abril 30, 2009

A paisagem não tem dono*

Seriam umas cinco da tarde quando deixámos de pisar terra e se soltaram as amarras do veleiro. Éramos feitos de óculos de Sol e de cabelos desalinhados violentamente pelo vento, éramos casacos que começaram abertos e depressa se enroscaram nos nossos troncos fustigados pelo cheiro a rio. Falavam-se umas três línguas naquele barco mas era o espanhol que estava por todo o lado. Rio abaixo e rio acima, o estádio do Belenenses e o Cristo Rei, o Ginjal e a simetria da Praça do Comércio miravam-nos tranquilamente sem nos acenarem como os passageiros de outros barcos com que nos cruzávamos. Fazia-se música dos disparos da máquinas, da rotação das objectivas, da rouquidão do veleiro sobre o Tejo. Tomei nota de todos os sítios que quero ver, invejei as vistas de tantas águas furtadas e namorei a cidade ao longe. Ainda se sente a Primavera ao longe mas velejar ao Sol quase faz esquecer o frio.

* escrito num armazém nas margens do Tejo. M. e Jer viajaram a convite da Rua de Baixo, numa organização do Indie Lisboa.

abril 29, 2009

E agora, para uma surpresa alentejana...

Aceitei o convite muito amável e algo inesperado do Paulo para escrever numa publicação que estava a nascer. Apesar de não ter acompanhado este nascimento, senti-lhe o entusiasmo e a excitação com que falava do projecto e essa foi razão mais do que suficiente para aceitar. Além disso, como se o convite por si não fosse aliciante, este é um projecto em que acredito: uma revista sobre o Alentejo, feita por alentejanos, para ser lida por todos. Para quem perdeu a esperança, algum dia, de que há vida atrás da silenciosa planície ou debaixo do opressor calor estival ou para quem quer acabar com o mito da preguiça alentejana - esta é a revista Pormenores.

As borboletas na barriga voam agora um pouco mais longe e espalham-se também por delicadas folhas de papel. Estou imensamente grata pelo convite (a sensação de imaginar as minhas palavras estendidas por cinco mil encadernações é muito mais intensa do que poderia imaginar) e espero que este projecto se venha a tornar num sinónimo de sucesso. E agora ide a correr para as bancas e façam esgotar o número um. Ofereçam aos amigos, àqueles colegas irritantes que insistem que têm uma costela alentejana, aos estrangeiros que vos perguntarem o que devem ver! Agora, é tempo de escrever. Com um enorme e pateta sorriso enquanto procuro a palavra certa...

abril 26, 2009

Um homem* ama a sua guitarra

E, como a uma mulher, toca-a com os olhos fechados. Encosta o rosto às suas curvas em adoração involuntária, procurando decorar-lhe o cheiro natural. As mãos perdem-se nos pormenores do seu corpo, param admirando os defeitos mais intrigantes e fazem-na soltar as mais belas linhas de amor. Um homem baixa os olhos, envergonhado pela sua simplicidade e troca de guitarra para mais uns minutos em que o público sustém a respiração para não impedir a música de viajar bem longe. Com uma delicadeza ímpar, um homem presta apenas atenção aos sons que consegue arrancar de seis cordas, doze cordas, muitas cordas como se fossem sussurros de uma mulher estendida numa cama ao amanhecer. É-lhe natural, esta grandiosidade. Este homem de barba comprida e olhos agradecidos deixa-nos, não sei se involuntariamente, olhar-lhe para dentro. E é extremamente belo aquilo que consigo ver.

* o Norberto Lobo actuou ontem no CAEP.

abril 25, 2009

Febre de Sábado à tarde

Bocejo insistentemente depois de acordar do torpor em que se transformou esta tarde. Sou devolvida a esta luz frouxa de um dia gelado ainda debaixo do véu pernicioso dos gins tónicos de ontem. À memória, saltam-me o final de noite com o coração a duzentas e quarenta batidas por minuto num largo deserto e obviamente silencioso e o banco tardio onde repousamos o pequeno-almoço, pouco abrigados do frio mas ainda sob os efeitos do Sol. Ainda ensonada, experimento um vestido doze quilos depois e experimento também uma inevitável sensação de triunfo em frente ao espelho, desfilando para a minha mãe. Estou dividida entre o calor dos aquecedores e o frio da tijoleira do meu quarto, alternando as cavas da camisola com as mangas dum casaco preto.

É o dia em que comemoramos a liberdade mas também o dia em que sinto o gosto indescritível de já não ser livre. E é noite de música mas tarda a companhia. Voltei a contar as horas para o coração acelerar.

abril 22, 2009

Wishful thinking

Uma coisa que tem preocupado esta cabecinha (que se tem entretido ainda com outras coisas que a seu tempo verão a luz do dia também) é o futuro, no sentido profissional da coisa. Há três anos a trabalhar no mesmo sítio, sinto que a minha relação com este sítio está muito desgastada. E, confesso, estou cansada de correr atrás de banalidades. Impedida por alguma inabilidade de fazer só e apenas o que gosto de fazer (escrever), mato o tempo que resta com a gestão de pessoas e tudo o que isso tem de memorável e irritante. E até sou boa a fazer isso. E provavelmente mudo-me apenas de empresa e fico exactamente na área onde estou. E acho isso parvo.

E se não fosse escrever, gostava de estar à frente de um turismo rural. Receber pessoas, organizar actividades, cozinhar... e ter tempo para escrever o livro que às vezes sinto que está dentro de mim. Mas o investimento é qualquer coisa de impensável agora e o livro atrasado por achar que só consigo escrever sobre o que conheço. Gostava de tudo menos estar onde estou. Sou bem tratada mas mal paga, especialmente se pensar em tudo o que tenho que fazer todos os dias. Só que o bom ambiente por si não paga as minhas contas e também não promete um futuro assim tão auspicioso.

Portanto, uma unidade de turismo rural, com um alpendre enorme onde eu penduraria a minha rede para as sestas e com uns canteiros onde daria os primeiros passos na jardinagem e onde faria deliciosas tartes de maçã e frutos silvestres está para nascer. Mas a planta já está na minha cabeça e já vejo um cantinho com uma secretária virada para uma seara qualquer e uma daquelas gaiolinhas para grilos com um esfregando as asas de contente, enquanto os meus hóspedes mergulham na piscina para escapar ao Suão e da cozinha chega um cheiro a pimentos frescos e a hortelã. E darei a todas as palavras que carrego dentro liberdade de construírem mundos e de fazerem outros falar e terei ideias para tantas folhas em branco que uma sala deixará de ser suficiente. E não estarei sozinha porque levo deste tempo quem me tomou o coração.

Mas amanhã estarei ainda na capital e terei que falar sobre estilos de liderança. A tarte e as novidades ainda terão que esperar.

abril 20, 2009

Entretanto, a Oeste ii*...

... tive o último fim de semana em paz. Sentada na Senhora do Monte ou num banco de madeira da Ribeira d'Ilhas, ignorava a onda de transformação gigantesca que se iria abater sobre mim. Sobre mim também apenas prenúncios da felicidade, da silenciosa certeza que lentamente me apertava o coração que batia descompassado às três da manhã de uma segunda-feira. A tristeza que não adivinhei debaixo deste Sol de Abril vem certamente de um sítio escondido como a tranquilidade que comecei a sentir debaixo deste mesmo céu. Perdemos umas, ganhamos outras. E este Sol lembra-me que, apesar do luto, sou uma pessoa cheia de sorte. E apesar de tudo bastante mais feliz.

* em modo analógico e também aqui.

abril 18, 2009

Sobre o alívio

Agora que tudo passou, posso respirar fundo.

Já sei que toda a gente me vai dizer que ninguém está preparado para lidar com a dor- já ouvi isso algumas dezenas de vezes nos últimos tempos. E eu sei que isso é verdade. Eu era apenas inexperiente nestas matérias da eterna saudade e dos cartões que se escrevem em coroas de flores e das pessoas que nunca mais vamos ver na nossa vida. Todas as pessoas que me disseram que o tempo alivia, que eu preciso ter força já antes tinham sentido o mesmo desespero de não saber o que fazer com tantos sentimentos misturados, de acharem a cada dois minutos que aquilo é tudo um sonho, de não acreditarem no que estão a ver.

E eu, como todas as pessoas que dão por si de repente a meio do luto, achei que mais ninguém compreendia o que estava a sentir, quando, na verdade, toda a gente sabia melhor do que eu. Forçei-me a sentar-me no sofá ao lado da urna, mesmo sabendo que corria o risco de o ver. E acabei a olhar para ele umas duas ou três vezes, o invólucro do que um dia tinha sido o meu avô agora de mãos cruzadas, sereno como se dormisse a mais longa sesta do mundo.

Acho que isto tudo me transformou. Não sei ainda como mas sinto que saí renovada deste período turvo. Beijei tantas pessoas que não conhecia, vi a dor na cara das pessoas de quem mais gosto e por momentos esqueci-me que me doía também para poder abraçá-los. E eu sei que muita gente dirá que tudo isto não é nada de novo, é apenas o curso natural das coisas. Mas para mim, que vivo tantos momentos arredada da realidade, isto foi novo. E da próxima vai ser outra vez. Só serei uma pessoa ligeiramente mais experiente mas as olheiras serão as mesmas.

abril 16, 2009

Não passariam mais do que dez minutos das dez da noite. As malas estavam feitas, não foi preciso mais do que me enfiar no carro e fazer-me ao caminho. A auto-estrada mais não era que uma interminável língua negra debaixo de chuva, ora miudinha, ora intempestiva. Guiava-me pelo traço que separava as faixas como se fosse o fio que me devolvia ao centro do labirinto. Quase não trocámos palavras durante duas horas. A salvarem-me de me abandonar à tristeza apenas um concerto integral dos Pearl Jam num rádio qualquer e a ideia de uns braços estendidos à minha espera. Ele tinha finalmente sossegado a pieira a que chamavam agora respiração e eu passaria inevitavelmente a falar de alguém no passsado.

Descansa, agora.

abril 13, 2009

[Continuamos em modo pausa para evitar espalhar este manto negro. Não há nada de interessante ou empolgante para contar, existem apenas os dias em que me vou arrastando entre casa e o hospital, cada vez mais cansada, mais lenta, mais intolerante. Aprendo agora a aceitar a maior tristeza que já senti, eu sempre perdida entre os meus amores e desamores. Engulo as lágrimas até poder, até a garganta se queimar com os meus soluços. Se ele não me trouxesse à tona, se não me puxasse para respirar, se não pudesse já compreender o vazio imenso que sou nestes dias, estaria voluntariamente isolada do Mundo. Conto apenas o tempo que falta para eu (nós) poder (mos) realmente descansar.)

abril 10, 2009

Everyone I know goes away in the end



[Este blog vai, provavelmente, entrar num momento de pausa. Ontem, enquanto olhava distraidamente para a televisão, dei com esta versão do Johnny Cash. É assim que me sinto: profundamente magoada por pensar ainda que todos somos eternos, desanimada com a fé e a ciência, prestes a ver desaparecer as pessoas de quem gosto. Estou incapaz de aceitar um abraço, finjo que a dor é uma comichão supérflua. Mas é porque, se me abraçarem, é provável que se soltem as lágrimas todas. E para estas lágrimas, para tudo o que estou a pensar agora, ainda tenho tempo, é o que me dizem. E eu, sem palavras que me cheguem, encosto-me à parede e sorrio.]

abril 08, 2009

Preocupa-me ficar sem as pessoas de quem gosto aos poucos. Porque saudades para sempre são coisas que ainda não senti e nem são coisas que se ensinem e porque, de uma maneira completamente involuntária, sinto que, ao perdê-las, perco também um pedaço daquilo que sou. E lá mais para a frente, quando um dia precisar de olhar para trás para ter a certeza de onde cheguei, perderei as minhas referências.

Sei que terei perdido as pessoas mas não os ensinamentos, as manias, os defeitos e as superstições. Mas já não saberei quem sou, quem fui durante tantos anos da minha vida. E aprenderei a estar sozinha. Mas não poderei nunca ser a minha própria âncora, eu que me abraço a tudo o que posso para conseguir seguir.

abril 07, 2009

Entretanto, a Oeste*...

... não há grande coisa para pensar. A passagem do tempo é indelével, só o Sol deixa a primeira marca do ano. Repito-me se disser que continuo a amar Lisboa mas os quilómetros que fazemos, debaixo do enganador Sol primaveril, misturados entre os turistas verdadeiros e moradores que só querem fugir ao frio, continuam a ter este efeito em mim. E, enquanto enterro os pés na areia pela primeira vez este ano, a minha vida entra involuntariamente em modo pausa. Esqueço-me que viver custa mas só até hoje.

* o ilustre convidado e o temporizador ocuparam-se das fotos. Mais retratos no sítio do costume.

abril 06, 2009

O avô C.

O meu avô é do Sporting. Respeitamo-nos imenso como adversários futebolísticos e foi inclusivamente ele que me ensinou que nunca se deve mudar de camisola, dê lá por onde der. Durante alguns anos, o meu avô prometeu que só cortava o cabelo quando o Sporting fosse campeão. Felizmente, tem pouco cabelo, nunca se tornou numa coisa drástica. Além disso, em tempos idos, jogou à bola. E jurava que partia a perna a quem fizesse falta sobre ele em campo. É um duro.

Uma vez, num Verão não tão longínquo, discutimos com tanta violência que pensei que a nossa relação terminaria ali - não voltaria a pisar aquela casa. Mas, depois de ouvir a voz da razão (também conhecida como Mãe), resolvemos as nossas diferenças, eu engoli o meu orgulho e as coisas voltaram a ser como antes. Ele continuou a ter o dinheiro misturado com representações de santos, na gaveta das ferramentas e eu continuei a ir lanchar lá, um Capuchinho Vermelho moderno e estava tudo bem. O meu avô fugia da escola, escondia-se subindo às árvores, metia-se com outras raparigas. Deixou de fumar sem chatices e guardou o último maço de Ventil durante mais de dez anos numa gaveta, como que para provar que era capaz.

Eu gostava que ele se aguentasse mais um bocadinho. Pelo menos, para ver o Sporting ser campeão outra vez. Isso eu sei que vai demorar muito tempo.

abril 04, 2009

As minhas noites são mais belas que os meus dias viii

Subimos a calçada da Estrela às quatro da manhã, como se fossem quatro da tarde. Paramos frente a talhos, à Assembleia da República, a leitarias antigas. Não quisemos esperar pelo táxi que nunca chegaria vazio à rua dos Poiais de S. Bento - a caminho! Antes, tínhamos jantado a massa do costume, ouvido música tocante e dançado um slow ao som da Space Oddity. Ele não é um herói e eu não sou uma super-mulher. Somos, talvez, personagens de um enorme melodrama que não se desfaz há demasiados anos. Um dia, ele escreveu-me o testamento nas costas de um poster do Axl Rose e disse-me que o devia guardar com a vida. Ainda o tenho comigo. Já sei que nunca o vamos conseguir cumprir. Mas eram quatro e tal da manhã e saber que ele vai dormir descansado ou, pelo menos, perto disso, sabe-me bem.

abril 02, 2009

Declinar convites, fazer convites. Desconfiar insistentemente do bom humor da minha chefe. Reuniões por tudo e por nada. O quarto single que passou a quarto duplo (ainda hei-de abrir um serviço que se especializa em quartos apenas para uma pessoa, solteira ou não). Planos para dançar na sexta à noite, para não fazer nada no Sábado, para fazer ainda menos no Domingo. Demasiada televisão para mulheres - níveis de Oprah e Jamie Oliver e Project Runway muito elevados no sangue. Uma espécie de desilusão por ver por mim goradas as expectativas que eu mesma criei. Três caixas de sushi para o jantar. Uma senhora muito antiga a conversar com uma menina no 28. Incapacidade de articular duas ou mais frases, de modo a criar um texto coerente. Odiar o anúncio que acaba com o standard do diamante. Sorrir como uma anormal quando vejo o valor da prestação da casa deste mês.

Falta um mês e treze dias para parar.