agosto 09, 2008

Saturday night live

No quintal das traseiras, os meus vizinhos gritam por qualquer jogo que dá na televisão. Por momentos, fico mesmo com a sensação de que se joga qualquer coisa importante, tal é o entusiasmo com que festejam. Provavelmente, na rua corre uma brisa deliciosamente fresca que eu não sinto sentada no sofá e eles aproveitam para deslocar a televisão para o quintal minúsculo, de onde sobe também um insuportável cheiro a petróleo. No condomínio fechado não se ouve um pio e as portadas estão todas fechadas há bastante tempo.

Há uma ideia que me persegue há dias: é esta ideia de que, quando falamos de esquecer, eu sou um autêntico desastre. Como o McCarthy dizia You forget what you want to remember and you remember what you want to forget e eu começo a pensar cada vez mais que este processo todo não é involuntário. Juro que me esforço para esquecer porque sei exactamente quais são as consequências desta persistência e juro que, em todos os dias que passei longe de casa, foi tudo mais fácil de ignorar. Mas é só voltar, é deitar-me uns minutos na minha cama de casal e meio e está tudo absolutamente perdido. Depois disso, segue-se o momento em que tomo o pequeno-almoço, os instantes que demoro a chegar ao carro, todas as paragens nos semáforos, a viagem de elevador do zero ao seis, os segundos que os programas demoram a abrir, o almoço sozinha, as compras no supermercado, a sesta, o parapeito da janela depois de jantar - tudo contaminado e com a minha autorização.

Já mudei a música e levei o volume àquilo que é permitido no meu condomínio minúsculo, onde sou a única pessoa que não faz parte da família. Já folheei o simpático livro oferecido com o Público mas estanquei na primeira página quando li Não posso adiar o coração. Não é a primeira vez que ouvi/li isto mas às vezes precisamos de estar preparados para receber as dádivas das palavras, estes segredos que nos rouba o poeta sem saber. É preciso crescer, amadurecer os amores e os desgostos, acumular os cabelos brancos. E se pudesse, também eu adiava esta trapalhada toda a que chamo vida e da qual me esqueço quando estou longe. Até ao momento em que fosse claro o que fazer a seguir. Porque, francamente, não sei. A não ser beber mais um copo de rosé e embriagar-me com as palavras destes poetas todos. E com as imagens que luto por exorcizar. Sem êxito, a distraírem-me uma e outra vez.

7 comentários:

Anónimo disse...

Rose...bebida de gaja...
Nada como um bom tinto que acompanha com tudo o que é delicioso...

esses momentos que estamos longe das rotinas diárias são tão fugazes...sinto que cada vez vivo mais para eles...

Bjs

Jorge C.

Anónimo disse...

Bonito texto! Por mera curiosidade, o simpático livro era do António Ramos Rosa?

«Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio

Não posso adiar
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração»

K. disse...

Nao penses demasiado. Nao adies o coraçao, nem as palavras, nem os livros, nem o Mateus Rosé, nem os telefonemas aos amigos. Nao troques um fim de tarde de Verao por uma recordaçao.

Rita Maria disse...

Para mim, o pior foi o vazio, quando nao havia imagens nenhumas quando fechava os olhos..agarra-te a elas até virem umas novas!

M. disse...

Por partes...

Jorge, Rosé não é bebida de gaja. Sei bem quem pode contrariar isso! E sim, momentos bons estes, em que nos podemos esquecer.

Berlinerin, é dele o poema mas não o livro. É uma colectânea de poemas escolhidos pela Maria Alzira Seixo.

K., como sempre com conselhos tão sábios :) Um dia hás-de contar-me esse segredo para teres sempre um na ponta da língua...

Rita, essas novas já tardam em chegar... ;)

Anónimo disse...

de facto, lindo texto.
as rotinas são tão maquinas e alienadoras quanto impregnadas de veneno, que não nos deixa esquecer o que queremos esquecer, e lembrar o que queremos lembrar.

desejo-te mta força, como sempre.


pensa nos concertos de paredes!!!!!! :D

couve-flor. disse...

telepatia emocional: o meu contributo para o paranormal.
um beijo.