Os dias pregam-nos tantas partidas e tão repentinamente que a) não temos tempo para saborear algumas b) preferíamos não saber da existência de outras c) ansiamos pelas partidas. As pessoas perguntam-me por novidades, o que tens feito?, o que tens descoberto? e quando eu digo a verdade, que não tenho feito nada de estrondoso, que tenho estado sossegada e decoberto muito pouca coisa, toda a gente me olha desconsolada, com uma cara que me diz 'Caramba, sempre esperei algum rasgo de loucura. Afinal é de ti que estamos a falar'. Não sei muito bem como é que me coloquei nesta pele. Quer dizer, sei, mas as pessoas mudam. E há momentos de estagnação, de paragem, de desconforto. E é por isso que muitas vezes me sinto tentada a inventar uma vida agitada e fabulosa, cheia de episódios tão surreais que essa mesma gente deixaria de acreditar em mim mas, pelo menos, não tinha que suportar a cara de desapontamento quando digo 'Não tenho feito nada de especial'.
[Abro uma cerveja gelada.]
Ontem o pai duma amiga minha levou um tiro. A notícia foi-me dada assim como quem dá um murro no estômago, já depois de ela não estar perto de nós. Não houve tempo para a consolar nem para lhe dizer aquelas banalidades todas que fazem falta, que nos fazem, por momentos, acreditar que há efectivamente esperança. Por uma disputa de terrenos onde passava um curso de água, o pai da minha amiga levou um tiro à queima roupa que não lhe rompeu uma artéria por puro acaso. Eu tinha visto no olhar dela que não havia vontade de rir nem de desancar o tipo da secretária ao lado mas não soube ainda ler esta profunda dor e o medo. Não conhecer bem as pessoas faz-me sentir mal, não saber ler-lhe as aflições ainda pior. Mas os tempos de crise apertam os laços que já unem as pessoas e assim espero que nós não sejamos excepção. Eu sei que ela não me lê, que ela nem sabe que este espaço existe mas se o soubesse eu diria que gostaria de ajudar como puder.
[Ergo a garrafa e penso num brinde.]
O universo é uma coisa perfeita, disso não tinha já dúvidas. E para manter este equilíbrio cósmico, esta balança que não pende para nenhum dos lados, deixou-me acabar o dia com uma notícia feliz. Uma pessoa de quem gosto muito (mesmo que isso pareça estranho ou nada de especial) conseguiu uma coisa que há muito desejava e que há ainda mais tempo merecia. Não é exactamente por isso que estou contente, apesar de isso me encher de orgulho: é porque agora sei que, com passos pequenos, ele vai poder começar outra vez a reconstruir tudo o que perdeu. E saber que o fez por mérito próprio, que só dependeu de si mesmo para se levantar do chão é animador. Para todos, mesmo aqueles que acham que já chegaram onde querem. O limite agora é o céu. Mesmo sabendo que o que ele quer agora é apenas um tecto.
[Brindo aos dois, a duas pessoas tão diferentes e tão diferentemente bafejadas pela sorte, pelo equilíbrio. Que eu possa, com eles, encontrar-me apenas num prato da balança.]