A minha madrinha acabou de deixar a minha casa com a sua prole (curta, ainda, mas com mais um elemento encomendado, a Carmo) e eu fiquei a pensar em todas as maneiras como já olhei para ela. Um dia, ela foi o modelo daquilo que eu queria. Hoje está a anos luz do exemplo que antes foi.
Nos anos 80, a minha madrinha queria ser punk. Estudava em Coimbra, a coisa ainda fervilhava com actividade cultural, com empenho e luta constante. Era filha de um casamento estraçalhado por um homem que nunca soube estimar ninguém. Nasceu ruiva e por isso o pai chamava-lhe feia, como se alguma vez isso se dissesse a uma criança. Ela cantava à janela da casa onde morava e pedia batatas fritas a todas as pessoas que passavam na rua. Para portuguesa, era invulgar e chamava a atenção.
Estudava e trabalhava na cantina da faculdade para poder pagar o quarto da pensão cheia de piolhos que dividia com Mila, filha de retornados. Esta, por sua vez, roubava o que podia à minha madrinha, que passou a esconder o dinheiro nos livros. O curso teve que ficar a meio porque a mãe não a podia sustentar mais. É assim que ela entra no verdadeiro mundo do trabalho e deixa um curso por acabar.
Salita entre o Porto (onde ficou em casa de família), Coimbra, até chegar finalmente a Portalegre. Conhece o futuro marido e algum tempo depois muda-se definitivamente para Lisboa. O marido vem de uma família com profundas tradicões rurais, entre as quais se contam algumas propriedades no Baixo Alentejo. E é assim que ela hoje trata o seu filho por 'você'. A mulher que eu sempre admirei pelo seu sentido de independência, esforço e emancipação agora mora nas Avenidas Novas, numa casa com hidromassagens e fogões disfarçados na parede. O exemplo que sempre segui na minha adolescência esqueceu-se do lugar onde nasceu e adaptou-se à vida mais fácil. Não se esqueceu da família, que fique claro. Mas esqueceu-se da juventude e dos ideiais e da vontade de lutar. Quando penso nisto, assusto-me porque fico sempre com a impressão que somos todos iguais. Ser idealista é próprio da juventude, é um estado febril que pode ser curado com doses generosas de ascensão social e poder de compra. E assusto-me a pensar 'Quando vai chegar a minha vez?'.
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