setembro 29, 2011

Ao meu filho, pelo seu primeiro aniversário


Passam hoje doze meses inteiros desde que te tive em meus braços, passava pouco do meio dia. Ao contrário do que sempre esperei, foi uma manhã muito tranquila que culminou com um parto rápido e praticamente indolor. Já te esperávamos com ansiedade mas no fundo nem eu, nem o teu pai estávamos preparados para que fosse já. “Pai, traga a roupa do bebé”, disse a enfermeira e ambos ficámos atrapalhados com a ideia de que ias finalmente deixar a minha barriga.

Tive-te comigo, meu filho, quase sempre desde que nasceste. Admirei-te as feições delicadas mas ainda entumescidas pelo stress do parto durante horas a fio, formando na minha cabeça a decisão de te nomear o mais bonito bebé do Mundo. Muitas vezes sentia-me como se estivesse fora do meu corpo, a olhar-me de fora sem perceber que naqueles minutos tinha deixado de ser apenas uma mulher para passar a ser também uma Mãe, guardiã de um ser pequeno e indefeso mas precioso como um segredo que não partilhamos com ninguém. Fiquei aflita quando dormiste mais de seis horas seguidas, sem entender que precisavas desse descanso para absorver as primeiras sensações de efectivamente estar no Mundo e começar a fazer uso de todos os sentidos sem nenhuma protecção. Durante duas ou três noites não dormi, em parte extasiada com a tua chegada mas também determinada a cuidar de ti.

Chorei muito durante os primeiros meses, filho. De felicidade mas também de puro desespero por sentir-me tantas vezes incapaz de te aliviar as dores ou por sentir que me faltavam qualidades de Mãe. Durante esse tempo, passámos grande parte dos dias sozinhos: eu concentrada em satisfazer as tuas necessidades, tu adaptando-te ao Mundo muito, muito devagar. Mas mesmo assim, eras a nossa alegria e eras já a alegria que enchia de felicidade os teus avós, meio incrédulos por te poderem abraçar e mimar.

Separaram-nos depois, filho. O trabalho chegou e eu tinha já saudades de ver a vida lá fora. Foi bom que acontecesse assim mas eu não estava verdadeiramente preparada. Tu, como a maior parte dos bebés, adaptaste-te maravilhosamente à tua nova vida e eu voltei ao mundo do trabalho com um gigante nó na garganta e uma vontade absurda de correr para ti no final de cada dia e mexer-te e inspeccionar-te para ter a certeza que te tratavam bem. Que tristeza foi saber que passavas o dia com outras pessoas que cuidavam e brincavam contigo mas a ideia foi lentamente aceite por nós.

E agora chegaram os últimos meses, filho e o tamanho da nossa aventura cresceu exponencialmente. Passaste a dormir um pouco melhor, começaste a comer com muita vontade, tornaste-te num bebé expressivo e divertido, aprendeste a brincar e a sentar-te e a gatinhar e a ficar em pé, quiseste começar a comunicar e eu e o teu pai somos uns tontos que passam o tempo deslumbrados com as tuas habilidades, orgulhosos quando chamas as pessoas na rua, comovidos quando encostas a cabeça ao nosso ombro. Que ano, filho. Fizeste de mim uma pessoa tão diferente, obrigaste-me a informar-me mais, fizeste-me relativizar o resto do Mundo. E eu só quero dizer que te amo, que adoro dar-te um beijinho sempre que te pego ao colo e sempre que vejo a tentar mamar enquanto dormes, sempre que reclamas depois do banho, sempre que estendes os braços a um estranho no jardim, sempre apontas para as árvores e os aviões, sempre que finges que estás zangado e sempre que olho para ti penteadinho. Podia ficar aqui para sempre, filho, mas vou parar. Muitos Parabéns pelo teu primeiro aniversário e pelo nosso primeiro ano em família!

setembro 21, 2011

Uma (violenta) arqueologia das emoções


Foi como se, de repente, alguém estivesse de pincel na mão, afastando as camadas de pós ganhas com os anos, procurando a imagem mais fiel do que sentia. É um gigante lugar comum dizer que, vendo o filme, também eu me vi a crescer. Talvez a cassete inaugural da minha adolescência tenha sido o Vs, encomendado pelo Círculo de Leitores e ansiosamente esperado em casa. Antes disso, eram os vídeos gravados em VHS gastas pelas memórias que (ainda) pensava serem eternas, ao lado dos primeiros passos dos Nirvana, da descoberta dos Red Hot Chili Peppers ou de pérolas como os Lulu Blind.

Passávamos as tardes a ouvir música em rádios roufenhos: algo épico dos Metallica, seguido da barulheira dos Sepultura mas eu ficava sempre presa em coisas menos pesadas. Era a época em que os metálicos se juntavam em frente à secretaria do Liceu ou na varanda da Escola, em que se agitavam as massas nos concertos nos pavilhões, uma mistura de gangas com cabelos compridos e escorridos. A música chegava-nos a conta gotas - gravávamos de um amigo de um amigo de um amigo ou colávamos o gravador às colunas da televisão na esperança que depois se ouvisse alguma coisa. Eu era absurdamente inocente e estava perdidamente apaixonada pela imagem de alguém que nunca viria a existir, perdendo anos da minha vida a pensar que já lhe estaria destinada, como se não pudéssemos contrariar as histórias de amor mais idiotas e tivéssemos que aceitar o que alguém tinha escolhido para nós.

Depois houve o cd como prenda de Natal, aberto antes às escondidas para matar a curiosidade, a memória da primeira (e praticamente única) loja de discos que existiu em Portalegre - um espaço esconso no primeiro piso do centro comercial. E o concerto no Restelo, já com um coração completamente estraçalhado, esmagada também pela multidão que se acotovelava naquele dia de Maio. As edições dos cds eram sempre um motivo de alegria tão grande, à espera das letras e de mensagens em código que imaginaria terem sido escritas para mim.

Não quero ser mal interpretada: não tenho saudades de quem era naquela altura, naqueles anos. Muito do que vivi teve o condão de me fazer crescer mas só à custa de dias inteiros passados na cama a chorar ou do mais profundo recalcamento das coisas que me faziam sofrer. Não daria nada para voltar atrás porque crescer foi difícil, quase sempre à força, quase sempre à custa do amor e eu não sei onde fui buscar tanta vontade de ser amada, tanto desejo de romance. Nunca descreveria a maior parte desses tempos como felizes mas tenho saudades, isso sim, dos dias em que ligava a aparelhagem em altos berros e fazia do meu quarto a ponta do palco e o concerto era meu. Só não tenho saudades desse tempo porque sempre tive a sensação de que merecia melhor - eu que idolatrava, eu que esperava e perdoava as maiores falhas de carácter, eu que, paciente, esperava pela facada final.

Ver este filme ontem foi um gigante balde de água fria. A história deles é a nossa história e agora eles têm quarenta e cinquenta anos e nós já temos filhos e trabalhamos em escritórios com ar condicionado e temos as nossas contas para pagar e já não temos idade para nos lançarmos de cima de um palco sobre a multidão, mesmo que nos apeteça. Há que enfrentar a realidade: deixámos de ser adolescentes e isso doeu, mesmo sem guerras do Vietname, sem crises nucleares, sem fome. E tal como os Pearl Jam também nós mudámos e fomos fazendo concessões, esperando que não nos abandonassem pelo caminho. E tentámos ser fiéis a tudo o que esperavam de nós e ao que nós esperávamos de nós mas tivemos que mudar. Isso chama-se crescer e não se faz da noite para o dia e muito menos sem uma tristeza gigante de deixar para trás os doces anos da leveza. Há vinte anos, nascia a minha banda preferida de todos os tempos e o meu filho provavelmente nunca irá saber como são/foram realmente as estrelas do rock. Por favor, não escavem mais. A fazer fé na História, os gigantes do rock serão imortais.

setembro 15, 2011

Never (ever) look back

Hoje, a propósito de já não sei bem o quê, lembrei-me que já passou mais de um ano desde que fui despedida pela primeira vez (e última, que a crise ainda não foi tão longe). Pensei que este fosse um marco do qual me viesse a lembrar, afinal foi um processo demasiado difícil de digerir. Mas nada: nem uma pontinha de tristeza, nem uma recordação melancólica no dia trinta e um de Julho, nem uma saudadezinha a bater no peito.

É claro que me lembro das pessoas com quem passava a maior parte das horas do meu dia mas também é verdade que vou sempre sabendo das pessoas que me interessam e com quem criei maiores laços, algumas das quais se vêem hoje a braços com a mesma situação em condições ainda mais desesperantes. O dia passou sem que me lembrasse que há um ano, depois de quatro anos de trabalho e esforço, me convidavam a sair porque já não servia mais à empresa. Também não me lembrei dos dias que levei a arrumar a minha tralha, da sensação de tranquilidade de saber que ia poder viver tranquila os últimos meses da gravidez, agora longe dos colegas de trabalho que tanto me mimaram a barriguinha. E há doze meses atrás fechei a porta atrás de mim com uma barriga considerável, em pleno pico do Verão, com um estranha sensação de liberdade triste e não totalmente merecida mas também com uma disposição extremamente optimista. E este ano nem me apercebi que comemorava esse primeiro aniversário, provavelmente o único de que me iria lembrar.

Hoje, a palavra efectividade passou a valer zero para mim. Vivo os meus dias concentrada em combinar os meus resultados pessoais com aqueles que são esperados da equipa, sem sentir a pressão de ter que demonstrar esses resultados. Entendo que a desastrosa conjuntura económica em que vivemos domina tudo o que se passa nos bastidores de uma empresa e que, resultado das exigências dos mercados, o rumo das coisas pode mudar abruptamente. Acho que vejo mais longe, falo menos, tolero mais porque compreendo que progredir não é só produzir muito: é pensar o nosso trabalho, melhorá-lo, direccioná-lo para um bem maior, tentando não comprometer princípios pelo caminho. Hoje gosto menos de trabalhar em equipa apenas porque não me sinto em sintonia com muitas perspectivas de vida e com outras posturas face ao mesmo trabalho mas, simultaneamente, gosto de fazer parte do todo.

Eu gosto de trabalhar mas não sei explicar o que isso quer dizer na minha língua e muitas vezes sinto que há quem me goze por achar que devo isso à empresa que todos os meses me põe a comida na mesa. Gosto de trabalhar mas ainda me falta a coragem e os planos para fazer alguma coisa que me preencha verdadeiramente, um trabalho guiado pelas minhas paixões e idealismo. Mas todos os dias são novos dias e às vezes sinto-me estúpida por me sentir feliz quando saio de casa pela manhã a caminho do escritório. Sei que me vou chatear durante o dia e provavelmente chegar cansada mas, contas feitas, saio sempre a ganhar.

setembro 11, 2011

Coisas que deviam ser proibidas



Às sete e meia da tarde, chegávamos ao destino. Já havia quem se refrescasse numa das últimas semanas do Verão com uma cerveja de copo ou de garrafa. Os bancos estavam à porta de casa, quase debaixo do loureiro e ainda tínhamos luz do dia. Assou-se uma cacholeira comme il faut, porquinho de barro e alcóol consumindo a carne devagar. Como prato principal, uma fabulosa travessa de migas e respectivas carnes fritas - só de olhar, já nos crescia água na boca! Conversa para lá, conversa para cá e chega à mesa um vistoso cheesecake de morango em cama de salame e uma pessoa sentia-se engordar só de olhar! Terminada a refeição e mais dois dedos de conversa depois, o descanso merecido.

Três da manhã e o meu estômago quase latejava com uma digestão mal feita, enquanto eu tentava não gritar com dor. Ninguém merece.

setembro 02, 2011

Where's M.?

Quase um ano depois de ter um filho, sinto-me mais perto de quem era antes. Aquela hora depois de acordar continua a ser um dos pontos altos do dia: o banho tomado em silêncio, o som dos aviões que sobrevoam a Estrela antes de aterrar, a ausência de sirenes e buzinas, os cinco km da A5 com o mar no horizonte enquanto me volto a comover com as músicas das manhãs da Radar, aquela sensação de satisfação de conduzir livre no sentido inverso às filas de trânsito. Continuo enfiada de cabeça naquilo que faço, dedicada a fazê-lo da melhor maneira que posso e sei, empenhada em ganhar a confiança e o respeito dos outros, aprendendo diariamente mais sobre as pessoas, sendo mais tolerante ao mesmo tempo que treino o meu cinismo. Quase um ano depois de ser mãe, olho-me no espelho e é como se já encaixasse melhor nesta pele, mesmo que ainda me surpreendam todas as vezes em que chamo o Vicente de filho, como se estivesse a viver um sonho e não pudesse acreditar que trouxe ao Mundo uma criatura tão bonita, macia, cheirosa, com uns olhos que iluminam qualquer sítio por onde passe. Olho-me no espelho e vejo alguém mais experiente mas muitas vezes não me sinto mãe e sinto-me só mais uma miúda de chinelos nos pés porque os saltos altos causam-me uma espécie de urticária. Continuo a gostar de cinema, de livros, de música, de séries, de viagens, de compras mas só que muitas vezes é difícil arranjar o tempo necessário para não deixar morrer cada um dos meus hobbies. E continuo a sonhar que sou freelancer e trabalho em casa e faço o meu horário, o que me dava imenso jeito para inspirar-me nas ruas de Campo de Ourique, descansar nos bancos do jardim da Estrela, ouvir as gargalhadas do meu filho na sala às onze da manhã, cozinhar almoço e jantar sem as pressas do costume, fazer planos e escrever bilhetes de amor. Só que claro, preciso trabalhar e não me deixar afogar na maré de más notícias e crises e despedimentos e creches a abarrotar e preços que sobem e violência banalizada e gratuita e ainda conseguir chegar ao fim do dia com um sorriso e uma mensagem positiva para o meu filho (caramba, tenho um filho!). 

E então tem sido difícil reencontrar-me. Toda a paixão anterior continua cá dentro e eu continuo a sonhar com o meu príncipe encantado - só que agora ele já dorme ao meu lado e eu simplesmente não preciso procurar mais. E isso claramente sossega-me o coração, que já não se aperta com os enganos gigantes, com os enormes falhanços onde acabava sempre por me meter e já não me dá insónias nem nós na garganta - antes, faz-me sentir (e já o disse tantas vezes) uma pessoa cheia de sorte.

Está a ser bom poder regressar. Está a ser bom ler os arquivos e saber que tudo aquilo que já vivi (e consequentemente escrevi) me fez chegar exactamente aqui, sem qualquer dor nem amargo de boca nem frustração. E como a minha capacidade de ser paciente tem vindo a ser constantemente a ser posta à prova, eu não me importo de esperar. E, sabendo que nunca mais serei a mesma, eu sei que estou quase quase a chegar.