Há uma parte de mim que se desliga constantemente e, contrariando a minha vontade, está lentamente a desaparecer. É a parte de mim que viveu numa capital de distrito no interior, a maior parte das vezes mais parecida com uma aldeia do que com uma cidade. A minha declaração de amor ao sítio em que nasci é conhecida e há-de ser repetida mais vezes mas a verdade é que me vou esquecendo da miúda que já fui lá.
Honestamente, só consigo olhar para trás quando a isso sou obrigada. É, talvez, a minha forma recalcada de fugir às dificuldades que tive em crescer, em amadurecer e deixar de ser uma criança, a marca indelével que é ter sido a única rapariga da minha rua (da minha idade) em plena adolescência. Por isso, quando às vezes olho para trás, parece que só me vejo a partir de mil novecentos e noventa e sete, o ano da minha reinvenção. E ontem, com um deslumbramento envergonhado, voltei à altura em que era um bocadinho menos sociável e em que sofria os desaires do meu corpo se recusar a crescer.
Lembrei-me de repente dos bailes em frente à pastelaria sem nenhum grupo, só uma aparelhagem a tocar e a esperança infantil de que ele ainda aparecesse ali. Lembrei-me do acontecimento que era a benção dos carros em São Cristovão e da confraria e de como tudo isso significava poder desaparecer do baile sem ninguém notar. Lembrei-me de como assistia à procissão do senhor dos Passos sempre da mesma janela e sempre com o mesmo saco de torrão nas mãos. Lembrei-me dos domingos à noite em que, depois de jantar no Leitão em Caia, ouvia os discos pedidos com um pequeno transístor vermelho debaixo dos lençóis. Lembrei-me do cheiro às omeletes que a minha mãe fritava para o meu pai levar para o trabalho ainda a luz do Sol não rasgava aquelas persianas. Lembrei-me dos sofás de veludo cor de vinho e das tardes de Domingo, tentando dormir a sesta ao som do campeonato de fórmula 1. Lembrei-me de comunicar por sinais com a minha vizinha da frente e lembrei-me de brincar à Pedra sobre Pedra no prédio do lado. Lembro-me dos almoços no senhor dos Aflitos, das grades de minis dentro dos tanques, o Tó Miguel a apanhar beatas por todo o lado e os amigos do meu pai a cantarem o Perompompero. O mundo acabava na placa onde acabava a cidade e aquelas ruas eram minhas e da bicicleta em que caía sempre que tentava um cavalinho.
O que este filme me deu foi uma enorme sensação de simplicidade. Ver aquelas pessoas a discorrerem umas sobre as outras, sentir a tensão entre o rapaz e a rapariga, descobrir a estranha tradição que consiste em pregar pregos num tronco(enquanto se bebem minis), acompanhá-los por aquela serra acima - foi estar perto dessa pessoa que fui. E foi bonito ouvir só as copas das árvores revolvidas pelo vento e foi bonito assistir ao momento exacto em que começa a anoitecer ao lado daquele marco geodésico. Um céu daqueles não deve ter sido fácil de encontrar.
* site oficial aqui.
Honestamente, só consigo olhar para trás quando a isso sou obrigada. É, talvez, a minha forma recalcada de fugir às dificuldades que tive em crescer, em amadurecer e deixar de ser uma criança, a marca indelével que é ter sido a única rapariga da minha rua (da minha idade) em plena adolescência. Por isso, quando às vezes olho para trás, parece que só me vejo a partir de mil novecentos e noventa e sete, o ano da minha reinvenção. E ontem, com um deslumbramento envergonhado, voltei à altura em que era um bocadinho menos sociável e em que sofria os desaires do meu corpo se recusar a crescer.
Lembrei-me de repente dos bailes em frente à pastelaria sem nenhum grupo, só uma aparelhagem a tocar e a esperança infantil de que ele ainda aparecesse ali. Lembrei-me do acontecimento que era a benção dos carros em São Cristovão e da confraria e de como tudo isso significava poder desaparecer do baile sem ninguém notar. Lembrei-me de como assistia à procissão do senhor dos Passos sempre da mesma janela e sempre com o mesmo saco de torrão nas mãos. Lembrei-me dos domingos à noite em que, depois de jantar no Leitão em Caia, ouvia os discos pedidos com um pequeno transístor vermelho debaixo dos lençóis. Lembrei-me do cheiro às omeletes que a minha mãe fritava para o meu pai levar para o trabalho ainda a luz do Sol não rasgava aquelas persianas. Lembrei-me dos sofás de veludo cor de vinho e das tardes de Domingo, tentando dormir a sesta ao som do campeonato de fórmula 1. Lembrei-me de comunicar por sinais com a minha vizinha da frente e lembrei-me de brincar à Pedra sobre Pedra no prédio do lado. Lembro-me dos almoços no senhor dos Aflitos, das grades de minis dentro dos tanques, o Tó Miguel a apanhar beatas por todo o lado e os amigos do meu pai a cantarem o Perompompero. O mundo acabava na placa onde acabava a cidade e aquelas ruas eram minhas e da bicicleta em que caía sempre que tentava um cavalinho.
O que este filme me deu foi uma enorme sensação de simplicidade. Ver aquelas pessoas a discorrerem umas sobre as outras, sentir a tensão entre o rapaz e a rapariga, descobrir a estranha tradição que consiste em pregar pregos num tronco(enquanto se bebem minis), acompanhá-los por aquela serra acima - foi estar perto dessa pessoa que fui. E foi bonito ouvir só as copas das árvores revolvidas pelo vento e foi bonito assistir ao momento exacto em que começa a anoitecer ao lado daquele marco geodésico. Um céu daqueles não deve ter sido fácil de encontrar.
* site oficial aqui.
6 comentários:
quero, quero ver este filme!
tb me lembro d muitas dessas coisas!
jogar à macaca c a ana claudia ao pe da casa da avó!
passar a noite no cantinho do escarreta!
passar as tardes de verão a jogar às cartas no patim!
ir ao "chicatrino" c a avó fémea!
lanchar na fonte dos amores!
a azinhaga q ia dar à estrada pos covões!
um sem fim d coisas :)
lhe amo mtinho (L)
Assim lá me entram as típicas saudades de emigrante... :)
Que diferentes sao os meses de Agosto dos de há uns anos. Há anos que nao passo um dia de Agosto em Portugal, e há anos que nao tiro um dia de férias em Agosto. Que longe parecem os Agostos passados entre Moledo, S. Pedro de Moel e Zambujeira. Esses meses eram grandes e tinham mais de 31 dias, cabiam até vidas diferentes.
Vou ver com certeza, mesmo que com olhos de quem cresceu no betão :) e mesmo aí dá para encontrar poesia. é porque é a infância. há sempre poesia em boas memórias de infância...
Eu não só tive a sorte de ver o filme, mas de fazer parte do mundo... Eu realmente sou de Arganil, onde tudo foi filmado... Ver a Natália Novais na Rádio Clube de Arganil a fazer mais uma vez o seu programa diário, aquele carro dos bombeiros que já conheço desde miudo, em que entrei tanta vez para dar asas à minha imaginação... O lembrar-me da minha irmã a cantar num qualquer bailarico... O comprar uma rifa na quermesse e ficar desiludido com a saboneteira surpresa... É realmente bom relembrar esses dias... Para quem não sabe, Arganil é uma pequena vila a mais ou menos 60 kms de Coimbra, com vistas e cenários únicos, e a valer a pena uma visita... E já agora... grande Blog este...
eu fui hoje ver este filme e adorei. adorei imenso. e ler este testemunho depois do filme é quase como que uma continuação do mesmo. magnífico. ;)*
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