Numa noite saio do bar como voluntária do Banco Alimentar contra a Fome. Sentamo-nos a beber, enquanto falamos daquilo que nos parece fácil de resolver, como se todas as coisas pudessem mudar apenas com a nossa vontade. Não podem.
Noutra noite saio do bar final e oficialmente como madrinha de casamento: olho para o meu afilhado e a sua noiva e sei que aquilo está certo. Vivemos tanto tempo juntos, há tanta coisa que eu disse a ele e a mais ninguém, foram tantas as noites em que nos confessámos um ao outro - eu quero-o feliz. Quero que ele possa recordar as vezes em que nos sentámos no carro dele, debaixo duma árvore que há muito foi abatida ou lembrar-se da nossa primeira noite em Lisboa, sentados na varanda, sem conseguir dormir, a pensar no que os tempos de universidade nos reservavam. Lembrá-lo-ei sempre por me dizer exactamente aquilo que precisava de ouvir, sem nunca se compadecer das minhas dores de amor, das minhas dúvidas de criança (as mesmas que ainda hoje me assaltam). Lembrá-lo-ei por ser o obreiro da maior história de amor que já vivi, emprestando-me o seu telefone para que trocássemos mensagens de voz. Eu sentada na varanda e ele no sofá, tranquilo: sabia que estava a fazer o que está certo. Vou perdê-lo para outra mulher e parte de mim sente esse desconforto de não poder competir com ela mas a maior parte sente que vai ser bom sentar-me com ele na mesa dos noivos.
A mãe duma pessoa que conheço suicidou-se. Não tinha com estas pessoas qualquer laço afectivo neste momento mas não consigo evitar ficar espantada. Há uma coisa que me assombra nestes momentos: o desejo de levantar a pessoa do reino dos mortos e perguntar-lhe porquê. É uma coisa que me aflige, que me intriga porque, apesar daquilo que senti exactamente antes de ceder à tristeza, eu não compreendo o que pode levar uma pessoa a isto. E outra coisa que me assusta é a nossa incapacidade em perceber o que vai na mente dos outros: alguém que se suicida está num ponto de ruptura tão extremo que cede a essa mesma pressão. Estamos nós demasiado ocupados com as nossas questõezinhas da tanga ou simplesmente desenvolvemos esta incapacidade de nos relacionarmos com a dor dos outros?
Os dias têm sido passados a fantasiar, resultado de demasiado tempo livre. Acordo demasiado cedo e continuo na cama, enfio os phones nos ouvidos e enceno videoclips sobre o amor, sobre o abandono, sobre o arrependimento, sobre planos impossíveis, sobre a vontade, sobre olhos que não me saem da cabeça. E por isto tudo, por me massacrar a pensar e a imaginar, fico contente quando penso que terça-feira pego no carro e vou embora sozinha. O quarto já está marcado, tenho vontade de ver o mar, tenho vontade de mergulhar em água gelada e estar sozinha comigo mesma: durante o tempo possível, estar sozinha fora do mundo onde me movo e desligar-me verdadeiramente de tudo. Sem sequer saber o que estou a fazer ou sem pensar que nada resultará como espero, só ir e estar frente ao mar.
E já não é só o cheiro do calor. É sair à rua e sentir que a brisa morna nos afaga. Quero acreditar que há promessas de Verão no ar.
2 comentários:
Em teoria a tristeza cura-se relativizando. "Estou a ficar careca" - pensa numa pessoa que não tem dinheiro para pagar a casa. "Não tenho dinheiro para pagar a casa" - pensa numa pessoa que não tem comida - "Não tenho comida" - pensa numa pessoa a quem mataram toda família. E por aí fora num concurso mundial de desgraça que acaba sempre numa aldeola qualquer em África ou no Indochina. Na prática isso não resulta. Somos sempre as pessoas mais tristes do mundo e o suicidio pode chegar não como uma triste desistência mas como um alívio. Penso eu, que nunca me suicidei.
Eu sei que relativizar é bom. Mas sempre ouvi dizer 'Com o mal dos outros dou-me eu bem' e às vezes é-me muito díficil não pensar nos meus dramas.
Eu também nunca me suicidei (:P) e penso que, em última análise, nunca o faria. Sou demasiado cobarde e tenho (ainda) demasiada esperança.
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