Não me lembro de crescer numa casa onde se ouvisse muita música. Ainda restam alguns vinis lá em casa que provam que algumas canções se ouviram naquele gira-discos que sempre me pareceu gigante mas eu não me lembro de quais eram os cantores preferidos dos meus pais, por exemplo. Tudo o que sei sobre isso chegou mais tarde, talvez quando a música se tornou mais importante para mim e casualmente num tema de conversa lá em casa. Mas eu fazia os meus próprios concertos no quarto, usando o desodorizante (Vasenol, quem se lembra do formato?) como microfone.
Tenho talento zero para a música. Desafino quando canto, não tenho grande coordenação motora e não sei tocar nenhum instrumento. Fascinam-me as pessoas que compõem canções porque não consigo imaginar o que é inventar música e como se poder ter dentro de nós tantas canções diferentes. Não acho que haja um estilo melhor ou pior do que outro: só consigo explicar a minha adoração através da quantidade de emoções que uma certa música/banda me podem fazer sentir.
O poder que tem uma canção é incrível e tão mais imediato que um livro e tão mais disponível que um filme. Ouve-se uma canção de três minutos e parece que se abrem as comportas da nossas tristeza. Repete-se a mesma canção durante dias a fio: antes, era a cassete que se rebobinava vezes sem conta; hoje, o loop está à distância de um repeat 1 - click e já está. Há canções eternamente ligadas a períodos específicos da minha vida. Há canções para cada desgosto amoroso e cada momento de superação. As pessoas de quem gostei têm a sua música, a pessoa que escolhi como marido tem várias. Aos meus filhos associo as músicas que ouvi quando descobri que eles estavam por nascer: não significa que fossem músicas escolhidas por mim, podia ser só aquele hit que estava a dar na rádio à saída da ginecologista. Os meus pais também têm as suas e a melhor cena é o meu pai ter como toque da minha mãe a I was born to love you dos Queen! A minha irmã vai ser para sempre as músicas que cantávamos em dueto em casa.
Já uma vez pensei que dificilmente ia ouvir mais música nova. Quando não tinha filhos, podia passar horas a pesquisar sobre novas bandas, novas canções, outros estilos. Comprei muito cds, gravaram-me outros tantos, fiz mix tapes que dei a pessoas de quem gostava muito, compus as minhas próprias cassetes de melancolia, recebi mix tapes pelo correio de pessoas que mal conhecia. Usei o Napster, o eMule, o Soulseek. Acumulei música em formato digital em quantidades industriais mas que conservo com aquele carinho de quem pensa que algum dia vai voltar a ouvir. Há anos que uso o Spotify e não consigo imaginar uma invenção maior do que ter toda a música disponível quando eu quiser. E agora, que os filhos me deixam muito lentamente voltar a ser um bocadinho da pessoa que era antes, começo a arriscar algumas coisas novas. O rádio liga-se quando se entra em casa e desliga-se quando os miúdos vão dormir. E agora que os miúdos se tornaram menos dependentes de mim, começo a nem hesitar quando anunciam os concertos aqui - é bilhete certo.
Posso não ser uma expert num determinado estilo de música ou não saber o nome de todos os membros dum banda de que até gosto muito. Mas há música para todas as ocasiões na minha vida, para todas as pessoas, para muitos dos meus sítios. Por isso, se se cruzarem comigo numa rua qualquer e eu estiver a sorrir melancolicamente, se calhar é porque uma música me apanhou de surpresa e de repente sou eu num videoclip qualquer.
3 comentários:
Que post tão bom, tão bonito. Esta também sou eu e a música também tem em mim esse encanto e um espaço significativo da minha vida.
Marisa, a tua prosa sempre interessante e que leio sempre até ao fim! Normalmente blogs que tenham mts linhas, não leio ou leio em zig-zag, mas NUNCA é o caso dos teus!
"Sou una grande cantora, só me falta é a voz" é uma das frases que define a tua adolescência ao meu lado. Seria impossível pensar no caminho conjunto sem banda sonora e há uma canção que me apresentaste numa festa do teu aniversário que me faz sempre pensar em ti: "Jeremy" dos Pearl Jam.
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