janeiro 30, 2019

Aquela relação amor-ódio

Odeio-a. Tudo bem, não vou negar que fico sensibilizada enquanto vou a caminho do trabalho e os campos estão brancos até perder de vista e há assim um véu místico a pairar sobre a floresta que ainda fica longe da estrada. E sim, é estranhamente satisfatório ouvir aquele crunch que os nossos pés fazem sob neve acabada de cair.

Mas depois há que equipar os miúdos a rigor: tudo cheio de fatos da neve, cachecol, as luvas de lã porque nos esquecemos mais um ano de lhes comprarmos umas luvas a sério, as botas para manterem os pés secos. Há que limpar, por lei, a entrada de casa edifício e todo o passeio à sua frente para evitar que alguém escorregue e tenha um acidente num pedaço da nossa propriedade. É pegar na pá gigante e no saco de sal, trabalhar no duro mesmo antes de irmos trabalhar a sério, raspar a neve do passeio e atirá-la para onde ninguém se possa magoar e finalmente espalhar o sal por todo o lado para garantir que não sobra uma réstia de gelo. Acaba-se a limpeza suando em bica, guarda-se o material até à próxima manhã mas depois é ainda preciso limpar o carro se queremos conduzir. É preciso calçado adequado e resistente e também é preciso que nos descalcemos antes de entrar em casa, sob pena de espalhar a água e o sal por todo o lado. 

Dias de neve são dias de pegadas em todas as divisões da casa. São dias em que muitas pessoas desistem mesmo de sair de casa, embora eu nunca tenha visto nevar mais do que uns centímetros. São dias em que os engarrafamentos são intermináveis, em que se demoram horas para fazer meia dúzia de quilómetros, em que talvez tivesse mesmo sido boa ideia não sair da cama. Eu invejo o sentido prático das pessoas que vivem no Norte da Suécia ou na Finlândia ou na Sibéria: a vida tem de continuar e todas essas pessoas conseguem viver e trabalhar mesmo com temperaturas dezenas de graus abaixo de zero e nevões que realmente impactam a vida normal. Aqui, caem três centímetros de neve durante a noite e as pessoas subitamente transformam-se, como se fosse a primeira vez que conduzem com neve na vida.

É preciso dizer que, a par da paisagem silenciosa e branca, há apenas outra coisa que faz a neve valer a pena: os gritinhos de alegria dos miúdos no recreio da escola, enquanto a campaínha não se faz ouvir. A excitação era evidente e também na nossa casa se perguntou logo se não podíamos ir fazer um boneco de neve - óbvio! De resto, acordem-me quando já estivermos na Primavera.

janeiro 29, 2019

Eu e a música

Não me lembro de crescer numa casa onde se ouvisse muita música. Ainda restam alguns vinis lá em casa que provam que algumas canções se ouviram naquele gira-discos que sempre me pareceu gigante mas eu não me lembro de quais eram os cantores preferidos dos meus pais, por exemplo. Tudo o que sei sobre isso chegou mais tarde, talvez quando a música se tornou mais importante para mim e casualmente num tema de conversa lá em casa. Mas eu fazia os meus próprios concertos no quarto, usando o desodorizante (Vasenol, quem se lembra do formato?) como microfone.

Tenho talento zero para a música. Desafino quando canto, não tenho grande coordenação motora e não sei tocar nenhum instrumento. Fascinam-me as pessoas que compõem canções porque não consigo imaginar o que é inventar música e como se poder ter dentro de nós tantas canções diferentes. Não acho que haja um estilo melhor ou pior do que outro: só consigo explicar a minha adoração através da quantidade de emoções que uma certa música/banda me podem fazer sentir.

O poder que tem uma canção é incrível e tão mais imediato que um livro e tão mais disponível que um filme. Ouve-se uma canção de três minutos e parece que se abrem as comportas da nossas tristeza. Repete-se a mesma canção durante dias a fio: antes, era a cassete que se rebobinava vezes sem conta; hoje, o loop está à distância de um repeat 1 - click e já está. Há canções eternamente ligadas a períodos específicos da minha vida. Há canções para cada desgosto amoroso e cada momento de superação. As pessoas de quem gostei têm a sua música, a pessoa que escolhi como marido tem várias. Aos meus filhos associo as músicas que ouvi quando descobri que eles estavam por nascer: não significa que fossem músicas escolhidas por mim, podia ser só aquele hit que estava a dar na rádio à saída da ginecologista. Os meus pais também têm as suas e a melhor cena é o meu pai ter como toque da minha mãe a I was born to love you dos Queen! A minha irmã vai ser para sempre as músicas que cantávamos em dueto em casa.

Já uma vez pensei que dificilmente ia ouvir mais música nova. Quando não tinha filhos, podia passar horas a pesquisar sobre novas bandas, novas canções, outros estilos. Comprei muito cds, gravaram-me outros tantos, fiz mix tapes que dei a pessoas de quem gostava muito, compus as minhas próprias cassetes de melancolia, recebi mix tapes pelo correio de pessoas que mal conhecia. Usei o Napster, o eMule, o Soulseek. Acumulei música em formato digital em quantidades industriais mas que conservo com aquele carinho de quem pensa que algum dia vai voltar a ouvir. Há anos que uso o Spotify e não consigo imaginar uma invenção maior do que ter toda a música disponível quando eu quiser. E agora, que os filhos me deixam muito lentamente voltar a ser um bocadinho da pessoa que era antes, começo a arriscar algumas coisas novas. O rádio liga-se quando se entra em casa e desliga-se quando os miúdos vão dormir. E agora que os miúdos se tornaram menos dependentes de mim, começo a nem hesitar quando anunciam os concertos aqui - é bilhete certo.

Posso não ser uma expert num determinado estilo de música ou não saber o nome de todos os membros dum banda de que até gosto muito. Mas há música para todas as ocasiões na minha vida, para todas as pessoas, para muitos dos meus sítios. Por isso, se se cruzarem comigo numa rua qualquer e eu estiver a sorrir melancolicamente, se calhar é porque uma música me apanhou de surpresa e de repente sou eu num videoclip qualquer.

janeiro 24, 2019

Música para os meus ouvidos #1

(Umas das coisas que mais tenho tido vontade de fazer é escrever sobre a música que tenho escutado ou sobre o que tenho visto ou lido. Não com a intenção de evangelizar alguém ou convencer da qualidade das minhas escolhas mas simplesmente para escrever sobre o que estas coisas me fazem sentir, pensar, imaginar. E por isso começo hoje aqui, com o álbum que mais tenho ouvido nestes últimos dois meses.)

 

Ouvir estas canções é dar comigo num carro, vidros escancarados, uma estrada interminável a meio de um estado americano, a paisagem a alternar entre os campos cultivados e aquelas formações rochosas dos filmes. Eu talvez fuja de qualquer coisa, talvez procure a cura para o coração que acabam de me partir, sem saber sequer para onde vou. O único plano é ouvir as canções delas até ao infinito. Eu sentada à janela num diner de beira de estrada, sem saber como acabar um prato de ovos mexidos sem que as lágrimas forcem a sua saída. Eu a atestar o depósito e a sentir-me mais sozinha do que nunca. Eu a trocar olhares com um estranho que acaba de deixar o motel onde hoje vou dormir. Eu a achar que sei tudo sobre a solidão. Eu a decidir que hei-de conduzir até chegar ao mar. Pequena cidade atrás de pequena cidade, manadas de vacas, cavalos selvagens, a imagem gasta do último cowboy, a imagem gasta do romance que já ninguém quer, que já ninguém procura. Talvez tenha visto demasiados filmes, talvez tenha escutado demasiada música triste, talvez, apesar de tudo, às vezes ainda viva demasiado virada para dentro. Mas depois elas cantam assim, depois elas aparecem com estas músicas que eu gostava de ter escrito e sabem tocar e parecem mais sábias do que eu. E às tantas eu só já quero prolongar a viagem e conduzir de olhos fechados.

                               We had a great day                                       I had a fever
                               Even though we forgot to eat                       Until I met you
                               And you had a bad dream                            Now you make me cool
                               Then we got no sleep                                   But sometimes I still do
                               'Cause we were kissing                                Something embarassing


(um link se quiserem também sonhar e outro link se quiserem saber mais)



janeiro 23, 2019

Viver com privação do sono

Normalmente são seis ou sete vezes. Com alguma sorte apenas duas ou três. Um que quer ir à casa de banho. Outra que quer que a tapem. Outro que nunca conseguiu dormir uma noite inteira. E quando acordo, especialmente durante o horário de Inverno, como ter energia para fazer desporto ou mesmo apenas para tomar banho?

Há oito anos que deixei de dormir como uma pessoa normal. Era rapariga para dormir até ao meio dia na minha existência pré-filhos e apreciava bem uma sesta a meio da tarde. Ainda hoje aprecio, só não consigo é dormir. Há oito anos nasceu o nosso primeiro filho, o primeiro a não saber nem gostar de dormir. Só o pai é que o conseguia deitar quando era apenas um bebé, enquanto eu chorava de desespero por não conseguir acalmá-lo, por um lado, nem conseguir dormir pelo outro. Li tudo o que havia para ler sobre o sono dos bebés, especialmente aqueles fórums de mães onde se encontram muitas soluções estapafúrdias mas também muita compreensão sobre o que é viver sem dormir. Nada funcionou com o nosso primeiro filho mas um dia foi ele a pedir-nos para ir dormir. Com quase três anos, e depois de muito sofrer com este hábito, acabámos com o leite durante a noite e ele acabou por começar a dormir bem. Mas nessa altura em que as noites começavam a ser mais calmas, nasceu ela.

Ela dormia muito pouco de dia e fazia-me desesperar porque eu nem podia tratar de coisas em casa nem podia dormir: tinha que tratar dela o tempo T-O-D-O. À noite, a coisa também não ia melhor mas o leite lá a ia acalmando. E acalmou até que a antiga pediatra me fez sentir como uma mãe quase negligente e ordenou que a menina não bebesse mais leite à noite. Foram precisas algumas noites de muito choro, de muitos gritos, da dor que é sentir que um filho está a sentir-se como se o tivessemos abandonado mas o milagre deu-se e ela começou a dormir. Só que exactamente nessa altura, pouco antes de ela comemorar os dois anos, nasceu o terceiro filho e aquele que pior noites dá.

Aos dois, ainda sou culpada de lhe dar leite durante a noite. Quem, como eu, vive com a privação do sono sabe que se faz o que for preciso para podermos voltar a dormir. A única coisa que evito é trazê-lo para a nossa cama - guardamos essas ocasiões para quando estão doentes. E portanto, aos dois anos de idade acabados de fazer, este menino ainda acorda de duas em duas ou de três em três horas. Agora somem-lhe outros dois filhos com as suas necessidades e façam as contas a quantas horas eu durmo por noite. Há oito anos, até me custa pensar.

Há dias em que me sento em frente ao computador, no trabalho, e nem sei o que estou a fazer. O despertador toca muitas vezes alguns minutos depois de ter conseguido voltar a adormecer, o que é claramente a pior sensação do mundo. Esqueço-me muitas vezes do que ia fazer a seguir, de preparar lanches nos dias de escola ou de fazer os sacos para a natação. Suporto dias inteiros de reuniões a baldes de café e a um esforço hercúleo para não cabeçear uma vez sequer. Estou sempre mas sempre cansada, não tenho vontade de sair de casa. Quero ler muito, ver muitas séries, tricotar até mais não mas acabo muitas vezes enfiada na cama logo depois do jantar, à espera do primeiro que irá acordar. Sinto muitas vezes, como na semana que passou, que mais dia, menos dia eu vou sucumbir a esta deficiência de descanso. Sinto que o meu corpo vai entrar em shutdown a qualquer momento. Tenho medo do que a falta de sono está a fazer à minha saúde em geral. Sonho as coisas mais bizarras quando finalmente consigo adormecer. E, sobretudo, entristece-me não ser capaz de estar mais presente ou de ter mais paciência quando estou com os meus carrascos do sono.

Às vezes, nos dias bons, consigo levantar a cabeça e imaginar que um dia os três vão dormir bem e que já nem deve faltar muito para que isso aconteça. Mas depois pergunto-me se alguma vez mais vou conseguir dormir como antes (e temo saber a resposta...). Nos dias normais, arrasto-me para o carro, multiplico-me em esforços para que o trabalho saia bem feito, às vezes consigo ver um episódio ou ler duas páginas depois do jantar. Já há muito tempo que desisti de tentar entender porque não dormem/dormiam eles mas juro que quando forem adolescentes sentirão o amargo gosto da vingança.

(muitas vezes tenho vontade de escrever qualquer coisa por aqui. Às vezes são ideias minhas, outras o resultado de pessoas inspiradoras, a vontade de regressar à ficção sem deixar de escrever as crónicas sobre o que conheço. E a verdade é que não é só a falta de sono que me impede mas o facto  do meu tempo livre ser ocupado a tentar dormir ou a tentar fazer alguém dormir também ajuda. Este blog comemorará quinze anos em breve! Quinze anos é demasiado tempo para que eu simplesmente feche a porta sem olhar para trás. E é precisamente por de vez em quando eu espreitar este sítio onde a minha vida se fez palavras que não posso simplesmente dizer adeus. Estou a fazer figas para poder ouvi-los ressonar em uníssono e conseguir finalmente voltar a viver um bocadinho.)