Não é fácil. Não é fácil pensar que nunca mais entrarão nesta casa, que as velhas cadeiras nunca mais serão ocupadas por eles para ver quem passa e que as flores nunca mais serão regadas e mimadas como antes. A casa da minha avó está vazia de pessoas mas cheia de recordações. Acho que ela não pôde despedir-se convenientemente porque a doença já não o permitia mas sabe que não voltará a entrar aqui. E assim eu fico triste - por mim e por eles.
Temos o resto do nossos pertences na sala da minha avó. A mesma sala onde quase nunca entrava, onde a minha avó guardava as melhores peças de roupa, onde descansava a papelada do médico e algumas fotografias nossas. São caixas e caixas de coisas que deixámos para trás no imenso silêncio que é o que resta dos meus avós. Não me hei-de esquecer nunca: o retrato gigante do meu pai quando estava no Ultramar, o gato de loiça a substituir o gato que uma vez largaram em Arronches, o velho relógio a marcar as horas que sempre passaram lentas, os cortinados de renda que foram fundo de fotografias encenadas e pouco naturais, as flores e plantas que a minha avó sempre adorou com o seu jeito inato, o pote com açúcar louro que sempre guardou na gaveta ao lado do fogão, a pequena cafeteira com que fazia a mistura para os nossos lanches e que bebíamos em chávenas que eram maçarocas de milho, a cama onde me sentei tantas vezes enquanto o meu avô ainda dormia depois do turno da noite, as nossas fotografias em bebé e os nossos primos afastados e eu vestida para a primeira comunhão.
Não quero ter medo de um dia entrar lá em casa mas a verdade é que agora sinto que em breve não restará nada, apenas os fantasmas da vida que tivemos lá, enquanto crescíamos. Não me esqueço dos lanches nas escadas como se fossem piqueniques ou de entrar a custo pela varanda depois de vir da biblioteca carregada de livros. Hei-de sentir sempre o cheiro a cortiça e ver as mulheres que se param a conversar ao pé do quiosque e lembrar-me das batatas fritas que a minha avó me fazia (grossas e moles, como eu mais gostava). Eu sei que eles vivem enquanto restarem as nossas memórias mas não é a mesma coisa. Parece que com eles desaparece também a minha infância e tudo o que resta são os artefactos desse tempo numa espécie de museu. A casa da minha avó está vazia de pessoas mas cheia de recordações.