam melhores encostados à direita ou à esquerda, ainda lutamos pelos nossos rituais de volta. As divisões da casa já se vão parecendo mais conosco e menos com o apartamento vazio e frio que visitámos pela primeira vez no final de Outubro.

Uma das melhores coisas desta mudança é a localização. Embora não tenhamos mudado de bairro (essa era uma condição essencial para nós), deslocámo-nos mais para o seu interior, o que nos garante mais períodos de silêncio e estacionamento sempre disponível (ainda estamos para utilizar a garagem). As janelas são gigantes (ainda estou para perceber se os cortinados ditos normais nos vão servir) e deixam entrar toda a luz que precisamos neste país cinzento. O nosso nome está já provisoriamente na porta e no correio e já recebemos corresponência aqui, o que significa que as coisas estão a andar. Mas ainda estamos a tentar perceber quem mais devemos avisar desta mudança (acabei de me lembrar de mais duas ou três alterações a fazer) e imagino que isto ainda vá durar uns tempos.

Depois, veio uma mudança dentro da mudança e tem também muitíssimo impacto: deixámos finalmente de ter televisão. Não o aparelho em si, que continua de boa saúde na nossa sala, mas não temos acesso a nenhum canal (português ou não) de televisão. Era uma coisa que já tínhamos discutido há algum tempo e que permite, além de poupar alguns trocos, usar o nosso tempo de maneira muito mais útil e consciente (ou assim esperamos). Antes, e por uma pura questão de hábito, ligávamos a televisão assim que chegávamos a casa e muitas vezes estávamos à sua frente, comando na mão, sem estarmos verdadeiramente interessados nela mas presos mesmo assim. O miúdo ainda se chateou porque gostava dos canais de desenhos animados mas agora conseguimos que ele brinque mais e também estar mais perto dele ao mesmo tempo, sem a porcaria da televisão a distrair. Confesso que sinto falta de ver programas de culinária o dia TODO mas também pouco tempo tenho tido para parar no sofá.

Quanto a vizinhos, ainda tudo tranquilo. Em baixo, uma família de cabo-verdeanos, cujo número exacto ainda não consegui determinar. O alvoroço às vezes é enorme, muitas entradas e saídas, alguma música africana em decibéis pouco recomendáveis, mas tudo dentro de horas aceitáveis. Num dos lados, um casal de idosos cem por cento luxemburgês, do outro um senhor luxemburguês casado com uma senhora congolesa. Nas nossas traseiras, um senhor que se passeia todas as manhãs pelo seu quarto de cuecas (trusses é mais a palavra certa) e nos faz rir. Jusqu'ici tout va bien.

fevereiro 03, 2015

Nick

Talvez seja isto que significa crescer: o luxo de ter tempo e poder pensar, o prazer de dar segundas e terceiras oportunidades, ordenar e invocar as memórias que fazem de nós o que somos agora, neste preciso instante. Às vezes, sinto que me enganei sobre alguém ou sobre qualquer coisa, muito provavelmente resultado de um juízo apressado já antigo, e esse momento em que aceito o meu erro é uma satisfação em si mesmo, é uma vitória de uma certa lucidez sobre o pensamento que escapa à velocidade da luz e se instala como verdade absoluta.

Fatos de corte impecável mas antigo, os cachuchos de ouro a passearem-se sobre as teclas de um piano mais ou menos desafinado. O homem esguio que se passeia entre as sombras, que se ri de si mesmo, que procura nunca perder a memória. Os cais de Brighton e a Opera de Sidney, a mulher-musa que convoca todos os símbolos sexuais que antes não passavam de ficção, um mundo para escapar a este mundo. A escrita em golfadas, os cadernos riscados, as páginas fotocopiadas em estúdio, o tempo controlado pelos estados de alma. Uma árvore de galhos gigantes no meio de uma tempestade, como o descrevem a certa altura. Uma inesperada e insuspeita fonte de inspiração.


fevereiro 02, 2015

Dizer adeus


Com muito alívio, depois de muito esforço escadas acima e abaixo, ontem deixámos finalmente aquela que foi a nossa primeira casa no Luxemburgo. Não foi uma despedida especialmente emocional (pelo menos para mim) porque a única coisa que queria era ocupar-me em exclusivo da casa que é agora nossa, sem ter que me dividir entre limpezas e arrumações nas duas.

Mesmo assim, ver a casa vazia levou-me de volta ao dia em que aqui cheguei, depois de um dia e meio de caminho com uma carrinha Mégane (que já ia dando as últimas sem sabermos) completamente carregada com o que decidimos ser o essencial para recomeçar. Foram dois mil quilómetros feitos com um bom amigo que se ofereceu para me acompanhar nesta aventura, sem saber muito bem o que me esperava mas certa de que, fosse o que fosse, íamos com vontade de pôr mãos à obra. Depois de um mês longe do meu amor, depois de um mês em que o miúdo, na altura com quase um ano e meio, pouco reagia à voz do pai tão longe, chegar ao nosso apartamento era bastante mais que um alívio: era a certeza que as coisas se estavam finalmente a recompor.

Lembro-me de pensar que as fotografias que tinha visto não lhe faziam justiça: era maior e mais aconchegador do que o anúncio fazia crer. Tinha aquele charme das janelas que deixavam olhar o céu, a varanda que nunca chegámos a usar muito, tudo o que precisávamos para começar de novo. E foi exactamente isso que fizemos. É tão difícil conseguir uma casa (decente, num sítio decente, com uma renda decente) no Luxemburgo! Há quem não goste de alugar a estrangeiros, há quem não queira crianças como inquilinos, há quem simplesmente peça um valor irreal por um espaço exíguo - as condições multiplicam-se e complicam-se, acima de tudo. Por isso, conseguir aquela casa (naquela sítio, por aquele preço) pareceu-me sempre um pouco um milagre ou, pelo menos, um belo golpe de sorte que guardámos durante três anos mas do qual tinha chegado a hora de nos despedirmos.

Repito que saímos com o alívio de quem encontrou finalmente um sítio ao qual chamar seu. Aprendemos, à força, que aquele mito da mudança fácil porque afinal nem temos muitas coisas é mesmo só isso - um mito - e não quero mudar-me nunca mais dos próximos vinte anos. Não nos mudámos para muito longe (na verdade, apenas algumas ruas de distância), por isso não sentiremos propriamente saudades dos três anos que passámos ali. O vizinho de baixo vai certamente festejar a nossa saída (uma criança a brincar normalmente às onze horas da manhã de um Domingo era coisa para o incomodar...), as nossas vizinhas velhinhas vão sentir saudades do Vicente e eu vou recordar com serenidade os nossos vizinhos cem por cento luxemburgueses. Que as novas inquilinas façam bom proveito! Nós cá vamos continuando a dar um pouco de ordem ao caos que é despejar uma vida de uma casa para a outra. Com a vantagem que desta é que é :)