janeiro 05, 2016

Regressar ao batente

No final, tudo correu bem.
 
Eu trabalhei as oito horas e ela esteve longe de mim as mesmas oito. De manhã, quando a deixei na creche, fixou-me com um olhar que reflectia desconfiança e muita, muita hesitação. Silenciosamente, perguntava-me: quem é esta gente com que me vais deixar? Eu hesitei também um pouco na saída mas, consciente do risco dela começar a chorar e eu não conseguir mais deixá-la, saí quase a correr.
 
Tudo correu bem. Eu não tive demasiado sono, à excepção do período pós-almoço mas posso pôr as culpas na digestão. O cansaço só chegou à noite, quando me consegui finalmente sentar um bocado no sofá e dei pelos meus olhos a fecharem-se teimosamente. Ela já chegou cansada a casa. Quando me viu entrar na creche no final do dia, olhou-me com uma indisfarçável alegria e, pareceu-me, com algum alívio por ver finalmente uma cara conhecida, a falar uma língua conhecida. Estava contente, sentada a brincar com um livro e isso tranquilizou-me: consegui imaginar que ela tinha passado o dia bem sem mim e, assim, reduzir drasticamente o gigante complexo de culpa que sinto por ter de voltar à vida normal.
 
Tudo correu bem menos quando percebi que dificilmente voltará a haver tempo para desperdiçar nestes finais de dia, quando percebi que há dois banhos para tomar, uma bebé cansada e rabugenta, um menino que precisa de atenção e de contar como lhe correu o dia, um marido que dá a atenção aos dois à vez, o jantar e os almoços do dia seguinte que não se fazem sozinhos. Fiquei triste, nesse momento. Mas, ao mesmo tempo, senti-me determinada a encontrar alternativas que nos possam poupar a alguma da rotina: dar banho aos dois ao mesmo tempo, cozinhar montanhas durante o fim de semana, evitar as distracções. Vai ser possível, é nisto que acredito senão não vejo qual é o sentido de trabalharmos tanto para não estarmos com eles. Procuro truques, pequenas soluções, alternativas imaginativas e acredito com firmeza que vamos melhorar.
 
Durante o dia, senti em ondas as saudades de ser dona do meu tempo. Senti saudades do silêncio da nossa casa e do conforto de não precisar de sair. Durante o dia, ocupei-me o melhor que pude, evitei muitos cumprimentos mas recebi outras tantas boas vindas, tentei a custo recuperar um ano inteiro de ausência para concluir que isto me vai demorar bem mais do que uns dias.
 
Comecei ontem a dolorosa tarefa de entregar a minha bebé ao Mundo. De aligeirar os nossos laços, confiar em estranhos, sem poder evitar a totalidade do choque. Bem sei que os filhos, no fundo, não são nossos mas ainda está por inventar a cura para a dor que se sente em deixá-los ir. E quase me rio, que isto agora é apenas a creche. Sei que tudo é necessário para podermos avançar. E, simultaneamente, senti o alívio de poder voltar a sentir-me normal e deixar de me afundar na confusão dos dias em que o som das nossas vozes era tudo o que ouvia. Seguimos as duas em frente, que é na verdade a única opção, e crescemos juntas.

1 comentário:

Dalma disse...

Marisa, estás a ser uma mãe, como se diz em Trás-os-Montes, muito pantomineira! A tua menina fica muito bem na creche e mais uns dois aninhos, quando chegares a buscá-la ela ainda não está disposta a ir contigo!