maio 27, 2015

Arqueologia sentimental


Não é fácil. Não é fácil pensar que nunca mais entrarão nesta casa, que as velhas cadeiras nunca mais serão ocupadas por eles para ver quem passa e que as flores nunca mais serão regadas e mimadas como antes. A casa da minha avó está vazia de pessoas mas cheia de recordações. Acho que ela não pôde despedir-se convenientemente porque a doença já não o permitia mas sabe que não voltará a entrar aqui. E assim eu fico triste - por mim e por eles.

Temos o resto do nossos pertences na sala da minha avó. A mesma sala onde quase nunca entrava, onde a minha avó guardava as melhores peças de roupa, onde descansava a papelada do médico e algumas fotografias nossas. São caixas e caixas de coisas que deixámos para trás no imenso silêncio que é o que resta dos meus avós. Não me hei-de esquecer nunca: o retrato gigante do meu pai quando estava no Ultramar, o gato de loiça a substituir o gato que uma vez largaram em Arronches, o velho relógio a marcar as horas que sempre passaram lentas, os cortinados de renda que foram fundo de fotografias encenadas e pouco naturais, as flores e plantas que a minha avó sempre adorou com o seu jeito inato, o pote com açúcar louro que sempre guardou na gaveta ao lado do fogão, a pequena cafeteira com que fazia a mistura para os nossos lanches e que bebíamos em chávenas que eram maçarocas de milho, a cama onde me sentei tantas vezes enquanto o meu avô ainda dormia depois do turno da noite, as nossas fotografias em bebé e os nossos primos afastados e eu vestida para a primeira comunhão.

Não quero ter medo de um dia entrar lá em casa mas a verdade é que agora sinto que em breve não restará nada, apenas os fantasmas da vida que tivemos lá, enquanto crescíamos. Não me esqueço dos lanches nas escadas como se fossem piqueniques ou de entrar a custo pela varanda depois de vir da biblioteca carregada de livros. Hei-de sentir sempre o cheiro a cortiça e ver as mulheres que se param a conversar ao pé do quiosque e lembrar-me das batatas fritas que a minha avó me fazia (grossas e moles, como eu mais gostava). Eu sei que eles vivem enquanto restarem as nossas memórias mas não é a mesma coisa. Parece que com eles desaparece também a minha infância e tudo o que resta são os artefactos desse tempo numa espécie de museu. A casa da minha avó está vazia de pessoas mas cheia de recordações.

1 comentário:

Dalma disse...

Querida Marisa, o teu post fez, pese a diferença das nossas idades, sentir tudo o que senti em relação á minha avó! Tudo o que descreves relativamente á tua meninice junto da tua é exatamente o que aconteceu comigo em relação á minha! Os jantarinhos que nos deixava fazer, o deixar-nos usar a sua máquina de costura e nunca se aborrecer por partirmos as agulhas e muito muito mais! Passados 25 anos de nos ter deixado ainda recorrentemente sonho com ela.
Como sei que a minha mãe, hoje com 95 anos lúcidos e com energia, não lê o teu blog, te digo que eu tinha muito mais amor pela minha avó do que por ela!
Sim, Marisa, compreendo em absoluto esse sentimento de teres perdido algo muito importante da tua meninice mas a vida é assim é como diz a minha filha P. isso é o tributo que paga quem amou e foi amado...