fevereiro 27, 2014

A senhora que me passa a ferro

Escrevo enquanto a dona Rosa me passa a ferro lá em casa. Nunca antes tinha tido aquilo que convencionámos chamar empregada mas também não me parece que a dona Rosa o seja. Lembro-me dos meus amigos falarem das empregadas que iam lá a casa (especialmente a da minha amiga J., que ia escondendo restos de comida debaixo do sofá) mas em minha casa quem limpava era a minha mãe. E eu e a minha irmã, inevitavelmente. Aliás, ainda hoje, tantos anos depois de sair de casa, ainda se espera que eu cumpra parte das tarefas domésticas em casa dos meus pais. Acho que para mim uma empregada sempre foi sinónimo de um luxo que não podíamos pagar mas, ao mesmo tempo, um símbolo do orgulho que era sermos nós mesmas a tratar da nossa casa.
 
A dona Rosa não é a minha empregada, pelo menos eu não a vejo assim. É uma senhora a quem eu pago, evidentemente, para que me passe a roupa a ferro e me livre do castigo que é passar a tarde de Sábado e parte de Domingo de ferro na mão. Como a nossa casa não é grande, dou bem conta de tudo o resto mas passar a ferro é que me causa uma espécie de urticária. Acresce que com as últimas mudanças e com as viagens quase todas as semanas, fico sem muito tempo para tratar do importante e vejo-me muitas vezes obrigada a escolher fazer apenas o essencial - acontece que passar a roupa não cabe nessa categoria, pelo menos na minha cabeça. Então contratei a dona Rosa, que é certamente mais velha que a minha mãe, que sobe as escadas devagar mas sempre bem disposta e que encontrei (através da sua filha) num site inglês para expatriados no Luxemburgo. Foi a única pessoa que me respondeu ao anúncio que coloquei, não precisei procurar mais. Na minha ideia, ela trataria também doutras tarefas mas quando falámos pela primeira vez, acho que tive pena de a maçar com as minhas limpezas, senti uma espécie de vergonha e acordámos que seria só a roupa.
 
Só que a dona Rosa não é só a senhora que me passa a ferro: também é a materialização da pessoa que escolheu exactamente o que quer fazer da vida. Emigrou bastante tarde, chegou ao Luxemburgo há onze anos e tinha estudado alguma coisa em Portugal. Veio, como eu, atrás do marido e deixando uma vida para trás. Chegada aqui, e com o marido já a trabalhar, interrogou-se sobre o que gostaria de fazer no tempo que lhe restava trabalhar e decidiu ser femme de ménage. Não foi por obrigação, foi porque lhe apeteceu e porque podia facilmente ocupar o tempo, ainda por cima fazendo coisas para as quais não necessita de nenhuma qualificação oficial. E enquanto as suas colegas, com menor escolaridade, se queixam do destino que lhes coube, ela transpira optimismo e a calma de quem faz aquilo que realmente queria.
 
Porque é que eu falo da dona Rosa? Porque eu também queria deixar de lado esta ideia de que é preciso é ganhar mais dinheiro e fazer antes coisas que me dão prazer, trabalhar menos e ganhar menos mas desacelerar e ser um bocado mais feliz. Para tomar uma decisão destas, é preciso ter um plano B na cabeça mas, acima de tudo, aceitar uma mudança radical na maneira como entendo o trabalho. É como se a única maneira de se trabalhar fosse a subir, a ganhar mais responsabilidade e respeito, a perder um pouco de humanidade e amigos. Fui eu que me impus essa maneira de ver, mesmo não tenho nenhum plano para ser uma mulher de carreira. Nunca fui ambiciosa a esse ponto, da mesma maneira que nunca quis ser só mãe. Só que vejo agora que vivo muito preocupada com o dinheiro - é claro, somos três pessoas em casa que precisam de sobreviver - mas que talvez pudesse aligeirar as coisas e trabalhar menos, poder levar o miúdo à escola, afastar-me de um bocado da roda viva que é fazer dinheiro ajudando os outros a... fazer dinheiro. Não sou nenhuma puritana nem anti-capitalista, não sou radical. Mas também não convivo muito bem com a necessidade de fazer mais e mais dinheiro, sem qualquer utilidade nem contribuição para o bem comum.
 
Estou lixada, eu sei. Não vou ser certamente outra dona Rosa e nem sequer consigo conceber a ideia de deixar de trabalhar num regime dito normal. Mas tenho pensado muito nisto (resultado de alguns acontecimentos recentes e de muita conversa com gente de quem gosto e que me quer bem) e parece-me que mais cedo ou mais tarde uma mudança assim será inevitável. De certa maneira, tenho um bocado de inveja do tempo dos nossos pais, em que um emprego era para a vida. Posso estar errada mas acho que as pessoas se questionavam menos e aceitavam que era assim que se vivia. Hoje, o mercado de trabalho é volátil, muito instável e as possibilidades infinitas - mesmo em tempo de crise, é-nos permitido sonhar. Só me falta descortinar que raio de sonho é o meu.

3 comentários:

Maria L. disse...

Eu, depois de dois anos a perder parte do meu fim de semana decidi ter alguem a limpar a casa. Ja vou na segunda pessoa que e muito melhor que a primeira mas mesmo assim fica muito a desejar. Acho que nao ha como um portugues/a para deixar a casa num brinco mas aqui em Dublin parece impossivel encontrar um\a. Tinha muito pudor porque a minha casa nao é gigante e porque tambem fui educada a saber tratar da minha casa. Bem, revejo-me nos dois assuntos que abordas aqui. Eu sinto muito a pressao de subir na carreira da parte das pessoas com quem convivo aqui porque todos querem subir e ter e ganhar mais. Parece que poucos entendem que eu sou feliz a fazer o que escolhi, ser Educadora de Infancia, estar na sala com as minhas criancas. Ser feliz no nosso mundinho. O salario nao é por ai alem mas eu acho que o dinheiro nao e tudo, mesmo estando emigrada.

:)

Helena Barreta disse...

Eu lamento que as exigências dos dias de hoje, no que ao trabalho diz respeito, sugue praticamente todo o tempo que, na minha opinião, deveria ser dedicado à família. Os pais trabalham horas e horas, os filhos passam os dias inteiros fora de casa, seja em colégios, escolas, a.t.l. Perde-se tanto. Nesta loucura desenfreada de ganhar muito dinheiro para permitir comprar muitas coisas, muitas delas superfulas e dispensáveis, ficam para trás, porque não há tempo, os afectos sem pressas, o tempo de qualidade e o viver com calma e tranquilidade a família.

Posso parecer e se calhar até sou antiquada, mas defendo que teríamos muito a ganhar se voltassemos a estreitar os laços familiares. Na minha geração, era raro aquele que chegava da escola e não tinha uma avó, uma tia ou mesmo a mãe em casa, até na alimentação ficámos a ganhar.

Dalma disse...

Ó Marisa, nem imaginas como a tua vida é como se fosse decalcada da da P. 3 filhos, da minha nora A. 2 filhos e da outra minha nora C. Essa com a grande vantagem de os não ter!
Que feliz fui eu e os meus 3 filhos que estávamos num raio máximo de 500m da escola, minha e deles! Mas garanto- te que não vejo saída!