janeiro 27, 2009

Ficção #12

Como se não bastasse o cheiro a caril que partia da praça e se esgueirava entre as ruelas que dela partiam e conduziam os turistas às ruas apinhadas de gente, como se não bastassem os ciganos sujos e de pele curtida por sóis antigos, que agitavam braçadas de óculos roubados e malas de pele falsa em pura competição com os paquistaneses que passeavam as suas coroas ofuscantes pela cidade fora, como se não bastassem os indigentes que se sentavam pelos bancos, que se espojavam pelo chão, que ocupavam a escadaria que escorregava da igreja, bradindo flautas e marimbas a mulheres que cheiravam a lixívia e a homens cansados da estiva, como se não bastasse o nevoeiro nervoso que por vezes baixava lentamente até ao nível dos tornozelos, como se não bastasse a visão das janelas do salão de baile decadente onde velhas e velhos tentavam acertar passo ao som de um tango que podia sair de uma grafonola não fosse este o ano dois mil, como se a fome não fizesse já doer o estômago sem precisar do cheiro irresistível que transborda de um cone feito de páginas amarelas cheio de castanhas, a rebentar pelas costuras - sentia-se deprimida e não conseguia descortinar a razão.

4 comentários:

P. disse...

consegui ver pessoas, muitas pessoas!

(L)

|b| disse...

ora aí está um estilo interessante. A escrita por vezes tem o mesmo poder que a pintura, a fotografia ou o filme.

E pode ser usada exclusivamente para isso, sem a intenção de contar uma história.

|b| disse...

ora pensa lá, se não seria engraçado fazer um livro de fotografia, só com letras

M. disse...

Eu penso... é uma grande ideia, sim senhor. Deixá-la amadurecer :)