Há uma password que ainda sobrevive entre os sites que mais utilizo desde o longínquo ano de 2005. Era uma password gerada aleatoriamente e que me foi dada para o primeiro dia em que trabalhei num call center da maior operadora de telecomunicações nacionais. Não era o meu primeiro emprego num call center. Já em 2002 havia trabalhado noutro de uma operadora de televisão por cabo durante alguns meses com um único propósito: comprar o meu primeiro kit de ADSL, instalado em casa dos meus pais. A ideia de poder aceder à internet a partir de casa fascinava-me.
Então, mesmo usando esta password diariamente, nem sempre a associo a estes meses estranhos de trabalho mesmo antes de acabar a faculdade mas ontem lembrei-me. No primeiro dia de atendimento a sério, atribuíram-me um cacifo (o número 69) e um nome de guerra (Tatiana Lopes) que nunca me habituei a usar. Sempre que atendia uma chamada e me identificava assim era como se eu estivesse de fora a assistir à minha conversa com o cliente porque de maneira nenhuma me sentia confortável com a falsa identidade. A ideia era proteger-nos (não dá para imaginar a quantidade de doentes mentais ou simplesmente de gente perversa que usava as linhas de atendimento gratuito para despejar frustrações, inventar ameaças ou simplesmente gozar com quem está a trabalhar) - a mim, afastava-me também da minha verdadeira personalidade e tornava as horas de trabalho numa fantasia pouco agradável.
A Tatiana Lopes existiu apenas durante uns tempos, já que a direcção do call center decidiu que o melhor era cada um responder pelo seu verdadeiro nome - o importante era manter a nossa localização no anonimato e apenas soube de dois ou três em que clientes furiosos (não sei com quem mas de certeza que o operador que os tinha atendido era o alvo errado para toda a fúria) que estiveram mesmo à porta do prédio a tentar concretizar as suas ameaças. De resto, era pacífico atender com o nosso nome e, para mim, bastante mais natural do que encarnar alguém que não existe.
Às vezes, quando estou mais zangada com pessoas que têm a vida facilitada e que se queixam por tudo e por nada, digo que toda a gente devia começar por trabalhar num call center. Na verdade, não desejo isso a ninguém. É um trabalho tão digno como outro qualquer, atenção: é óbvio que não tenho qualquer vergonha de ter começado assim, como não teria vergonha de transformar-me numa femme de ménage se disso dependesse o bem estar dos meus filhos e, por arrasto, o meu também. Mas as condições são tão precárias e, muitas vezes, humilhantes, já para não falar dos insultos e aberrações diárias que aquelas pessoas têm de suportar. Apenas x pessoas podiam fazer pausa ao mesmo tempo, portanto, se houvesse uma emergência fisiológica, era aguentar e esperar que alguém voltasse da pausa. Não era permitido ler ou até mesmo falar com o colega do lado entre chamadas - a ideia é ficar a olhar para o ecran do computador e ter o dedo no gatilho para atender a próxima chamada o mais rápido possível. No meio das 156 chamadas que deveria atender num turno de 6 horas, conseguia ter os clientes normais com dúvidas reais, os desocupados com demasiado tempo nas mãos, as mulheres controladoras a quererem saber o saldo dos maridos, as crianças que esgotavam 3000 sms num espaço de um par de horas, os doentes mentais a precisarem de um psicólogo, os que se identificavam como Dr. X quando lhes perguntava o nome, os que queriam apenas conversar. Tinha até muita sorte: afinal não era eu a iniciar as chamadas e não tinha que vender nada a ninguém, por isso sempre me considerei sortuda.
Tenho aprendido muitas coisas em todos os sítios em que trabalhei, não apenas relacionadas com a profissão mas com a vida. E desta minha experiência em ambiente de call center, a ser explorada, controlada e mal paga, retive uma lição muito simples: trata os outros como gostarias que te tratassem a ti. Operadores de call center, professores, empregados de mesa, engenheiros, mulheres da limpeza, médicos, electricistas e canalizadores, motoristas, varredores de rua - somos todos pessoas, com dias bons e dias de cão, a tentar fazer o melhor possível na profissão que escolhemos (ou que nos escolheu). Acredito naquela máxima que diz que a maneira como tratamos um empregado de mesa, por exemplo, diz muito de nós como pessoas. E faço um esforço (às vezes inglório, claro, porque nem toda a gente merece esse benefício da dúvida) para colocar-me na pele do outro e pensar que se calhar está só a ter um mau dia. Gostava de saber até quando vou manter esta fé na humanidade.
3 comentários:
Trabalhei numa pastelaria/café durante dois anos e meio, saí há menos de 3 meses. Todos os dias peço a Deus nunca precisar de voltar a trabalhar num sítio assim. Não por vergonha, por achar que não é um emprego digno (até porque de momento estou a trabalhar numa loja de roupa, que não é lá um grande upgrade profissional, ainda mais tendo em conta que tenho formação superior e ainda não consegui nada na área). Mas porque só eu sei o quão triste, deprimida, humilhada e diminuida a maior parte dos clientes me faziam sentir. Há pessoas que não valem o ar que respiram mas pensam que são melhores que qualquer outro, principalmente que todos os outros que têm empregos com o objetivo de os servir, seja como for. Se estás atrás de um balcão és um burra, que nunca estudou, pobre, sem instrução nenhuma e sem educação, uma pessoa que serve unica e simplesmente para os outros usarem e abusarem. Era isso que sentia da maior parte dos clientes e depois, ainda por cima, era explorada, mal paga e trabalhava que nem escrava todos os dias a horas indecentes.
Nunca, enquanto viver, quero voltar para um emprego assim. Claro que se for disso que dependa a minha sobrevivência ou a dos meus, voltaria de bom grado; mas tendo outras opções de escolha, nunca. Só eu sei como a minha autoestima e o meu bem-estar físico e mental sofreram nesses dois anos e meio.
Gostei mt das tuas reflexões sobre os call centers. Eu sou sempre educada com quem me atende mas agora passarei a ser simpática... Afinal pelo que dizes é um trabalho duro!
Bjis
Tens razão, todos deviam passar por um contact center seja na vertente inbound ou outbound.
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